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Desde que o mundo é mundo existem homens que se vestem como mulheres. Na Grécia Antiga, 500 anos antes de Cristo, o teatro grego só permitia atores em suas produções, sendo assim, eles se caracterizavam como mulheres para os papéis femininos. O cenário permaneceu o mesmo durante um longo tempo na história: no século 16, o teatro inglês continuou sendo feito dessa maneira e a mudança só veio em meados do século 18, quando os atores que se travestiam de mulher passaram a integrar as peças com forte teor de comicidade, usando maquiagem exagerada e figurinos extravagantes.

Com a chegada dos anos 1960, a cultura pop surgiu e logo ganhou força nas grandes metrópoles, e simultaneamente a comunidade gay passou a ganhar espaço na sociedade. Mesmo sendo relegado a guetos, o público gay foi encontrando - e forçando - aberturas para se expressar e a arte drag queen acabou sendo abraçada por eles.

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De lá para cá, a despeito do preconceito, as drags conseguiram trilhar um caminho que as levou a lugares nunca antes imaginados, chegando ao mainstream da música, TV e cinema. O visual delas trilhou o mesmo caminho e, hoje em dia, 'montar-se' não significa apenas se transformar, mas também militar e se colocar no mundo. 

Nas décadas de 1980 e 1990 era comum encontrar nos teatros e casas de show brasileiros drag queens bastante caricatas. No Recife, a companhia de teatro Trupe do Barulho popularizou o estilo com atores que se 'montavam' com maquiagens escandalosas e trejeitos engraçados para atuar em espetáculos de humor. Jeison Wallace (Cinderela), Flávio Luiz, Jô Ribeiro e Henrique Celibi são apenas alguns dos nomes que fizeram escola na capital pernambucana não só no meio drag como no meio teatral.

A Trupe é citada como uma das fortes influências do estudante de Licenciatura em Teatro (UFPE) e professor Wanderson César. Quando se monta, ele vira Mei Jinlian, uma drag que concentra em si muito da caricatura mas que, caso precise "pagar de bonita", também o faz plenamente. "Eu digo que sou uma filha de duas levas, porque realmente, na cena drag da década de 1990 no Recife, a gente tinha a Trupe do Barulho que é um marco para o Teatro LGBT do Recife, e elas me influenciam muito; mas ao mesmo tempo, sou muito influenciado pelas coisas novas, como a Ru Paul. Eu tento equilibrar tudo isso pra colocar na Jinlian".

Para Wanderson, que pesquisa academicamente o teatro asiático e a história dos homens que se vestem de mulher para entrar em cena, a estética de uma drag vai além da escolha da maquiagem: "Eu acho que é muito mais uma questão de contextos. Justamente por ser uma arte tão livre, existem diversos contextos e diversas vertentes. Desde sempre teve as drag queens belíssimas e afeminadas".  

Drags que se apresentam com o visual mais próximo do feminino, de fato, sempre existiram. Na década de 1920 os irmãos gêmeos noruegueses Leif e Paal Roschberg fizeram muito sucesso ao imitarem as lendárias irmãs húngaras Dolly Sisters, em Paris. Em meados dos anos 1950, Lavern Cummings encantou os Estados Unidos com sua beleza, inclusive ostentando cabelos naturais, e uma poderosa voz de soprano. Já no final da primeira década dos anos 2000, em 2009, o programa americano RuPaul's Drag Race escancarou tudo o que se habituou a compreender enquanto arte drag, quebrando e renovando inúmeros padrões. 

Sayuri Heiwa, drag criada por Gilmar Santos, com uma carreira de 14 anos, fala sobre a influência de RuPaul. "Ela veio com muita força. O público hétero em si tinha uma visão de que drag queen era só a caricata, porque eles viam a Cinderela daqui e havia essa visão de que toda drag tinha que ser daquele jeito, caricata, engraçada. Antigamente era mais rotulado, ou você era uma coisa ou outra", diz. Mei complementa: "Hoje eu sinto que a linha entre esses dois estilos está muito fininha, até devido a pessoas como eu, que buscam unir o melhor desses dois mundos". 

Com a abertura de espaços e maior visibilidade para a arte drag queen, a exigência em relação ao visual também cresceu. As ‘gatas’, como se chamam, buscam, através da maquiagem, figurino e atuação, chegar mais perto dos fãs e, sendo assim, eles também demandam um determinado padrão.

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"Eu noto que quando faço uma maquiagem mais artística o meu público não curte muito, eles gostam mais quando eu faço essa linha mais feminina, mais próxima do real", diz Kiara Zarina, drag do maquiador e modelo Luenge Alberiz. A experiente Sayuri também notou as necessidades de seus fãs e fez mudanças em seu personagem para agradá-los."Eu fui vendo a necessidade que o público tava tendo de ver produções glamurosas. Eu não era bonita porque eu me maquiava como drag queen andrógina, mas fui conhecendo as tendências e fui fazendo cada vez ‘menos’". 

Independente do tipo de maquiagem e figurino, todas concordam que a drag queen tem a missão de divertir suas plateias. "Umas gostam de ficar mais femininas, eu gosto de ficar engraçada. Quando eu me monto eu quero mostrar que eu sou uma drag que vai estar bonita mas que também vai fazer rir.", diz Mei. Sayuri complementa a colega “Nós somos artistas, estamos dando vida a um personagem. Se eu quiser me transformar em uma mulher eu posso. Cada um tem o direito de virar o personagem que quiser, o que vai diferenciar é cair no gosto popular". 

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Militância 

Muito embora não exista uma ligação obrigatória entre o fazer drag queen com sexualidade e gênero - havendo inclusive mulheres e pessoas trans que também desempenham esse trabalho -,  as drag queens foram alçadas ao posto de porta-voz das pessoas LGBTQ+. Hoje, além de serem artistas, elas também se entendem enquanto militantes. A maior visibilidade as possibilita chegar aos mais diversos segmentos e assim poder falar não só de sua arte, mas das demandas dessa comunidade.

Sayuri pontua: "Antigamente não se tinha uma preocupação de militância como hoje existe. A partir do momento que você começa a se maquiar, já está sendo um militante". Mei complementa: "As militâncias estão sendo mais pontuais e as gatas já estão conseguindo adquirir o espaço e o respeito delas". Já Kiara vai além e milita também pela população negra. "Tento levar a imagem de empoderamento, principalmente o negro. Eu quero mostrar que eu também posso ocupar certos espaços e que o negro é bonito também". 

Trabalho

Existe um outro ponto em que todas falam em uníssono, drag queen é um trabalho como outro qualquer. Ao se montar, a 'gata' se prepara para apresentar um show e entreter a plateia. Além disso, Nina Poison, drag do maquiador Rapha Ramos, conta que para ser drag driblando a falta de recursos é preciso colocar a mão na massa. Então elas acabam, além de artistas, sendo costureiras, maquiadoras, estilistas e até sapateiras. Mei complementa: "Se a gente ficar muito numa arte só nossa, não vai arranjar trabalho. Por mais que seja uma coisa que a gente se divirta e tenha prazer fazendo, drag é trabalho e a gente precisa trabalhar". 

No Recife, cidade em que há muitas drags, as oportunidades para trabalhar parecem estar aos poucos aumentando. Nina conta que os profissionais ainda sofrem um pouco com a falta de articulação e com uma cena que depende de contatos e conhecidos para fluir, mas os horizontes parecem favoráveis pela quantidade de festas que pipocam na noite recifense: "Tem mercado tem trabalho, agora, a concorrência é grande. O mercado está mais receptivo. Vamos mostrar que existe seriedade na arte drag, não é apenas diversão, tem gente que vive disso." 

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