Da periferia de PE, Domitila conquistou Berlim e o mundo

A modelo e designer lançou uma marca de biquínis e suas peças, produzidas por artesãs da periferia pernambucana, vão estrear na Semana de Moda de Berlim na próxima semana

por Taciana Carvalho sex, 11/01/2019 - 10:26
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Domitila Barrios de Chungara foi uma líder operária que entrou para a história da Bolívia por sua intensa luta em defesa dos que mais precisavam e pela liberdade democrática. Uma das suas frases mais marcantes foi passada por gerações: “As injustiças não serão para sempre”. Não muito longe, uma jovem da periferia do Recife, mais exatamente nas redondezas do bairro conhecido como Linha do Tiro, receberia não somente o nome da bolivariana, mas também tomaria para si os ensinamentos deixados: a pernambucana Domitila Barros de Oliveira Nascimento, nascida no Morro da Conceição, na Zona Norte do Recife, transformou os obstáculos em superação e conquistou o que para muitos pode parecer quase impossível.

Aos 34 anos, Domitila é empresária e dona de uma marca de biquínis, a Sheisfromthejungle, uma brincadeira com a expressão “ela é da selva”. A designer conseguiu um marco único na história da moda do Estado: pela primeira vez as peças produzidas em Pernambuco serão destaques em um dos maiores eventos da área no mundo, a Semana de Moda de Berlim, que acontece a partir da próxima segunda-feira (14). Todas as peças são elaboradas por um grupo de mulheres que moram na Linha do Tiro e comunidades próximas.

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O LeiaJá foi até a comunidade da Linha do Tiro conhecer com detalhes a história de Domitila. O local de encontro foi no Centro de Atendimento a Menino e Meninas (CAMM). A entrevista foi marcada na ONG não de forma aleatória. O CAMM foi fundado há 35 anos pelos seus pais, Roberta e Ademilson Barros, que são professores. Foi exatamente nesse mundo social e sabendo da importância da educação na vida de uma pessoa que Domitila nasceu e foi criada. Sua mãe chegou até a conhecer Domitila Chungara, em um encontro no Brasil sobre empoderamento.

“Já nasci dentro do projeto. Quando nasci já moravam 30 crianças praticamente dentro da minha casa. Eu não conheço outra realidade, eu me criei nessa coisa do mundo social, de trabalho social e da revolução. O meu próprio nome diz tudo e ele veio com muita força. Antes de eu nascer, todas essas coisas já estavam, entre aspas, ao menos no âmbito social, premeditadas”, contou.

Domitila contou que aos 13 anos começou a dar aula de leitura às crianças do CAMM por incentivo dos seus pais de modo que aprendessem a ler e escrever, mas ela fazia em um formato lúdico e até mesmo teatral, que despertava ainda mais atenção. Aos 15 anos, foi convidada pela Unesco para ir até Flórida, nos Estados Unidos, representar o Brasil no Fórum Social Sonhadores do Milênio, onde foram convidados jovens de todos os países do mundo, que faziam algo para mudar a realidade da comunidade que morava. Domitila se tornou, a partir daí, uma embaixadora da periferia do Recife pelo mundo.

Dali em diante despertaria cada vez mais o desejo de ajudar sua comunidade. “Fiquei encantada com a possibilidade de ser uma diplomata da minha realidade porque os EUA não foi para mim só outro país, foi outro mundo. Tive esse desejo de continuar fazendo alguma coisa não só social, mas também de estar representando a minha comunidade em outros mundos, até mesmo outros mundos dentro do Brasil porque dentro do nosso país tem muitos universos paralelos”, observou.

Começaria aí a trajetória de crescimento por meio da educação. Aos 17 anos, ela iniciou o curso de Serviço Social e aos 21 anos, já formada, um passo maior foi dado: conseguiu uma bolsa de estudo em Berlim, capital da Alemanha, para fazer um mestrado na Freie Universität Berlin. Na época, a bolsa havia sido concedida apenas a cinco estudantes estrangeiros entre candidatos do mundo todo. Mais um sonho que parecia impossível para uma jovem residente em um bairro periférico se tornaria realidade: fez mestrado em Ciências Políticas e Sociais.

Falante, vaidosa, entusiasta da vida, seria na faculdade que Domitila descobriria outra paixão: o mundo da televisão e da moda. “Chamava a atenção não só por ser negra, ter cabelo volumoso, mas também pelas minhas sardas. Andando no corredor, uma menina que estava fazendo estágio em uma agência que  selecionava elenco para novelas alemãs me parou e me convidou. Eu passei na seleção, fiz a novela por dois anos e comecei a trabalhar como modelo. No Brasil, quando eu era pequena, o meu sonho era ser Chiquititas”, recordou.

Domitila, que conseguiu a nacionalidade alemã há 10 anos, chegou a ser funcionária pública por um tempo naquele país, mas o desejo artístico no coração sempre foi muito grande. “Quando a menina me chamou na faculdade, eu vi ali a possibilidade de desenvolver um sonho, que para mim era fora da realidade no Brasil e trabalhando nessa área comecei a entender o sistema, o mercado de moda, como as coisas funcionavam e se organizavam: da foto à venda, da comercialização à marca”, disse.

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Da periferia para o mundo

Depois do aprendizado, há cerca de dois anos, Domitila iniciou a transição para um passo ainda maior: se tornar empreendedora criando sua própria marca. Mais um objetivo estava traçado: trabalhar sem perder as raízes de forma a ajudar as colegas da comunidade em que nasceu.

“Surgiu a ideia de falar com as minhas amigas do Brasil, que sempre gostaram de moda e praia. Muitas tiveram filhos e não podiam ir trabalhar fora, outras se aposentaram, mas não têm direito ao benefício, foi aí que pensei em inventar a marca no qual elas pudessem trabalhar sendo suas próprias chefas, ou seja, de forma autônoma”, explicou.

A proposta teve resultados rápidos e funciona da seguinte forma: Domitila explica o design do biquíni que está precisando sendo alguns feitos na máquina e outros à mão, que pode levar dias até ficarem prontos. Já outras artesãs possuem modelos exclusivos, que só são repassados para a empresária. Depois, ela vê como o mercado funciona no exterior e pede outras remessas.

A primeira remessa pedida foi de apenas 10 peças enviadas para a Alemanha: em 24 horas todas foram vendidas com a divulgação das amigas e de uma importante ferramenta de trabalho: as redes sociais. Já a segunda, foi de 50 peças e assim foi crescendo cada vez mais.

Para quem pensa que parou por aí, o céu parece não ser o limite para Domitila. Ela expandiu a marca e agora para o segmento de biojoias, todas feitas de capim dourado. Hoje, os produtos de Domitila já ultrapassaram a Alemanha e também são vendidos na Suíça e nos Estados Unidos em lojas de multimarcas, mas o foco principal é a venda online, que envia para todos os países com frete gratuito. Ao todo, são 12 meninas que trabalham com Domitila em uma forma de parceria que ganhou o mundo.

Pés no chão na Semana de Moda de Berlim

O convite para que as peças produzidas na periferia de Pernambuco sejam destaque na Semana de Moda de Berlim, no encerramento do evento também conhecido como Berlim Fashion Week, no dia 18 próximo, pode e deve ser um divisor de água na vida do grupo. O desfile será com as peças novas da coleção Primavera-Verão 2019. “As modelos, incluindo eu, vão desfilar com os biquínis e biojoias e todas vão desfilar descalças. É a forma que encontrei de representar que a gente é pé no chão. A gente crê que depois da Semana de Moda de Berlim há a possibilidade de outras lojas multimarcas se interessarem pelos produtos”, previu Domitila.

A participação no disputado evento também pode realizar mais um sonho: abrir portas para à venda no Brasil. “Porque somos brasileiras, produzimos no Brasil, mas ainda não tivemos oportunidade de trabalhar no Brasil, seria um sonho da gente também”, disse.  

Para ela, o sonho não pode parar. O objetivo, no futuro, é criar na comunidade um ateliê que poderia ter no comando uma das artesãs, a já escolhida Elba Severina, que seria uma espécie de multiplicadora ensinando e engajando mais meninas da área. Na casa de Elba, já há cinco máquinas de costura, o que pode parecer pouco para alguns, mas para elas é o início de uma trajetória que está sendo construída com otimismo e muita força de vontade.

“Nós somos seres humanos e precisamos de outros seres humanos em vários âmbitos. Meu pai falava ninguém é uma ilha que sobrevive ali só rodeado de água. Então, se não fosse as meninas isso não poderia ser possível porque muitas vezes pensei em desistir porque trabalho ainda como modelo para poder financiar a marca. É muito importante ver que nós enquanto mulheres apoiamos umas as outras. Somos mais fortes unidas porque se não fosse a equipe eu não conseguiria”, agradece Domitila.

Elba, que costura desde os 13 anos, conta que tudo é feito com a maior perfeição possível. “Domitila apresenta sempre os modelos e a gente vai executando a medida que ela vai comandando. É um sonho da gente, da nossa comunidade, de saber que as peças criadas na comunidade estão indo para tão longe e sendo muito bem feitas. Com certeza, o sonho pode ser realizado correndo atrás, com foco, força, fé, disposição e união. Domitila, com certeza, é uma mulher muito guerreira, nem eu acreditava tanto assim nela, mas ela realmente é show”, ressaltou, também falando orgulhosa que tudo o que tem desde o básico até a casa no alto da comunidade foi conquistado por meio da confecção e amor ao trabalho.

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Os convites não param. Uma empresária eleita como uma das 10 designers revelação da Europa, de acordo com a revista Vogue do Reino Unido, convidou Domitila para que suas biojoias sejam destaques na Semana de Moda de Londres. O evento acontece no dia 16 de fevereiro.  

CAMM 

O Centro de Atendimento a Meninos e Meninas (CAMM) fundado pelos pais de Domitila é uma organização não-governamental. Funciona por meio de doações não só de organizações internacionais, como também da ajuda de grupos que realizam eventos solidários. Além disso, toda a família se envolve no projeto. O espaço foi um presente de uma doutora suíça que veio ao Brasil realizar um estudo sobre as crianças que moravam na rua. Ao conhecer a proposta do centro, doou a casa. Domitila também destina 10% do lucro de sua marca para o centro.

A princípio, o CAMM realizava cursos profissionalizantes e, depois, foi expandido para o Jardim de Infância. “Começou na casa dos meus pais quando três crianças bateram na porta e perguntaram por comida e minha mãe perguntou a eles se não queriam aprender a ler, foi assim que tudo começou”, lembrou Domitila.

Na ONG, com paredes pintadas de forma divertida em um ambiente sereno, muitos jovens conseguiram ter a vida transformada e continuam a trabalhar no local: Elisangela, que iniciou no projeto aos três anos de idades, hoje é pós-graduada e coordena o Jardim de Infância. Ao todo, cerca de 80% dos educadores do projeto são jovens que se formaram no local.

Paralelo ao ensino, também há outras atividades como aprender instrumentos musicais como repercussão, além de capoeira, dança e até mesmo grafitagem, teatro e oficinas de educação ambiental. O objetivo maior é que seja um espaço onde as crianças possam viver uma infância saudável, sem medo e, principalmente, com segurança. Atualmente, são 70 crianças atendidas diretamente e mais de 300 famílias beneficiadas indiretamente..

Para Domitila, que perdeu a melhor amiga assassinada na sua frente quando tinha 12 anos de idade e que sabe da violência que ainda existe no bairro, muitas vezes esquecido pelo poder público, o sentimento é de esperança. “Eu me sinto melhor na Linha do Tiro até mais do que em muitos lugares da Europa. A comunidade mudou e me sinto orgulhosa e contente quando subo aqui e vejo muita gente que passou pelo CAMM, que hoje em dia trabalha em shopping, universidades e como office-boys. São pessoas que conseguem ter dignidade de vida e, muitos, uma nova vida”, finalizou.

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