Quando a morte faz parte do trabalho

Profissionais vivem, diariamente, usando suas habilidades diante de pessoas mortas. Saiba como é o dia a dia desses trabalhadores

por Nathan Santos dom, 01/11/2015 - 10:13

A fascinação pelos mistérios da morte sempre esteve presente na vida de Luzinete dos Anjos. Quando criança, enfeitava suas bonecas com flores e fazia sepultamentos de brincadeira. Também não deixava de acompanhar todos os velórios que aconteciam na cidade onde morava, Goiana, no Litoral de Pernambuco. Ela seguia os cortejos, entrava cemitério a dentro e só saía de lá no último pingo de lágrima dos parentes e amigos do morto. Esse gosto, considerado por alguns um tanto estranho, intrigou a mãe de Luzinete. “Menina, tu gosta tanto de enterro que qualquer dia um defunto vai te puxar pra cova”, dizia a mãe.

A mãe de Luzinete estava certa. A garota, na época com seis anos, não chegou a ser puxada por um cadáver, mas de fato caiu numa cova. “De tanto eu acompanhar os enterros da cidade onde morava, certo dia acabei pisando numa cova com terra mole e caí dentro do buraco. A sorte foi que meus amiguinhos me puxaram! Daí por diante fiquei com um trauma terrível e não quis mais saber de enterros”, relata Luzinete. Mas o destino dela estava traçado. O trauma sumiu e, já adulta, Luzinete mais uma vez passou a conviver com a rotina dos velórios. Começou a trabalhar com serviços gerais no Cemitério Morada da Paz, em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, e, vez ou outra, era convidada por familiares para fazer pequenas maquiagens nos corpos que estavam sendo velados. Até que veio um chamado oficial: Luzinete foi convidada para trabalhar no setor de tanatopraxia da empresa. Ela aceitou o convite, passou por diversas capacitações, dentro e fora de Pernambuco, e já completou dez anos como tanatopraxista. Hoje, inclusive, é coordenadora do setor.

“A tanatopraxia é a preparação do corpo para o velório através de produtos químicos e técnicas aprendidas em cursos de capacitação. O processo dura, em média, cerca de duas horas, e consiste na troca de líquidos por fluxos sanguíneos do corpo. A ideia é impedir a decomposição do corpo antes da realização do velório e do sepultamento. Também usamos algumas técnicas de maquiagem e reconstrução facial para dar uma naturalidade ao corpo”, explica Luzinete (foto abaixo). De acordo com a tanatopraxista, antes da maquiagem o cadáver passa por um banho, realizado com os mesmos produtos de limpeza utilizados em vida, como shampoo e condicionador.

Para Luzinete, o trabalho de preparação do corpo pode não acabar com a dor da perda dos familiares, mas tenta manter viva a imagem da pessoa em vida. “É muito bom ouvir dos familiares que a pessoa, depois de preparada, está com uma imagem bem parecida de quando ela estava viva. Certo dia preparei uma senhora que era muito festiva, pois era dona de uma boate. Antes de morrer, ela deixou tudo preparado para seu velório. Depois que ela morreu e o corpo chegou para ser preparado, vi que ela estava com um vestido belíssimo, cheio de brilho, do jeito que ela usava quando estava viva. Resolvi então fazer uma maquiagem mais forte, mas fiquei com um pouco de medo da família estranhar. Quando chamei o marido dela, ele aprovou de imediato e ficou muito alegre com a maquiagem. Outras pessoas da família também elogiaram, assim como os amigos. Alguns disseram que ela estava muito parecida quando ia para as festas. São fatos assim que me deixam muito feliz com meu trabalho”, conta Luzinete. Em média, o setor de tanatopraxia do Morada da Paz chega a preparar cerca de 200 corpos por mês.

O tanatopraxista cantor

Assim como Luzinete, Gustavo Machado sempre buscou perguntas sobre o que é a morte. Depois de perder a mãe, ele começou a estudar e questionar teorias que abordavam o universo do fim da vida. Toda essa curiosidade levou o rapaz a estudar a tanatopraxia e há 30 anos ele vive da preparação de corpos para sepultamentos. O curioso é que, durante o procedimento, ele canta bastante em meio aos corpos. Segundo ele, isso ajuda a tirar o estresse.

Desenvolto nas palavras e convicto de que é um dos melhores tanatopraxistas do Recife, Gustavo já trabalhou em inúmeras empresas localizadas nas imediações do Cemitério de Santo Amaro, no bairro de mesmo nome, área central da capital pernambucana. Segundo ele, independente de quanto trágica foi a morte de um indivíduo, não existe reconstituição difícil para tornar o cadáver visível. “Eu conheço técnicas que trazem uma ótima reconstituição para o cadáver. Não existe corpo difícil. O que existem são pessoas amadoras que enganam muita gente, dizendo que sabem fazer a tanatopraxia, mas na verdade não sabem de nada”, afirma Machado.

De acordo com o tanatopraxista, a preparação de um corpo é feita a partir de R$ 200, mas, dependendo da situação do cadáver e se o defunto será transportado para uma localidade distante, esse valor pode ficar muito mais caro. Gustavo Machado afirma que já preparou quase 35 mil corpos para enterros. No vídeo a seguir, veja mais depoimentos de Luzinete e Gustavo sobre o dia a dia da tanatopraxia.

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O coveiro

Um das mais tradicionais profissões que atuam com a morte é a função de coveiro. Responsáveis por cavar covas e jogar arreia sobre os corpos, eles são personagens marcantes nos sepultamentos. Muitos já não conseguem demonstrar tristeza pela dor dos familiares, graças aos muitos anos convivendo diariamente com as despedidas. Conhecido como Fiel, há 17 anos Genildo José dos Santos têm a missão de, 12 horas por dia, enterrar pessoas. Ele é um típico exemplo de coveiro que já não se emociona com os sepultamentos.

“De tanto ver e fazer enterro, a gente já sabe qual é o choro verdadeiro e qual é o choro falso. Nem todo mundo que vem para um sepultamento está triste de verdade, entendeu? Estou tão acostumado em fazer isso que já não sinto tristeza. Esse é um trabalho como outro qualquer e, como somos profissionais, já não é novidade enterrar o povo”, relata Genildo.

Mesmo sem se emocionar, como bom coveiro que é Genildo tem boas histórias de cemitério para contar. Boa parte delas é de autoria de amigos, mas ele não garante a veracidade. “Tem cara que diz que vê algumas coisas, mas não sei se é verdade. Não tenho como provar”, conta o coveiro, aos risos. Porém, ele alega que, após às 18h, existe um trecho do cemitério que causa arrepios. Mesmo assim, ele gosta do trabalho, não pensa em fazer outra coisa e já sabe como será seu enterro. “A morte é uma obrigação da vida. A gente vive e um dia teremos que morrer. Depois que vim trabalhar aqui passei a dar mais valor à vida. Nós precisamos viver intensamente porque, depois que a morte chega, a gente não faz mais nada”, diz o coveiro. 

 

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