Aprovação do aborto na Argentina pode impactar no Brasil

A avaliação foi feita pelo médico pernambucano Olimpo

qui, 31/12/2020 - 20:59
Senado Argentina/Fotos Públicas Senado Argentina/Fotos Públicas

LeiaJá: A aprovação do aborto na Argentina tem o potencial de gerar impactos no Brasil?

Dr. Olímpio: Claro que sim. É interessante que se coloca em contexto histórico, desde o fim das ditaduras na américa latina o brasil era visto como um país que estava na frente, exemplo a ser seguido da década de 80 até recentemente. Colocamos abortamento como assunto de saúde pública, isso caminhou muito bem até e agora é o contrário, outros que estavam atrás estão avançando, como é o caso da Argentina, Uruguai, da Colômbia, a Bolívia está para mudar sua legislação a qualquer momento e o Brasil está ficando cada vez mais isolado em relação aos direitos humanos. Lembrando que direitos reprodutivos fazem parte dos direitos humanos.

LeiaJá: Com o resultado da votação um dos termos mais citados no Twitter foi “assassinato”, fenômeno muito motivado por questões político-religiosas.

Dr. Olímpio: Quem está ao lado de que aborto seja crime por causa do feto, do embrião, é uma falácia. Primeiro que lei não é efetiva, como já foi comprovado, ela na verdade aumenta o número de abortos. Outra coisa é que essas pessoas não vão fazer protesto nem querem que feche clínicas de reprodução, que descartam embriões. Usam um percentual mínimo e os demais são descartados, mas as pessoas não pedem o fechamento dessas clínicas porque o problema não são os embriões, o problema é o corpo da mulher, é o machismo, o ódio contra as mulheres usado como força política.

Eu sempre coloco para minhas amigas, colegas religiosas, que o direito de não fazer o aborto é garantido em todos os países. Se você não quer, em qualquer situação, ninguém vai obrigar um aborto para uma pessoa que segue sua religião. Mas a religião não pode pautar o Estado. A diferença de pensamento numa democracia sempre existe, mas eu acredito que esse assunto é trabalhado de forma errada. A gente tem discursos religiosos dando informação errada para a população. A pergunta não é se você é a favor ou contra o aborto, mundo é contra. Eu sou contra o aborto. A ciência, a OMS, não quer que as mulheres sofram, que o aborto é um sofrimento, o que a gente tem que fazer é tratar o assunto à luz da ciência. Não querer matar as mulheres ou achar que elas devem sofrer, é acolher elas. Existem duas maneiras de se olhar o problema: uma é à luz da ciência, outra é com o preconceito, misoginia, que é ineficiente, aumenta o número de abortos e mata mulheres. Vemos uma política negacionista, de deboche dos direitos humanos.

Não sei o que aconteceu com as pessoas nesse ódio que estamos vivendo. O que a gente vê que esses pensamentos estão amparados, esse pensamento está no poder. Mas é minoria. A pergunta que se faz não é se é contra o abortamento, é se a pessoa é a favor que uma mulher que faz um abortamento seja presa por no mínimo 3 anos. Se conhece alguém que já fez um aborto. Essa pessoa merece ser presa? Devemos prender 20% das mulheres brasileiras?

LeiaJá: Seguindo essa mesma linha de pensamento, muitas pessoas que se opõem ao aborto se dizem “a favor da vida”. Porque, na sua visão, essa é uma maneira falaciosa de se expressar?

Dr. Olímpio: A ciência é muito clara ao mostrar que se você é a favor da vida, tem que ser a favor da descriminalização do aborto, porque ela evita a morte das mulheres e diminui o número de abortos. Em todos os países que mudaram a lei o número de aborto caiu, não aumenta. Quando elas procuram ajuda, o sistema de saúde pode fazer suas ações. E a mulher que procura o serviço não quer abortar, ela quer ajuda. A mulher que procura fazer um abortamento de forma segura com apoio do Estado não volta a abortar, porque ela recebe acesso a um método contraceptivo seguro de longa duração, geralmente o DIU. Quando o aborto é ilegal ela não tem ajuda, faz sozinha no segredo e volta a abortar porque lhe é negado o acesso ao método contraceptivo, o que mostra que as duas coisas, contraceptivos e descriminalização, caminham juntos. Todas as democracias do mundo onde respeitam a ciência, respeitam o estado laico, qualquer país em que falamos “é um país legal” já mudou a sua lei. As leis do Brasil estão se aproximando das teocracias islâmicas onde a mulher é tratada com muita misoginia. O Brasil está cada vez mais longe das democracias ocidentais.

LeiaJá: Com a diversidade de métodos contraceptivos que existem, é comum que muitas pessoas tratem a gravidez como algo que só acontece por vontade ou irresponsabilidade da mulher, ignorando as dificuldades de acesso e informação. Como você avalia essa questão?

Dr. Olímpio: No Brasil, os métodos mais seguros não acontecem como política pública. O DIU seria 18, 20 vezes mais seguro que a pílula, que depende da pessoa, depende se tomou e vomitou, se tomou outros remédios, se esqueceu. A mulher pode engravidar muito mais fácil com pílula do que com DIU, mas poucas mulheres têm acesso. Acredita-se que com o DIU a gente poderia diminuir muito o número de abortos porque não existe aborto sem gravidez indesejada. Precisamos de educação sexual nas escolas, discutir gênero, a participação do homem nessas coisas, nos casais. Ter acesso a falar sobre isso, sobre métodos contraceptivos, sobre as consequências da gravidez na adolescência. São ações da sociedade e políticas públicas. Acesso ao DIU, a implantes de progesterona que também é muito mais seguro que a pílula. Vamos ver para o ano com uma tristeza muito grande o aumento de mortes maternas no Brasil.

LeiaJá: A morte por aborto é muito comum, mas pouco percebida e muitas vezes ignorada. Como costuma ocorrer o abortamento ilegal e porque tantas mulheres morrem?

Dr. Olímpio: Eu fui ao Supremo Tribunal Federal (STF) e contei lá a rota do aborto inseguro que termina com morte no Brasil. Acontece a gravidez indesejada e o abortamento ilegal inviabiliza a ação médica da saúde. A relação médico-paciente é uma relação de verdade e empatia, mas é muito difícil, principalmente no SUS, uma mulher procurar orientação médica para uma gravidez indesejada.

Quando chega no SUS, ela tem medo de contar que provocou o aborto, porque  ela tem medo de que possam quebrar seu sigilo e pessoas próximas a ela saibam, que conste no prontuário, que seja comentado no hospital. Ou de sofrer uma outra violência como uma lição de moral, uma violência obstétrica, discriminação. É proibido pelo código de ética médica.

Ela chega com dor abdominal e ela sem falar que está grávida ou que provocou o aborto, o médico pode ser levado a achar que se trata de uma infecção intestinal, urinária ou virose quando ela tem um quadro de infecção. Essa mulher retorna para casa com um tratamento de antibiótico ou sintomático quando na verdade deveria estar na maternidade recebendo antibiótico venoso, fazendo esvaziamento uterino, quem sabe cirurgia. Quando ela retorna, o estado já é muito grave que não dá mais para salvar a sua vida. Ocupa a UTI, aumenta o custo do SUS e ela termina morrendo.

LeiaJá: Na Argentina, em 2019, houve uma tentativa mal sucedida de aprovar o aborto, com um forte movimento que deu certo agora. Apesar de um perfil de sociedade muito semelhante, até hoje nenhum projeto do tipo prosperou ou mesmo tramitou no Brasil. Porque?

Dr. Olímpio: Na Colômbia foi a suprema corte deles que considerou que proibir o abortamento é inconstitucional pois fere direito humano. É possível que aconteça isso no Brasil pelo jurídico pois está na Constituição o direito à saúde. Aqui acho que nosso congresso é muito pior que o da Argentina, a turma da Bíblia, bala e boi, essa força política no Brasil é mais forte que no Brasil, a quantidade de igrejas e políticos pastores e aparelhamento do conselho tutelar por essas forças conservadoras.

A gente tem um processo que chegou ao poder com forças antidemocráticas que não acreditam no estado laico e foram eleitos. Na Argentina não tivemos eleição de extrema direita. Na América Latina se elegeu um governo de direita que disse que n vai mexer no aborto porque é um direito. Mas aqui essa direita homofóbica racista machista é no Brasil. A gente achava que o momento político mudou e parou.

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