Cotas e fraudes: do autoconhecimento à irregularidade

De um lado, estudantes fenotipicamente brancos se autodeclaram pretos ou pardos; do outro, universidades apontam irregularidades e excluem as matrículas desses discentes

por Ruan Reis qua, 12/02/2020 - 09:38
Julio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo . Julio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo

Se 2019 não foi considerado um ano tão fácil, imagine 2020, que começou o primeiro semestre expondo a famosa fraude cometida por candidatos que se autodeclaram pretos ou pardos.

Michelson Mendonça da Silva, 38, de pele branca e cabelos ruivos, foi denunciado após ter conseguido uma vaga no curso de medicina na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) se autodeclarando pardo no momento da matrícula. O caso envolveu a Procuradoria Jurídica e o estudante passou por um processo administrativo, no campus de Vitória da Conquista, na Bahia. 

Denunciada por um concorrente que se autodeclara pardo, Michelson da Silva, que se reconhece ruivo e se considera pardo por ter uma avó negra, disse que: "A questão étnico-racial é de identidade cultural, de como a pessoa se vê em sua comunidade". Ele ainda se justifica dizendo: "Em minha parte, não há nada ilegal, fiz tudo baseado no edital, já esclareci à universidade. Não tenho o que temer disso aí", pontuou ao se referir sobre o processo administrativo.

Em São Paulo, outro caso envolveu cinco alunos dos campi de Araraquara e Rio Claro que ingressaram na Universidade Estadual Paulista (Unesp) no vestibular 2019 e foram expulsos por fraude no sistema de cotas raciais. Os desligamentos foi publicado no Diário Oficial no dia 30 de janeiro de 2020. 

A Unesp informou, durante o procedimento de averiguação, que os alunos tiveram direito à ampla defesa, inclusive em grau de recurso e serão desligados da instituição em razão de inconsistência nas informações prestadas. 

O desligamento impossibilita aos estudantes punidos a realização de nova matrícula nos próximos cinco anos. "Por acreditar no caráter pedagógico da medida, a Unesp não ingressará em princípio com ações judiciais contra nenhum estudante ou ex-aluno porque, neste momento, prioriza cessar com irregularidades do tipo, atuando da maneira mais criteriosa possível", afirmou a universidade.

Em 2019, no Rio de Janeiro, o caso da estudante de pele branca, loira e de olhos verdes, Júnia Bastos, do curso de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi parar na justiça. Ela conseguiu uma vaga pela modalidade própria a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Questionada pelo Ministério Público Federal, a estudante contou que quando se matriculou apresentou a documentação exigida no edital e justificou ter usado a autodeclaração como cotista racial “por me considerar parda, bem como por vir de família de descendência negra, com traços claros de afrodescendência”, diz Júnia Bastos.

A banca avaliadora

A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como muitas outras que aderiram à verificação presencial, possui uma banca avaliadora formada, normalmente, por membros da comunidade universitária e representantes da sociedade civil com experiência em igualdade racial. Eles analisam se as características fenotípicas dos estudantes que se autodeclararam pretos ou pardos poderiam levá-los a serem vítimas de racismo.

Kátia Cunha, Diretora de Gestão Acadêmica da UFPE, fala sobre como funciona a banca na universidade. “As comissões funcionaram no mesmo período da matrícula. Nesse sentido, os candidatos cotistas que se declararam pretos ou pardos passam pelas comissões de heteroidentificação. Consideramos no procedimento a identificação por terceiros da condição autodeclarada.”

Cotas nas universidades

As cotas raciais nas instituições de ensino superior trata-se de uma política afirmativa de reserva de vagas destinada a estudantes de escolas públicas advindos da população negra  - pretos e pardos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - e indígenas, tornando-se obrigatória para as universidades federais a partir da lei n° 12.711/2012, que foi alterada pela lei n° 13. 409/2016. 

Kátia Cunha diz que “Foi construído com a participação de representantes do Movimento Negro, OAB, Grupos de Pesquisa que tratam sobre a temática, alunos, docentes  a nossa resolução, a qual dispõe sobre procedimentos para preenchimento de vagas reservadas aos candidatos cotistas no âmbito da Universidade Federal de Pernambuco em concursos públicos e processos seletivos.”

A mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Hallana Carvalho esclarece como funciona o quantitativo de vagas disponibilizadas nas cotas. “O percentual de vagas a serem reservadas para estas respectivas cotas levam em consideração a porcentagem destes grupos populacionais em cada estado do território nacional. Agrega-se às cotas raciais fatores de renda e também as cotas destinadas às pessoas com deficiência autodeclaradas pretas ou pardas, como consta nos editais de cada instituição”.

Em entrevista concedida ao LeiaJá, Hallana Almeida ainda fala um pouco sobre as políticas afirmativas e aprofunda sobre o assunto, abordando várias questões sociais. Veja a entrevista abaixo:

Qual é a sua opinião sobre as pessoas brancas que cometem fraudes se autodeclarado preto, pardo ou indígena?

Creio que esta seja a questão mais delicada deste processo. Existem dois fatores ligados a esta problemática: a falta de informação e a noção esvaziada do que é "mérito". 

A primeira questão diz respeito ao fato de que, historicamente, a questão racial sempre foi pouco debatida nos espaços educacionais (formais e não formais) e por isso uma parte significativa da população ainda permanece desinformada sobre as cotas no geral, mas principalmente sobre as cotas raciais.

Tal política foi resultante de muitos esforços de diversos segmentos da militância negra antirracista e de grupos de profissionais da educação que pautavam a democratização do acesso ao ensino superior. Há pessoas que ainda acreditam que "somos todos iguais" porque vivemos em um país "mestiço", mas o racismo é uma marca evidente e durável  da escravidão, que foi um dos maiores crimes da história e que possui reflexos até os dias atuais. 

Somos um país onde a população negra compõe em torno de 54% da população, segundo o IBGE, mas não estamos nessas mesmas proporções nos diversos espaços de prestígio e de tomada decisão. Mas a população negra é a maioria da população carcerária, dos desempregados, das pessoas em situação de rua... Essa conta não fecha e essas realidades só podem ser modificadas através da fomentação de Políticas de Igualdade Racial. 

Já o segundo ponto reside no fato de que as instituições de ensino superior, principalmente as mais antigas, como a UFPE, foram fundadas para atender aos interesses de formação profissional e intelectual das elites, majoritariamente branca. Estes detinham e ainda detém condições de competir por uma vaga que leve apenas em consideração a nota e, consequentemente, o mérito. Mas creio que só será justo falar de "mérito" quando as desigualdades de oportunidades tornarem-se menos discrepantes entre os diversos grupos que compõe a sociedade brasileira. 

Com a implantação das políticas afirmativas, deu-se início ao processo de democratização do acesso às universidades, com a entrada de estudantes negros, indígenas e baixa renda vindos de escola pública. Esse processo de inserção de novas narrativas e epistemologias vem promovendo transformações profundas que têm resultado no enriquecimento a nível intelectual, cultural, ético e moral das universidades. 

Existe também muitos equívocos em torno do que seria uma pessoa "parda", levando em consideração os aspectos da mestiçagem no Brasil. De fato, a mestiçagem em nosso país teve diferentes fases e finalidades ao longo da história. Primeiramente se deu através da violência sistemática aos corpos de mulheres negras escravizadas e indígenas no período colonial escravocrata. Depois, tornou-se política de Estado visando o branqueamento da população que era demasiadamente negra, virou alvo de ataques do racismo científico e de políticas eugenistas para mais tarde tornar-se símbolo da tão sonhada identidade nacional no pós-segunda guerra mundial através da ideia de convivência harmônica entre as três raças, o índio o negro e o branco.

Diante dessa querela, muitos indivíduos que são socialmente vistos como brancos por conta de seus traços e gozam de certos privilégios da população branca no Brasil, se apresentam como pardos para acessar o sistema de cotas e obviamente terão suas heteroidentificações indeferidas pelas comissões. 

Dito isso, creio que essa questão requer muito estudo e muita reflexão que deve anteceder o processo seletivo do Sisu (Sistema de Seleção Unificado), reforçando a necessidade da formação para a educação das relações étnico-raciais na educação básica. 

O que acontece quando a fraude é denunciada e comprovada, há alguma punição?

As instituições são responsáveis por receber as denúncias e apurá-las e depois direcioná-las ao Ministério Público (MP) para dar continuidade aos trâmites jurídicos, resguardando o direito de cada estudante de recorrer diante das decisões que forem tomadas nesse âmbito. Em última instância, no caso de comprovação de fraude, o estudante é desligado de seu curso, independentemente de qual período este esteja cursando.

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