Há pouco mais de dois meses para a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, e com a elaboração das provas anunciada, estudantes de todo Brasil ficam ainda mais atentos aos possíveis assuntos que devem ser abordados durante as provas. Um das maiores preocupações para eles, é a proposta de tema da redação e como desenvolver o texto.
Por isso, o LeiaJá, em parceria com o Vai Cair No Enem, trouxe o professor de linguagens e redação Diogo Didier para preparar três redações com temas da atualidade que podem ser cobradas no Exame. As produções textuais, que foram comentadas pelo docente, estão estruturadas no formato padrão, iniciando pela introdução, seguida de desenvolvimento 1 e 2 e a conclusão.
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Na primeira redação, o professor aborda questões relacionadas com a problemática do assédio sexual, através da sugestão de tema “Beijo sem consentimento no Brasil”. Apesar de específico, o professor argumenta que o assunto pode ser uma proposta forte para ser debatida em uma redação, visto que até o momento só houve abordagens quanto a questões associadas à violência contra a mulher. Diogo ressalta que o texto “serve de alusão para enriquecimento de repertório”. Confira, abaixo, a redação na íntegra:
INTRODUÇÃO
“Beija Eu” é o nome de uma famosa canção da cantora Marisa Monte. O verso que dá título à música é apropriado para ser recitado na voz de uma mulher cujo gênero durante séculos foi beijado pela herança da Bela Adormecida, a qual em sua condição não teve autonomia para escolher quem tocaria seus lábios. Letra e fantasia dizem muito hoje sobre a perspectiva do consentimento no Brasil, pois, de um lado, há mulheres empoderadas ressignificando posturas patriarcais, enquanto do outro uma sociedade carente de conteúdos feministas capazes de apoiar a causa delas em prol da independência de seus corpos.
DESENVOLVIMENTO I
Antes de tudo, o beijo sem consentimento hoje já é entendido como uma prática abusiva pela sociedade. É um ganho significativo quando se leva em consideração o legado machista, influenciado pela visão católica de outrora e agora dos evangélicos infiltrados na política, que formou a nação. Contudo, da primeira onda feminista nos anos 1970 com Simone de Beauvoir até as contribuições mais recentes de Judith Butler e Djamila Ribeiro, houve mudanças expressivas nesse panorama; de modo que as mulheres, silenciadas e objetificadas há tempos, passaram a ter voz para denunciar as violências que sofrem. De fato, beijar sem a autorização da pessoa era o cartão de visita que muitos homens mais atrevidos necessitavam para cometer assédios mais graves, e passar incólumes às vistas da sociedade. A intervenção do Feminismo para deflagrar essa realidade foi, e ainda é, crucial para entender que práticas de tal natureza são invasivas bem como destrutivas para a integridade física, mental e emocional das vítimas. Foi graças a isso também que a campanha “Chega de Fiu Fiu!” se tornou possível, porque há um empoderamento entre elas.
DESENVOLVIMENTO II
Em contrapartida, a sociedade está na contramão das conquistas femininas devido a inexistência de uma educação feminista voltada a desconstruir pensamentos retrógrados em torno da independência das mulheres. Isso se dá em uma pátria onde as salas de aula foram alicerçadas no mito fundante de Eva a qual, subserviente à figura de Adão, passou a ser reproduzida como modelo imperfeito de mulher; responsável inclusive pela tentação de seu parceiro. Após receber a alcunha de vilã, a elas se recaiu um recato sobremaneira, ao ponto de serem tolhidas do direito de escolher quem as tocassem, seja com um simples beijo ou algo mais íntimo. Seus corpos passaram a ser tutelados pelo sexo oposto, primeiro romanceado por uma literatura trovadoresca da qual cavaleiros seduziam moças indefesas ao som de belas canções e, depois, idealizadas em um Romantismo que as tinham como objeto de desejo. Essa carga de conteúdos invadiu o cinema, a TV, os saberes e, por tabela, toda a sociedade, a qual passou a naturalizar abusos teoricamente simples como o beijo para em seguida banalizar outras violências tão graves quanto.
CONCLUSÃO
Dessa forma, o duelo entre empoderamento e desinformação mantém a existência do beijo não consentido no país. Para que o primeiro saia vitorioso, é preciso que mais pessoas recebam orientações feministas. Isso deve ser feito pelo MEC, instância máxima da educação brasileira, por meio da inserção nos PCN’s,- Parâmetros Curriculares Nacionais-, da obra “Como Educar Crianças Feministas”, da escritora africana Chimamanda Ngozi Adichie. Apesar da intitulação, sua obra deverá ser incluída desde as turmas mais novas até o ensino médio, nas escolas públicas e particulares do Brasil, por professores capacitados em formações específicas para cada série; com aulas dinâmicas voltadas a contextualizar os tópicos do livro respeitando os contextos dos alunos. A medida visa extirpar práticas machistas já na tenra idade, com o fito de que haja uma versão no futuro da Bela Adormecida com a trilha de Marisa Monte.
Agora, na segunda redação, Diogo pauta na produção textual “A problemática do desmatamento no Brasil”. "É necessário que os estudantes fiquem atentos a possível proposta de tema, pois há um “destaque [na pauta ambiental], devido às queimadas no Pantanal e a destruição da Amazônia, que já acontece há algum tempo”, afirma o docente. Nesse sentido, ele ainda explica que abordagens relacionadas a “sustentabilidade” ou “economia verde” não são feitas de forma objetiva no Enem desde 2008, em que a temática foi a Amazônia. Veja, abaixo, os argumentos utilizados nas etapas da produção do texto:
INTRODUÇÃO
Prometeu é um titã na mitologia grega conhecido por ser defensor da humanidade. Seu apreço aos humanos foi tamanho que ele roubou o fogo sagrado dos deuses para dá-lo aos homens, e como punição Zeus, temendo que os mortais ficassem mais poderosos que os seres divinos, acorrentou o benfeitor numa rocha enquanto tinha seu fígado comido por toda a eternidade por uma águia. Apesar da severidade de tal pena, a grande deidade helênica previu que as chamas em mãos erradas poderiam ser destrutivas. No Brasil de hoje, a natureza materializa esse mito mediante um desmatamento regido não por crenças míticas, mas pelo deus do dinheiro.
DESENVOLVIMENTO I
Como se sabe, desmatam-se florestas no país em prol do senhor Capitalismo, o qual encontra fies abnegados em alimentar a fé desse sistema econômico em governos cuja plataforma política visa lucros a todo o custo. O Brasil tem sucessivas referências de tal postura exploratória, da Colonização que ateou as primeiras labaredas a atual postura incongruente do Ministério do Meio ambiente, mas agrário que ecológico. A mídia televisiva, por sua vez, não colabora para preservar as riquezas ecológicas nacionais, com um discurso alienante em torno do “agro é tec, agro é pop, agro é tudo”. Com isso, a sociedade, desprovida de uma retórica sustentável pelo Estado, que avança sobre a natureza, não dá o devido valor a fauna e flora da nação. Logo, o desmatamento segue destruindo ecossistemas, antes à luz da clandestinidade, porém agora habitats preservados são incendiados em prol de um progresso neoliberalista voraz; legitimado por uma governança apática para as causas ambientais. Falta por aqui atitudes como a de Chico Mendes, grande nome em prol da natureza, e vozes como a de Leonardo DiCaprio, contra a tirania do desmatamento.
DESENVOLVIMENTO II
Enquanto não há esse levante social e político para conter a devastação das matas e, consequentemente as mortes de milhares de espécies, o desmatamento continua a reduzir a faixa verde que poderia tornar o Brasil referência para outras nações. Porém, o fogaréu criminoso que transformou em brasa o Pantanal, a ação cada vez mais ousada dos madeireiros ilegais na Amazônia bem como a desapropriação das terras indígenas são consequências de uma negligência política sem precedentes. Isso já afeta a realidade climática da nação, o ciclo das águas e resvala em fenômenos como a nuvem de gafanhotos que infestou plantações diversas pelo país recentemente. Outrossim, sem uma camada florestal protegida, terras prósperas à sobrevivência tornam-se inóspitas, tanto para animais e plantas, quanto para os humanos. A animação Wall-E faz essa previsão em um mundo devastado pelo homem onde apenas robôs cuidam dos dejetos deixados, em um ambiente de lixo consumista, mas sem vestígios de elementos naturais. A sociedade vigente, do slogan nacionalista mais incoerente da história, caminha para aquele panorama irreversível.
CONCLUSÃO
Portanto, o deus do dinheiro, vulgo Capitalismo, é o grande algoz da natureza que vem sendo desmatada no país. Por se tratar de um bem antes de tudo mundial, é preciso que o Greenpeace, organização voltada ao ecologismo, denuncie o governo brasileiro, em todas as instâncias responsáveis pela proteção ambiental, para as autoridades internacionais. Isso pode ser feito mediante dossiê enviado à ONU pontuando os descasos dos líderes nacionais com a manutenção da fauna e flora, as quais são subsidiadas por nações estrangeiras para serem cuidadas, de modo a punir os acusados com embargos, sanções econômicas e bloqueios diversos. A medida visa mexer naquilo que é mais valioso para os políticos do que o ecossistema, o bolso, com o fito de, sob pressão mundial, o Estado assuma algum compromisso de fato contra o desmatamento. Assim, fará sentido o sacrifício de Prometeu.
Por fim, no terceiro exemplo, o professor de linguagens disserta sobre um outro tema que ele considera inédito, tratado por meio do assunto: “As dificuldades para o desenvolvimento tecnológico e científico no Brasil”. De acordo com Diogo, o tema faz alusão a um dos assuntos mais comentados da atualidade, levando em consideração que “o Brasil vive, infelizmente, uma fase de negação científica, devido ao Estado mais ultraconservador”, enfatiza.
Nesse sentido, segundo o professor, o texto poderá transitar entre questões de investimentos e relevância da ciência para a sociedade em geral, dada a importância de discutir “as bases científicas, que começam na escola e vão até a faculdade”, conclui. Confira, abaixo, o texto completo com as argumentações aplicadas:
INTRODUÇÃO
O filme “O Menino que Descobriu o Vento”, de livro homônimo, narra a história real de um garoto africano que, para superar a seca da vila onde mora, desenvolve um cata-vento gigante a partir de materiais jogados no lixo. Tamanha inventividade mostra que é possível desenvolver tecnologias em benefício da humanidade, desde que haja incentivos políticos e, consequentemente, sociais para que garotos despertem o Einstein que há em si. Porém, no Brasil, o Estado não prioriza às pesquisas científicas no âmbito educacional, tão pouco contribui para que o desenvolvimento tecnológico faça do país uma potência internacional.
DESENVOLVIMENTO I
Como se sabe, a governança não direciona políticas públicas claras destinadas a formar, da base às universidades, uma educação científica de fato. O que há, na verdade, é o tecnicismo do saber impelido pelas demandas do Capitalismo, responsável por encurtar a vida acadêmica dos indivíduos, resvalando na involução científica do país. Essa conduta de ignorância foi vista com preocupação pelo cientista Carl Sagan, o qual problematizou que “é um suicídio viver numa sociedade dependente da ciência e tecnologia e que não sabe nada de ciência e tecnologia”. Isso porque, para estar ciente da importância de ambos, em um mundo inegavelmente hiperconectado, o Estado precisaria canalizar massivos investimentos nesses setores, igual ao que foi feito, por exemplo, pelo Japão depois de Hiroshima e Nagasaki e a Alemanha após o holocausto. Esses países, deteriorados pelas guerras, conseguiram se soerguer por meio de uma educação científica em todos os níveis de ensino, de modo a torna-los mais à frente potências tecnológicas mundiais. Por aqui, contudo, o saber científico é tolhido por uma política ultraconservadora e religiosa.
DESENVOLVIMENTO II
Devido a tais agravantes, a pátria está longe de se tornar uma potência internacional no setor tecnológico. Conforme o Índice Global de Inovação (IGI), o Brasil ocupa 62º posição no ranking de países avaliados, colocação abaixo do esperado para uma nação de grande porte. Mesmo diante de fatos tão desanimadores como esse, o país segue como forte candidato estrangeiro a se destacar no ramo das tecnologias no futuro, prova disso são os investimentos de grandes “Start Up’s” em território nacional, focadas na ideia de que o Brasil ainda tem muito a oferecer. No entanto, apesar da área de telecomunicações e “delivery” terem uma expressiva melhora nos últimos anos, sobretudo com os percalços causados pela pandemia do Covid-19, há o inimigo da inclusão tecnológica a ser vencido: a desigualdade social. Esse fenômeno, além de antigo, coaduna com a tese do sociólogo Jessé de Souza, a qual categoriza de “subcidadãos” aqueles que vivem à margem da sociedade. São, na realidade, pessoas convencidas a adquirir certas tecnologias que pouco mudarão sua condição econômica, tão pouco confere credibilidade ao aparato tecnológico que possuem.
CONCLUSÃO
Portanto, falta de uma educação científica resvala na ausência de desenvolvimento tecnológico no Brasil. Urge, então, que o MEC, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, faça um trabalho nas escolas públicas e privadas, a partir das séries mais elementares ao médio, voltado a oportunizar o contato com os conteúdos científicos e tecnológicos, de acordo com a turma e a idade dos alunos. Nas aulas, a cada ano o nível de aprendizagem naqueles campos seria intensificado, por meio de aulas teóricas e práticas, professadas por educadores capacitados e ajustadas à grade curricular dos estudantes. O intuito disso é desenvolver a ciência e a tecnologia no lugar apropriado para isso, as escolas, para que se manifeste na sociedade. Assim, outros feitos inigualáveis surgirão, não do lixo, mas de materiais que facilitariam a vida do “Menino que Descobriu o Vento”.