Sarapatão: quando a representatividade vem servida à mesa

Chef pernambucana Marília Azevedo usa a cozinha como ferramenta de valorização e empoderamento da identidade LGBTQI+

por Paula Brasileiro sex, 11/06/2021 - 14:47

Houve tempo em que a relação amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo era considerada crime em alguns lugares do mundo. Na Nova Iorque dos anos 1960 era assim, e a comunidade LGBT da época era fortemente reprimida pelas forças policiais. O movimento de reação dessas pessoas, iniciado em 28 junho de 1969, ficou marcado na história como a Revolta de Stonewall e consagrou o sexto mês do ano como o Mês da Diversidade, sendo aquela data eternizada como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+.

Passadas pouco mais de seis décadas desde a Revolta de Stonewall, algumas coisas mudaram para a população LGBT ao redor do planeta. Porém não muitas. No Brasil, por exemplo, já são aprovadas medidas como o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal (2011); o direito de transexuais e transgêneros mudarem seus nomes de registro civil sem necessidade de cirurgia (2018); e  o enquadramento da homofobia e transfobia na lei de crimes de racismo (2019), entre outros. 

No entanto, nesse mesmo país, 237 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) foram vítimas de mortes violentas, só no ano de 2020, segundo o Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil. Os números alarmantes colocam a nação brasileira no topo do ranking de países que mais violentam e matam essa população, sobretudo travestis e mulheres transexuais. 

Sendo assim, resistência tem sido palavra e atitude mais do que presentes e necessárias para aqueles que assumem alguma dessas sete letras em suas vivências. E para resistir e existir com a maior plenitude possível, são usadas as mais diversas ferramentas, como a arte e até a gastronomia. É o caso da chef pernambucana Marília Azevedo, que hasteou a bandeira ‘do vale’ em seu negócio e bancou a causa, desde o nome do restaurante - Quintal das Rachas - até o cardápio.

Representatividade no prato

O envolvimento de Marília com a cozinha vem desde a infância, quando ela acompanhava o pai à beira do fogão empoleirada em seus braços: “Ele era gordo, me apoiava na barriga dele e já me ensinava”, conta a chef em entrevista ao LeiaJá. Além do pai, a avó também foi a outra responsável por iniciar a então menina no mundo da culinária. 

“O Quintal é minha maior realização profissional até agora”, garante a Chef Marílai Azevedo. Foto: Reprodução/Instagram

Já adulta, a chef passou pelos mais diversos ofícios até assumir a cozinha como profissão. Ela foi promotora de vendas, estudante de biologia e vendedora ambulante no Carnaval de Olinda, sempre intercalando uma função e outra com trabalhos na área da gastronomia. Até que em meados dos anos 2000, motivada pelos amigos que já conheciam o seu talento na cozinha, decidiu estudar e se profissionalizar, tendo se especializado na culinária regional. 

Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, Marília se viu desempregada, assim como tantos outros brasileiros, e decidiu arriscar tudo. Da necessidade de se adaptar aos novos tempos veio a coragem de montar o próprio negócio fazendo o que sempre gostou, comida nordestina. E essa veio acompanhada de um outro elemento: o empoderamento. Lésbica, casada e “mãe de pet”, a chef batizou o seu restaurante, lcoalizado no bairro do Bonsucesso, em Olinda, como Quintal das Rachas.

O nome causou um certo estranhamento a princípio, até mesmo entre os mais próximos, mas Marília estava firme na escolha. “Isso foi questionado no início, até pela minha mãe. Mas é o que eu sou, eu sou sapatão, eu sou lésbica e ponto, acabou aí. Não são duas rachas? Então é pra levantar a bandeira, pras pessoas virem pra cá sabendo que vão encontrar duas sapatão, atendendo, casadas, felizes com seus pets e dando muito amor a quem estiver disposto a receber esse amor (sic)”, diz em referência à sua esposa Camila, que a ajuda a tocar o negócio aos finais de semana. 

O Sarapatão é uma das especialidades de Marília. Foto: Reprodução/Instagram

O apoio da companheira é algo que Marília celebra e aponta como um dos fatores de sucesso do Quintal. Além disso, os ensinamentos herdados do pai e da avó e a vontade de compartilhar acolhimento e afeto são as demais forças que movem a chef. “Eu sei da dificuldade da gente que é lésbica, ou gay, ou negro, ou de uma minoria ter um lugar que você consiga vir e se sentir na sua casa, à vontade. O objetivo do Quintal é esse. Eu abro a minha casa, tem meus cachorros, fica todo mundo junto, é um lugar onde eu quero agregar. Eu passo esse cuidado, esse amor, esse carinho pra comida. O segredo da chef é fazer com a maior dedicação como se eu estivesse fazendo pros meus pais, que adoram minha comida”.

Marília frisa, porém, que o seu restaurante não é exclusivo para o público LGBTQIA+. O propósito do lugar é servir como ponto de reunião para aqueles que gostam da culinária regional, independente de qualquer outro atributo. “Tenho vários clientes que não são gays mas que vêm e acham massa, trazem os amigos, e a gente vive todo mundo em harmonia. É um espaço para as pessoas virem, pra gente viver cada um com sua diferença e cada um respeitando o outro, como deveria ser o mundo”. 

Sarapatão

No cardápio da chef Marília estão pratos como o Miúdo da Gatinha, o Arroz de Polvo e o Sarapatão, esse último uma das especialidades da casa, segundo ela. O nome do prato, um típico sarapatel, também foi sugestão da esposa Camila, durante um jantar entre amigos, e pegou. Na receita, os ingredientes tradicionais que são usados em todo e qualquer preparado como esse. Os segredos, no entanto, vem de berço. São o modo de cortar os legumes, em pedaços bem pequenos, e de engrossar o caldo do alimento no liquidificador, tudo ensinado pela sua avó. “Dica de avó não tem erro”, brinca. 

Confira a receita do Sarapatão.

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Serviço

Por conta das restrições referentes à pandemia do novo coronavírus e de um projeto paralelo ao qual Marília Azevedo se dedicará no final deste primeiro semestre, o Quintal das Rachas passará cerca de um mês sem atividades. Enquanto isso, a chef manterá postagens semanais na página do restaurante no Instagram, com dicas e receitas para o público. A ideia é reabrir a casa, em seguida, repaginada, mas sem deixar de lado a pegada acolhedora e descontraída que já se tornaram marca registrada.

 

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