Indígenas na universidade lutam contra estigma enraizado

Lei de cotas e políticas afirmativas são instrumentos no combate ao preconceito e no trabalho de conscientização pelos direitos dos povos originários

qui, 10/06/2021 - 12:41

Marcados por estereótipos enraizados, os indígenas estão, cada vez mais, batendo de frente com os estigmas e lutando para conquistar seus lugares nos mais diversos âmbitos da sociedade. Para muitos, a universidade é o lugar do pontapé inicial, para estudar e buscar o sonhado diploma.

Nos últimos anos, o cenário tem mudado. Porém, a passos lentos. Segundo o Censo da Educação Superior de 2019, os estudantes de etnias indígenas representam somente 56.257 entre 8.603.824 matriculados na graduação. O número representa aproximadamente 0,65% do total. Em 2010, eram apenas 7.256.

Um dos principais motivos do aumento do número de estudantes indígenas foi a implantação da Lei de Cotas, sancionada em 2012. A lei garante que sejam reservadas 50% das vagas nas universidades e institutos federais para candidatos pretos, pardos e indígenas.

Além das cotas, parte das universidades públicas brasileiras aprovou políticas afirmativas para o ingresso de estudantes indígenas, com processos seletivos especiais. A Universidade Federal do Pará (UFPA), por exemplo, realiza um processo seletivo especial destinado a candidatos indígenas e quilombolas. São abertas vagas em todos os cursos de graduação.

Foi o caso de Jacira Tembé, indígena da etnia Tembé Tenetnerrara, localizada no município de Paragominas, na divisa entre o Pará e o Maranhão. A estudante, que atualmente cursa Psicologia na UFPA, entrou na universidade pelo Processo Seletivo Especial (PSE). “Entrei através da inscrição no PSE, que é constituído por uma equipe pedagógica, no qual passamos por duas etapas. Após a seleção dos aprovados, temos duas opções de curso”, explica.

A universitária conta que veio para cidade com o pai que é cacique, intérprete e pacificador, que precisou fazer a mudança a trabalho, mas afirma que não perdeu o vínculo cultural nem os costumes. Jacira, atualmente, é mãe de duas crianças e ficará na cidade até a conclusão da graduação. Ela optou pelo curso de Psicologia com o objetivo de voltar para a aldeia e trabalhar com a saúde mental voltada para povos indígenas e nas demais regiões. “Decidi essa carreira por existir uma carência muito grande de psicólogos voltados para a área indígena. Muitos profissionais da cidade não sabem lidar com a demanda que existe dentro das aldeias, como idosos, crianças e adolescentes”, conta a futura psicóloga.

Jacira destaca que os indígenas conquistam espaços em áreas como saúde, educação e meio ambiente. "São nossos direitos como indigenas nas cidades", afirma, relembrando que os estigmas ainda existem, tanto institucionalmente como estruturalmente, mas podem ser quebrados.

Também existem cursos de ensino superior dentro do Programa de Licenciaturas Interculturais Indígenas, realizado pelo Ministério da Educação (MEC). O programa tem o objetivo de apoiar projetos de cursos de licenciaturas específicas para a formação de professores indígenas para o exercício da docência nas escolas indígenas, que façam parte do ensino, pesquisa e extensão e que promovam a valorização do estudo em temas como línguas maternas, gestão e sustentabilidade das terras e culturas dos povos.

Entre os dez cursos mais procurados estão Direito, Enfermagem, Administração, Psicologia, Pedagogia, Farmácia, Fisioterapia, Engenharia Civil, Ciências Contábeis e Educação Física.

“Educação é um direito fundamental de todo cidadão brasileiro, mas os indígenas precisam lutar todos os dias para ingressar e permanecer em uma universidade”, declara o jornalista e doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura Thiago Barros, que escreveu uma tese sobre como a etnia indígena Munduruku é representada politicamente pela Organização Não Governamental (ONG) Greenpeace.

O professor explica que, até os anos 1980, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tutelava o acesso de estudantes indígenas, mas em número ínfimo se comparado à atualidade. “Agora, permanecer na universidade até se formar é um dos maiores desafios: sair da comunidade para a cidade, precisar de apoio financeiro para aluguel e alimentação, sofrer com o preconceito de não indígenas. O poder público precisa estar pronto para garantir que jovens indígenas tenham auxílio”, diz.

O último Censo do Ensino Superior aponta que o Norte concentra o maior número de indígenas matriculados em universidades públicas em comparação com outras regiões do país. “Muitos munduruku são graduados e atualmente são estudantes de cursos de graduação. De forma geral, o acesso de indígenas às universidades tem crescido, mas políticas públicas mais efetivas poderiam reforçar esse processo. No entanto, desde que Michel Temer assumiu a presidência da República, até agora, no governo Bolsonaro, o governo federal tem ignorado criminosamente os direitos indígenas”, declara. O atual presidente do Brasil, em declaração, lembra o professor, diz que “índio não fala nossa língua, não tem dinheiro, é um pobre coitado, tem que ser integrado à sociedade, não criado em zoológicos milionários”, expondo visões etnocêntricas e racistas.

Como extensão da universidade, os estágios também são parte importante no processo de aprendizado e inserção no mercado de trabalho. Por isso, algumas instituições implantaram o sistema de cotas para indígenas e quilombolas, como a Defensoria Pública do Estado do Pará. No órgão de justiça, as cotas foram ampliadas de 30% para 40%, sendo 5% para indígenas e 5% para quilombolas, nos concursos e seleções para ingresso de estagiários, servidores e defensores.

Neste ano, será realizado o primeiro concurso para defensor público com reserva de vagas para indígenas e quilombolas, além de uma resolução que prevê, a cada dois anos, um censo etnicorracial e o monitoramento das políticas de ações afirmativas. “Quando se fala em ingresso de indígenas e quilombolas na instituição, temos que pensar neles como usuários do serviço da Defensoria Pública, para acessar políticas públicas, mas também como integrantes da instituição, seja como estagiários, servidores e defensores públicos”, explica a defensora pública, Andrea Barreto, que diz reconhecer que as ações ainda são poucas, mas que estão evoluindo.

A defensora pública afirma que é de grande importância a inserção dos povos indígenas e quilombolas que queiram integrar as instituições públicas, universidades ou mercado de trabalho. “A política de cotas visa criar equidade entre etnias e classes sociais. Todavia, temos que ter ciência que as cotas não são suficientes para reparar mais de trezentos anos de escravidão, de exclusão de afrodescentes e indígenas em um país que se ergueu no racismo estrutural, como é o caso do Brasil. Espero que nesse caminhar, tenhamos a presença marcante de indígenas e quilombolas na Defensoria e em outras instituições do sistema de justiça”, finaliza o pesquisador Thiago  Barros.

Por Larissa Silva e André Maia.

 

 

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