Livro mostra a história das trabalhadoras domésticas

Professoras Danila Cal e Rosaly Brito e pesquisadores das áreas de Comunicação e Antropologia analisam o trabalho doméstico como forma de compreensão dos fenômenos sociais e políticos no Brasil

dom, 07/03/2021 - 12:15

O Dia Internacional da Mulher costuma ser uma data em que muitas mulheres são elogiadas e parabenizadas por diversas razões, incluindo pela força que elas têm. Força essa que muitas trabalhadoras domésticas carregam dentro de si, mas que, por vezes, passa despercebida, além de ser desvalorizada, assim como a profissão ainda é atualmente.

O trabalho doméstico, exercido em 92% do total por mulheres, em grande parte negras e de baixa escolaridade, é marcado no Brasil pelas desigualdades de raça, classe e gênero e foi um dos focos de estudos do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa) da Universidade Federal do Pará (UFPA). A pesquisa foi publicada, recentemente, no livro “Comunicação, Gênero e Trabalho Doméstico: das reiterações coloniais à invenção de outros possíveis” - editora CRV, com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A obra teve organização das professoras Danila Cal e Rosaly Brito, coordenadoras do Compoa. Doutoras, ambas fazem parte do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM) e da Faculdade de Comunicação da UFPA.

No livro, as autoras chamam atenção para as marcas do passado escravagista colonial brasileiro que são presentes na sociedade contemporânea e que influenciam o trabalho doméstico e as relações em torno dele até hoje. Além disso, incentivam a reflexão quanto às questões das desigualdades de gênero, racismo, feminismos etc.

Danila Cal ressalta que a pesquisa sobre o trabalho doméstico busca desenvolver um olhar mais complexo a respeito dele. Discute as relações sociais no Brasil contemporâneo para entender que a profissão é uma chave analítica para a compreensão dos fenômenos políticos, sociais e simbólicos no país.

Além disso, o livro mostra as possibilidades e tentativas de resistência por parte de grupos organizados de mulheres trabalhadoras, dos sindicatos, e como elas foram determinantes na mudança de legislação que ocorreu com a aprovação da PEC das Domésticas, em 201. A lei busca equiparar os direitos das trabalhadoras aos de outros trabalhadores, como hora extra, limitação da jornada de trabalho, dentre outros.

A professora Rosaly Brito diz que, historicamente, a relação entre mulheres e o trabalho doméstico é de longa duração e que remonta ao passado escravagista e colonial no Brasil. A invasão do continente americano pelos europeus foi extremamente violenta e causou genocídios de imensa proporção contra povos originários da América, afirma, e a escravização de negros africanos e índios pelos portugueses. “Desde a invasão pelos portugueses em seu território, o Brasil se constitui como uma sociedade agudamente violenta, desigual, com lógicas desumanas de dominação”, explica.

Rosaly Brito diz que a partir dessas lógicas desumanas de dominação surge a instituição do trabalho doméstico, à base do servilismo. Cita a relação entre a "casa grande e a senzala", em alusão à obra de Gilberto Freyre, publicada em 1933, que diferentemente da forma como é representada no livro expressa uma fratura, fundada no racismo estrutural, reiterada ao longo dos séculos e que continua a se atualizar no país.

“A relação casa grande e senzala institui um código que passou a reger, desde então, o trabalho doméstico no Brasil. As mucamas e amas de leite negras servindo as famílias brancas das elites do Brasil colonial. Essa é a base sobre a qual se desenvolveu o trabalho doméstico no Brasil”, destaca.

A professora comenta que as marcas do colonialismo presentes no trabalho doméstico hoje são inúmeras e expõe que no livro é possível analisar as atualizações dos padrões de dominação colonial. Entre eles, observa, destacam-se as chamadas “crias” de família na Amazônia, meninas pobres e quase sempre negras, que vêm dos municípios do interior, principalmente do Marajó, – mas não só – para viverem à custa das famílias e “ajudarem” nas tarefas domésticas, com a promessa de poderem estudar na capital – o que raramente acontece. “A ideia da 'ajuda' encobre um trabalho exaustivo assumido por elas, sem respeito a qualquer jornada, na maior parte dos casos sem remuneração. Ora, essa é uma atualização clara da escravidão”, afirma a professora.

Rosaly ainda conta que no livro existem várias histórias de gerações de mulheres, em uma mesma família, que foram submetidas a essa lógica de exploração e chama atenção para o fato de que a regulamentação do trabalho doméstico, apesar de ter existido desde sempre, ainda é recente no Brasil, sendo regulamentado pela lei complementar 150/2015. “Se a gente considerar que a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é de 1943, é inevitável a pergunta: por que só em 2015, mais de 70 anos depois, é que o trabalho doméstico foi regulamentado? Esse longo hiato temporal fala por si só”, questiona.

A professora ainda explica que esse tipo de trabalho simboliza uma forma de dominação que deriva das relações escravagistas estabelecidas no Brasil e que são fundadoras do racismo estrutural. “Pelos dados oficiais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2020, citados no livro, o Brasil tem cerca de seis milhões de trabalhadoras domésticas, o que corresponde a quase 15% das trabalhadoras ocupadas no país – 10% das brancas e 18,6% das negras”, observa Rosaly.

“Por isso, o livro mostra que o trabalho doméstico radicaliza a divisão sexual do trabalho e que é regido, de maneira exemplar, pela lógica das chamadas opressões interseccionais, como é discutido na literatura sobre gênero e do feminismo negro. As interseccionalidades respondem por uma forma de dominação em que se cruzam as discriminações e desigualdades de gênero, raça e classe”, conta.

Mídia e imaginário social

No capítulo de apresentação do livro há uma breve discussão sobre como a esfera midiática contribui para reafirmar preconceitos e estigmas em torno do trabalho e das trabalhadoras domésticas. Quanto a essa questão, Rosaly Brito explica que isso se dá por meio de representações que circulam massivamente e que conformam o imaginário social. Como exemplo, a professora cita as telenovelas, em que é possível perceber a imagem construída a respeito das trabalhadoras domésticas.

“As imagens construídas em torno delas são impregnadas de preconceitos e também de invisibilizações, elas aparecem como figurantes, objetos de desejo erótico, entre outros estereótipos. As telenovelas criam uma espécie de repertório comum em que o Brasil se vê e se reconhece, tanto do ponto de vista de classe, geração, sexo, raça e assim por diante. Nelas, as hierarquias sociais se naturalizam”, expõe.

Em relação a isso, a professora Danila Cal aponta para a necessidade de desconstrução e reconstrução desse olhar sobre os papéis sociais e simbólicos tradicionalmente atribuídos às mulheres negras. “O Jornalismo, por sua vez, teve um papel muito importante no debate em torno da ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas. Contudo, o foco dele foi principalmente quais implicações essa mudança na legislação traria para os empregadores. Houve um debate amplo na mídia sobre a PEC das Domésticas, mas o que observamos foi que o foco principal era voltado para os empregadores”, analisa Danila.

A publicação do livro surgiu em meio ao contexto da pandemia que também trouxe diversas implicações para a vida das trabalhadoras domésticas. De acordo com o IPEA, a primeira vítima da covid-19 no Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica que havia sido contaminada pela empregadora que havia estado na Itália. Rosaly Brito explica que a pandemia expôs as desigualdades já existentes nas mais diferentes sociedades, aprofundando fraturas estruturais. “No caso das trabalhadoras domésticas, como de resto dos trabalhadores pobres do Brasil em geral, com claro corte racial também, a pandemia aprofundou as precariedades e violências já existentes”, complementa.

A professora ainda cita a morte do menino Miguel, filho de Mirtes Souza, trabalhadora doméstica, que caiu de 35 metros de altura em um prédio de classe alta no Recife, quando sua mãe havia levado o cachorro da família para passear e o deixou aos cuidados da patroa. “O caso é focalizado no penúltimo capítulo do livro e, tristemente, denuncia de maneira exemplar como o trabalho doméstico, em pleno século XXI, atualiza formas de dominação inaceitáveis que o Brasil ainda reluta em admitir e encarar”, diz Rosaly.

Ainda sobre o livro, Danila Cal afirma que ele é uma chave de leitura fundamental para estudantes e pesquisadores das áreas de Ciências Sociais, Comunicação, Ciência Política, Serviço Social, dentre outras áreas que se interessem pela temática do trabalho doméstico.

A professora conta que outro ponto muito importante do livro é que, além de autores, pesquisadores da área da Comunicação e da Antropologia, ele traz também três capítulos construídos a partir das vozes de mulheres que foram trabalhadoras domésticas ou sindicalistas atuantes na defesa dos direitos dessas trabalhadoras. “Isso significa um modo distinto de abordar a temática não apenas a partir do nosso viés como pesquisadoras, mas trazendo também as vozes, as concepções políticas e as percepções sociais dessas mulheres que vivem diretamente essa situação. Essa é uma contribuição fundamental”, finaliza Danila.

O livro pode ser acessado gratuitamente aqui.

Por Isabella Cordeiro.

 

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