Artistas trocam pincéis por agulhas e elevam a tatuagem

É cada vez maior o número de artistas plásticos que mergulham na área da tatuagem redefinindo e valorizando essa expressão artística

por Paula Brasileiro sab, 28/09/2019 - 10:00
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens Nando Portela, João Lins e Raoni Assis apostaram na tatuagem como forma de expressão Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Tatuar o corpo pode parecer uma atitude bastante moderna, no entanto, essa forma de expressão já contabiliza mais de cinco mil anos de história. Um dos registros mais antigos foi descoberto nos restos mortais de um homem que teria vivido 3.300 anos antes de Cristo. Os pesquisadores que encontraram o fóssil, em 1991, chegaram à conclusão de que Ötzi - como foi batizado -, teria tatuado diversas linhas em seus punhos e tornozelos a partir da fricção de carvão em cortes verticais feitos na pele. 

Os desenhos gravados na pele já vistos com preconceito, no entanto, com sua popularização e a profissionalização de tatuadores, hoje é cada vez maior o número de adeptos. Mais que isso, à tatuagem foi conferido o status de arte e, assim sendo, está conseguindo conquistar cada vez mais o respeito das pessoas na sociedade.

O caráter artístico vem chamando a atenção não só do público que decide se tatuar, mas também de artistas que antes se dedicavam a outras formas de expressão até se encontrarem com as tintas que, ao invés de pincel, pedem agulhas para se expressar. 

João Lin (@joaolin) é um deles. O artista tem em seu currículo trabalhos com ilustração, quadrinhos, teatro, vídeo arte, intervenção, design, literatura e música experimental. Há dois anos, após desenvolver um projeto pontual em que a tatuagem estava presente, ele descobriu um mundo de possibilidades que lhe arrebatou. "A minha intenção no início não era me tornar tatuador de fato, era fazer uma experiência como artista visual com um novo suporte e novas ferramentas que seriam desse universo. Mas o que aconteceu é que como eu não tinha essa clareza da dimensão dele e como isso também ia dialogar com o que eu já fazia, eu me surpreendi com as possibilidades e também com as descobertas que eu fui fazendo à medida que comecei a tatuar". 

Ele conta que começou a aprender a nova técnica com o amigo e tatuador Nando Zevê, proprietário do ZV Tatuagem e Galeria, onde hoje Lin atende seus clientes. O aprendizado o impactou não só tecnicamente mas, também, criativamente: "na verdade, ampliou muito a minha visão de desenho, a minha surpresa inicial grande foi quando eu percebi que meu desenho foi mudando quando eu comecei a tatuar por questões muito diversas". 

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João conta que encontrou nessa área uma complexidade e uma forma de expressão mais poderosas do que ele podia imaginar e que a relação de troca que há na tatuagem se manifestou de forma intensa em seu trabalho. "Eu sempre achei uma coisa muito desafiadora você trabalhar, construir uma marca com o outro. Isso eu acho super complexo. O desenho é um elemento só, a tatuagem de fato ela é muito mais ampla. Isso eu sempre achei algo quase inatingível. Ter essa abertura de construir dessa forma um trabalho de desenho, normalmente os desenhistas trabalham muito individualmente, eu achava muito difícil que eu pudesse na tatuagem ter de fato esse trânsito e essa condição de fazer algo que depende do outro de uma maneira essencial". 

Raoni Assis (@assisraoni) e Nando Portela (@nandocportela), que atuam no Nyx Stúdio, também são tatuadores com experiências prévias nas artes visuais. O primeiro - que, inclusive afirma não se achar um tatuador mas sim "um ilustrador que tatua" -, partiu para as agulhas após alguns amigos pedirem desenhos seus para tatuarem. Trabalhando com a arte na pele há cerca de quatro anos, ele fala sobre as particularidades do ofício: "É uma superfície diferente. É específico, o próprio ritmo da mão, você não tem a mesma velocidade (como quando faz uma ilustração). É uma técnica específica, assim como quando você faz na parede com spray, com tinta acrílica, com aquarela, cada coisa tem o seu jeito. Eu faço só desenhos meus, ainda me quebro muito de fazer, gosto muito de melar de tinta os meus trabalhos e na tatuagem não dá, aí pra chegar no que eu gosto eu ainda me quebro muito". 

O "ilustrador que tatua" trabalha no estilo free hand, que consiste em criar desenhos na hora diretamente na pele do cliente. Ele comenta que a relação de confiança e responsabilidade de estar marcando sua arte em outra pessoa é algo que faz diferença na hora de criar: "Eu acho que a parte mais difícil pra mim é essa, é em uma pessoa. As primeiras que eu fiz foram em amigos, e eu sei o que eles estavam esperando, mas você fazer uma tatuagem num cliente aleatório, um negócio que vai ficar marcado, a pessoa tem que gostar muito do que você tá fazendo, ela já tem que gostar da sua linha de trabalho pra te chamar". 

Para Nando Portela, pintar em telas que saem caminhando por aí levando sua obra é algo tão significativo que já causou embates consigo mesmo: "Isso é uma coisa que já me gerou um conflito por conta da exposição em si, mas é massa. A questão de ver na pele, quando já está cicatrizada, já dá aquela felicidade". O tatuador começou a trabalhar com artes visuais em 2016, fazendo pintura em acrílica e murais, no ano seguinte já estava tatuando. "Em algum momento eu tive um insight e lembrei que na minha infância eu comentava que seria tatuador, e isso foi reprimido logo, mas depois eu me lembrei desse desejo", rememora o artista.

Portela acredita que a tatuagem, atualmente, tem um potencial de atração do público até maior do que outras expressões artísticas. Ele trabalha com desenhos próprios, inspirados na cultura popular pernambucana, com pitadas de movimento armorial e literatura de cordel, e sua produção na tatuagem já está lhe levando para outras expressões: "O meu trabalho individual me fez estudar o artesanato em si e de algum modo a tattoo me trouxe para a produção de artesão. Consegui ver que o traço que construí para a tattoo eu consigo levar agora para cerâmica e para madeira". 

Arte autoral

Poder tatuar a obra de um artista autoral é algo que vem ganhando cada vez mais espaço entre os adeptos da tattoo. Desenhos com traços característicos, que carregam com si uma assinatura, têm além de um estilo próprio um valor subjetivo maior. "Vai além não só de você ter uma exclusividade mas é esse tatuador que agora é reconhecido no lugar do artista plástico também, esse tatuador que vai trazer uma poesia, uma poética com ele. É o interesse da pessoa (cliente) de querer saber como essa pessoa construiu isso, o que faz a pessoa investir nesse tipo de trabalho, ser um artista que você se importa com a narrativa que ele traz, acho que isso é uma coisa bacana", diz Nando Portela. 

Para Raoni Assis, a construção da obra durante a tatuagem é mais complexa do que quando assina um contrato para criar uma ilustração. Esse já vem com cláusulas que garantem certa interferência do contratante, mas na tatuagem, isso não acontece e a construção do trabalho acaba sendo conjunta. "Eu acho que não tem muito limite (de interferência), é dentro do que você está disposto a fazer", sintetiza o artista. 

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Já João Lin afirma que se expressar através da tatuagem envolve uma mágica especial que o faz querer cada vez mais enveredar por esse caminho. Para ele, a intensidade da troca desde o contato inicial com seu cliente até o produto final confere à sua obra valor único que pode levar seu fazer artístico muito além: "É você perceber o seu desenho de uma forma dinâmica e viva. Ele ganhou vida porque ganhou a personalidade da pessoa, então já não é mais o desenho que tá no papel, o desenho do papel é só meu mas quando ele tá com você, você faz o seu discurso com aquele desenho. Então, não é mais o meu discurso apenas. O discurso daquele desenho é alterado pelo discurso de quem o carrega. Quem já vem da tatuagem acho que não percebe tanto isso, porque isso já é o que a pessoa faz, isso já é natural. Mas, pra mim, não era natural. Ver o desenho vivo foi uma experiência muito impressionante e foi o que me deixou com tesão de tatuar".

Imagens: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

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