Tópicos | hanseníase

João Victor Pacheco, 28 anos, descobriu que tinha hanseníase aos 17 anos, quando trabalhava como padeiro. “Comecei a ter queimaduras, mas não sentia”. A diminuição ou perda da sensibilidade térmica é um dos sintomas da doença. “Desde então, comecei a minha luta, o ativismo” disse, em conversa com a jornalista Mara Régia no programa Viva Maria, da Rádio Nacional.

“Buscar o diagnóstico já é um grande desafio. Os profissionais de saúde não têm o conhecimento necessário, não fazem o que precisa ser feito. Estou no meu terceiro tratamento. Iniciei em 2014, depois, fui reinfectado, em 2017. Em 2019, tratei de novo, com resistência. Mas, se em 2014 tivessem examinado meus familiares, poderia não ter acontecido isso.”

##RECOMENDA##

O jovem mora em Cuiabá, capital mato-grossense. O estado é considerado endêmico para hanseníase e ocupou, por muitos anos, o primeiro lugar no ranking brasileiro de casos. “De que adianta ter bastante caso diagnosticado e não ter serviço”, questiona o rapaz. Sobre o preconceito vivido desde os 17 anos, ele rebate: “Não sofro, mas acontece”.

“O preconceito e a discriminação fazem parte da realidade que a gente está. A gente coloca pra dentro da nossa mente o que é bom. E o preconceito só é bom quando a gente desconstrói esse preconceito. Mas, quando a gente recebe, não é bom não. É um pré-conceito, a pessoa está lá achando que é, mas só a gente sabe o que a gente passa.”

A técnica em nutrição Marly Barbosa de Araújo também denuncia a falta de conhecimento dos profissionais de saúde acerca da doença. Moradora de área nobre na capital federal, ela conta que o diagnóstico tardio veio em razão de falhas no atendimento, já que precisou passar por várias unidades até conseguir uma resposta.

“Digo sempre que eu sofri um ‘preconceito ao contrário’ dos profissionais de saúde. Como eu morava numa quadra de classe média alta em Brasília, eles não pensaram em hanseníase. Isso atrasou o meu diagnóstico. A gente tem que desmistificar que hanseníase é coisa de pobre. Doença não escolhe classe social.”

Marly conta que uma de suas vizinhas chegou a pedir que ela vendesse seu apartamento quando soube do diagnóstico de hanseníase e insinuou que o imóvel poderia ter sido desvalorizado em função da doença da proprietária. “Disse a ela: do mesmo jeito que eu era dona do meu, ela era dona do dela e, se ela quisesse, que vendesse o dela”.

“Mas não vamos querer dizer que o preconceito é falta de informação só não. Se fosse só falta de informação, o profissional de saúde não seria preconceituoso. Ele tem informação sobre a hanseníase e, ainda assim, eu sofri muito preconceito”, disse. “Pessoas esclarecidas também são preconceituosas”, concluiu.

Brasil

Entre janeiro e novembro de 2023, o Brasil diagnosticou ao menos 19.219 novos casos de hanseníase. Mesmo que preliminar, o resultado já é 5% superior ao total de notificações registradas no mesmo período de 2022.

Segundo as informações do Painel de Monitoramento de Indicadores da Hanseníase, do Ministério da Saúde, o estado de Mato Grosso segue liderando o ranking das unidades federativas com maiores taxas de detecção da doença.

Até o fim de novembro, o total de 3.927 novos casos no estado já superava em 76% as 2.229 ocorrências do mesmo período de 2022. Em seguida vem o Maranhão, com 2.028 notificações, resultado quase 8% inferior aos 2.196 registros anteriores.

Dia Mundial

O Dia Mundial de Combate e Prevenção da Hanseníase é celebrado sempre no último domingo do mês de janeiro.

A hanseníase é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium Leprae, também conhecida como bacilo de Hansen (em homenagem à Gerhard Hansen, o médico e bacteriologista norueguês descobridor da doença, em 1873). O bacilo se reproduz lentamente e o período médio de incubação e aparecimento dos sinais da doença é de aproximadamente cinco anos, de acordo com informações da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

Os sintomas iniciais são manchas na pele, resultando em lesões e perda de sensibilidade na área afetada. Também pode acontecer fraqueza muscular e sensação de formigamento nas mãos e nos pés. Quando os casos não são tratados no início dos sinais, a doença pode causar sequelas progressivas e permanentes, incluindo deformidades e mutilações, redução da mobilidade dos membros e até cegueira.

Entre janeiro e novembro de 2023, o Brasil diagnosticou ao menos 19.219 novos casos de hanseníase. Mesmo que preliminar, o resultado já é 5% superior ao total de notificações registradas no mesmo período de 2022.

Segundo as informações do Painel de Monitoramento de Indicadores da Hanseníase, do Ministério da Saúde, o estado de Mato Grosso segue liderando o ranking das unidades federativas com maiores taxas de detecção da doença.

##RECOMENDA##

Até o fim de novembro, o total de 3.927 novos casos no estado já superava em 76% as 2.229 ocorrências do mesmo período de 2022. Em seguida vem o Maranhão, com 2.028 notificações, resultado quase 8% inferior aos 2.196 registros anteriores.

Consultada pela Agência Brasil, a Secretaria de Saúde de Mato Grosso informou que nos últimos anos os diagnósticos da doença vêm aumentando gradualmente, resultado de uma “política ativa de detecção” que, entre outras medidas, inclui a “capacitação dos profissionais da saúde”. 

A pasta também atualizou os dados estaduais. Somados os diagnósticos de dezembro e outros ainda não reportados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o total de novos casos notificados em 2022 já chega a 4.212.

“Para nós, o aumento [dos diagnósticos] nacional do último ano não é novidade, pois há uma grande subnotificação de casos no país”, disse o coordenador Nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Faustino Pinto, explicando que, paradoxalmente, o aumento de diagnósticos é, em um primeiro momento, algo positivo.

De acordo com Faustino, até 2019, o número de novos casos identificados vinha aumentando ano a ano, sem, com isso, representar a real gravidade da situação. “Como há muitos anos não há uma campanha nacional de esclarecimento e estímulo para as pessoas procurarem o serviço de saúde em caso de suspeita da doença, os diagnósticos são resultado de uma busca espontânea. As pessoas procuraram o serviço de saúde por iniciativa própria, buscando as causas de uma mancha na pele; área dormente ou dores nos nervos”, explicou Pinto, acrescentando que a situação piorou de 2020 a 2021, devido à pandemia da covid-19.

A Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, no boletim epidemiológico divulgado em janeiro de 2023, com os dados da doença relativos a 2022, admite que a pandemia impôs um desafio extra, exigindo estratégias direcionadas ao fortalecimento das ações de controle da hanseníase.

“A pandemia de covid-19 criou dificuldades para novos diagnósticos e para o tratamento de pacientes com hanseníase, contribuindo para a subnotificação e o pior prognóstico dos casos”, disse a secretaria ao demonstrar que, de 2019 a 2020, o total de casos diagnosticados caiu de 27.864 para 17.979. Além disso, em 2021, 11,2% dos 18.318 novos pacientes identificados já apresentavam lesões graves nos olhos, mãos e pés quando foram diagnosticados.

Fonte: Sinan/SVS/MS

“Ou seja, hoje não retornamos sequer aos números pré-pandemia, quando já acusávamos a subnotificação. O que significa que a situação atual é ainda mais grave, porque se estamos identificando apenas os pacientes que chegam por demanda espontânea, muitas pessoas estão deixando de ser tratadas a tempo de evitar sequelas neurológicas. Também estamos falhando nos esforços para interromper o ciclo de transmissão da doença”, comentou Pinto, destacando que, uma vez iniciado o tratamento, a pessoa infectada deixa de transmitir a bactéria causadora da hanseníase para outras pessoas susceptíveis a desenvolver a doença.

Janeiro Roxo

Considerada uma das mais antigas doenças a afligir o ser humano, a hanseníase é uma doença infecciosa e contagiosa que atinge a pele, mucosas e o sistema nervoso periférico, ou seja, nervos e gânglios. Embora tenha cura, pode causar lesões e danos neurais irreversíveis se não for diagnosticada a tempo e tratada de forma adequada.

Entre os sinais e sintomas mais frequentes estão o aparecimento de manchas, que podem ser brancas, avermelhadas, acastanhadas ou amarronzadas, e/ou áreas da pele com alteração da sensibilidade e o comprometimento dos nervos periféricos, geralmente com engrossamento da pele, associado a alterações sensitivas, motoras e/ou autonômicas.

Também podem ser indícios da doença o surgimento de áreas com diminuição dos pelos e do suor; sensação de formigamento e/ou fisgadas, principalmente em mãos e pés; diminuição ou perda da sensibilidade e/ou da força muscular na face, e/ou nas mãos e/ou nos pés, bem como a ocorrência de caroços (nódulos) no corpo, em alguns casos avermelhados e dolorosos.

A maioria das pessoas expostas à bactéria Mycobacterium leprae não desenvolve a doença.

De acordo com o Ministério da Saúde, a hanseníase é identificada por meio de exame físico geral, dermatológico e neurológico. Realizado com o uso de medicamentos antimicrobianos, o tratamento é feito gratuitamente, no Sistema Único de Saúde (SUS), não exigindo internação. A duração do tratamento varia conforme a forma clínica da doença

Casos onde haja suspeita de comprometimento neural, mas sem lesão cutânea, e aqueles que apresentam área com alteração sensitiva e/ou autonômica duvidosa e sem lesão cutânea evidente, devem ser encaminhados para unidades de saúde de maior complexidade aptas a avaliar o quadro geral do paciente. Em crianças, o diagnóstico exige uma avaliação mais criteriosa, devido à dificuldade de aplicação e interpretação dos testes de sensibilidade. Além disso, é bom estar atento, pois casos infantis são indicadores de transmissão ativa da doença, especialmente entre parentes. Pessoas que convivem com quem tem a hanseníase transmissível têm três vezes mais risco de desenvolver a doença, devido ao contato próximo e prolongado.

Para conscientizar a população em geral e as autoridades públicas em particular sobre a importância do diagnóstico precoce e do enfrentamento ao preconceito contra a hanseníase, no Brasil, desde 2016, o mês de janeiro é dedicado à campanha Janeiro Roxo. Oficializada pelo Ministério da Saúde, a iniciativa busca disseminar informações sobre os principais sinais, sintomas, tratamento e prevenção da doença.

Embora conste do calendário do Ministério da Saúde, a iniciativa, na prática, é realizada por estados e municípios. A Secretaria de Saúde do Pará (Sespa), por exemplo, anunciou que, durante todo o mês, realizará um ciclo de capacitações para servidores estaduais e municipais.

“Vamos abranger 13 centros regionais e os 144 municípios, já preparando para um trabalho em que os municípios protagonizarão o combate à hanseníase durante todo o ano de 2024 e não apenas em janeiro. Posteriormente, vamos incentivar os municípios a trabalhar a sua própria campanha, porque eles são executores e lidam diretamente com a população”, informou em nota o coordenador do Programa de Controle de Hanseníase da Sespa, Luís Augusto Costa de Oliveira.

De acordo com ele, em 2023, o estado registrou 1.349 novos casos da doença,  100 a mais do que as notificações já lançadas no sistema do Ministério da Saúde. Do total, 92 casos envolvem crianças e adolescentes com menos de 15 anos de idade.

“A cada mês de janeiro vemos iniciativas como esta. A meu ver, são tímidas e não simbolizam uma campanha nacional que, se ocorresse, resultaria na notificação de muitos mais casos do que os que temos visto todos os anos. Houvesse busca ativa [de pessoas infectadas], em vez de 20 mil casos, teríamos 30 mil. Trinta mil pessoas diagnosticadas, tratadas e curadas, com a devida interrupção da transmissão. Só com isso poderíamos, daqui a alguns anos, pensar em reduzir e até quem sabe erradicar a doença”, disse o coordenador do Morhan, Faustino Pinto.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que é necessário desculpas e reparação para pessoas que foram segregadas por causa da hanseníase. Ele falou em cerimônia de sanção ao projeto de lei 3023 de 2022, que define pensão para filhos de pessoas com hanseníase submetidas compulsoriamente a isolamento ou internação, nesta sexta-feira, 24, no Palácio do Planalto.

"É preciso pedir desculpas e construir políticas públicas para reparar danos sociais que a segregação causou neste País", disse o petista. "Estamos cumprindo um compromisso ético e moral com brasileiras e brasileiros excluídos do pleno exercício de sua cidadania", declarou ele.

##RECOMENDA##

Lula também disse que governar não é difícil, desde que se saiba para quem está governando. "Não pense que a elite econômica vai se preocupar com alguém que está segregado lá em Cruzeiro do Sul, no Estado do Acre", disse o presidente da República.

A lei institui indenização em formato de pensão vitalícia aos filhos das pessoas que ficaram isoladas em colônias de pessoas acometidas pela hanseníase no século passado e foram separados de seus pais.

O texto também estabelece novo parâmetro de valor para a indenização das pessoas que foram isoladas compulsoriamente na época e ainda estejam vivas. O valor não poderá ser inferior a um salário mínimo por mês. A regulamentação dos valores de indenização e dos trâmites burocráticos para recebê-la ocorrerá em decreto posterior.

Apesar dos tratamentos existentes, a hanseníase continua infectando milhares de pessoas a cada ano, em particular nos países pobres, e embora pesquisas existam pesquisas, poucos laboratórios dedicam recursos à doença.

A hanseníase, uma patologia considerada vergonhosa por muitos, tem o triste privilégio de ser uma das 20 enfermidades tropicais que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera negligenciadas.

Causada pelo bacilo 'Mycobacterium leprae', esta doença transmissível ataca a pele e os nervos periféricos, com sequelas potencialmente graves.

Em 2022 foram detectados quase 216.000 casos em todo o mundo, em particular no Brasil e Índia, segundo a OMS.

A hanseníase persiste como "um problema grave" em 14 países da África, Ásia e América Latina.

Os dados podem ser apenas a ponta do iceberg, afirma o médico Bertrand Cauchoix, especialista na enfermidade da Fundação Raoul Follereau, que tem sede na França.

"Temos conhecimento do número de rastreados, mas não contabilizamos os esquecidos, os não detectados, que podem representar um número muito maior", explica.

A doença, favorecida pela promiscuidade e as condições de vida precárias, tem como particularidade um período de incubação muito prolongado, que pode chegar a duas décadas. E a demora no diagnóstico permite que continue infectando as pessoas próximas.

Há décadas existe um tratamento médico com três antibióticos.

Mas o tratamento pode chegar a 12 meses, o que dificulta o acompanhamento em países sem um sistema de saúde adequado.

"É necessária uma infraestrutura com cuidadores para dispensar os medicamentos, o que exige recursos", afirma Alexandra Aubry, professora de Biologia e especialista na doença do Centro de Imunologia e Doenças Infecciosas (CIMI) de Paris.

Os antibióticos existentes são doados pela fundação do laboratório suíço Novartis, que fabrica os remédios, por meio da OMS.

Bertrand Cauchoix, porém, aponta "um risco de tensões muito grandes" em caso de problemas na linha de produção dos antibióticos.

Em termos gerais, os laboratórios farmacêuticos não se esforçam para produzir novos medicamentos que seriam mais fáceis de administrar.

"Não há doações para a lepra, apenas doações de caridade", lamenta Cauchoix.

A doença é quase inexistente nos países ocidentais e se propaga em um número limitado de pacientes em países que não poderiam pagar caro por novos medicamentos.

Em seu laboratório de pesquisas em Paris, um dos poucos no mundo com capacidade para examinar esta bactéria, Alexandra Aubry avalia a eficácia de cada novo antibiótico que chega ao mercado para tratar outras doenças.

"Tentamos identificar as associações de antibióticos", explica Aubry. "Testamos todas as formas possíveis de simplificar para obter tratamentos mais curtos, como por exemplo uma vez por mês durante seis meses".

Também há projetos de vacinas, cada vez mais raros porque também faltam recursos. "É muito complicado ter financiamento para isto. Para avaliar a eficácia de uma vacina é necessário acompanhar a população vacinada durante 10 ou 15 anos", lembra Aubry.

A pandemia de Covid-19 provocou, no ano passado, queda de 57% nas notificações de hanseníase no Brasil. Até o momento, foram registrados no país 12.045 novos casos da doença, informa levantamento preliminar feito pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.

A pesquisa encerra a programação do Dia Mundial contra a Hanseníase, que é sempre lembrado no último domingo de janeiro, e tem atividades previstas para este domingo (30).

##RECOMENDA##

Segundo a médica Araci Pontes Aires, assessora do Departamento de Hanseníase da SBD, o resultado que aponta queda nas notificações da doença não considera, porém, os números totalmente fechados de 2021, que o ministério deverá divulgar somente a partir de março ou abril deste ano. Isso significa que os casos apurados em 2021 ainda poderão mudar nos próximos dois meses.

Em entrevista à Agência Brasil, Araci Aires informou que houve 28,8 mil notificações da doença em 2019 no Brasil e que, em 2020, ocorreu queda de quase 40%. “Isso é muito preocupante, pelo fato de a hanseníase ser uma doença crônica, que permanece endêmica no nosso país, com média de 28 mil casos nos últimos três anos antes da pandemia [2017, 2018, 2019]”, ressaltou a dermatologista.

Com a pandemia, houve retração nas notificações, que passaram da média de 28 mil casos, em 2019, para 18 mil casos, em 2020. “Mas isso não corresponde à realidade”, afirmou Araci. Para a médica, este é mais um dos “efeitos deletérios” da pandemia, por conta do lockdown, do medo de comparecer a uma unidade de saúde e contrair a covid-19 e até mesmo pela sobrecarga do sistema de saúde, que foi obrigado a relegar um pouco as outras doenças crônicas. “A hanseníase também sofreu isso.”

A dermatologista disse que os casos não notificados correspondem a pessoas que deveriam ter procurado as unidades de saúde para serem diagnosticadas e que permaneceram doentes, sem diagnóstico e, consequentemente, sem tratamento, “o que é grave”. Para Araci, a falta de notificações prejudica o rastreamento da doença. O Brasil é o segundo país em número de casos de hanseníase, atrás apenas da Índia, destacou a médica, lembrando que a pandemia causou grande impacto no subdiagnóstico. “Pessoas não foram diagnosticadas e permanecem doentes. Não foram sequer diagnosticados para que pudessem ser notificadas."

Campanha

A conscientização das pessoas sobre a hanseníase foi o tema da campanha Janeiro Roxo 2022, intitulada “Precisamos falar sobre hanseníase”. Para Araci, a campanha deveria se realizar durante todo o ano, porque a hanseníase é uma endemia que, diferentemente da dengue, por exemplo, não ocorre em um período determinado, mas durante todos os meses.

O foco da campanha da SBD é alertar a população, com informações sobre os sinais e sintomas da doença, o tratamento e o combater à questão do estigma dos portadores de hanseníase. “Em tratamento, a pessoa não transmite mais [a doença] e pode conviver normalmente com parentes, amigos e colegas no local de trabalho, sem nenhuma restrição.”

A Sociedade Brasileira de Dermatologia recomenda que a pessoa procure um posto de saúde se tiver algum sintoma da doença.

Entre os sintomas clássicos que podem alertar as pessoas para a hanseníase, a dermatologista Araci citou o aparecimento de mancha mais clara que a pele, avermelhada ou, às vezes, acastanhada, que não apresente sensibilidade normal; dormência de mãos e pés; orelha mais inchada; aparecimento de caroços pelo corpo; olhos ressecados; feridas, sangramento e ressecamento no nariz; febre e mal-estar geral. “Todos são sinais de alerta para que a pessoa busque uma unidade de saúde para confirmar se é um caso de hanseníase.”

Regiões

A hanseníase é uma doença muito relacionada com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das regiões. Por isso, as regiões Norte, Nordeste e alguns estados do Centro-Oeste costumam ter maior índice maior de casos, “exatamente pelos bolsões de pobreza”. Dados da SBD revelam que o maior número de casos novos identificados na última década ocorreu na Região Nordeste (43% do total), seguida do Centro-Oeste, com 20% dos casos; Norte (19%); Sudeste (15%); e Sul (4%).

Araci Aires observou, contudo, que não se trata de uma doença exclusiva da classe social menos favorecida, pois 10% dos diagnósticos de hanseníase no país são de pessoas com nível superior de ensino. Fragilidades sociais, como habitação precária, ausência de informação e dificuldade de acesso aos sistemas de saúde, favorecem o contágio da doença. De 23.351 pessoas com hanseníase que deram informações sobre grau de ensino, 11.061 tinham ensino fundamental (47% do total); contra 8% com nível superior (1.897 pessoas).

A médica advertiu que, como qualquer doença infectocontagiosa, transmitida pelas vias aéreas, há mais facilidade de contaminação onde existem condições precárias de moradia, com famílias de muitas pessoas vivendo por vezes em um único ambiente, com pouca ventilação, o que facilita a transmissão. A hanseníase tem outro problema que é a questão do estigma. As pessoas, muitas vezes, protelam a ida ao médico porque têm medo de, ao serem diagnosticadas com essa doença, passarem a ser rejeitadas pela família, pelos amigos, no ambiente do trabalho.

Perfil

Na maioria dos casos, o paciente notificado com hanseníase no Brasil é do sexo masculino, como se pode constatar pelos dados oficiais do Ministério da Saúde. Em 56% dos registros de 2020 e 2021 comunicados até agora os pacientes eram do sexo masculino. Quanto à idade, 53% dos registros oram de adultos com mais de 30 anos. Destes, 19,5% tinham de 40 a 49 anos; 19,2%, de 50 a 59 anos; e 14,6% , de 30 a 39 anos.

Nos últimos 11 anos, a hanseníase acometeu 342.257 pessoas no Brasil. Nesse período, a maioria dos pacientes notificados no país foram homens (55% dos casos registrados no SUS, com 189,8 mil notificações).

Teste rápido

Uma boa notícia para pacientes de hanseníase foi dada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no último dia 25: a inclusão de novos testes laboratoriais complementares ao diagnóstico da hanseníase, entre os quais, um teste rápido. Segundo a pasta da Saúde, o Brasil será o primeiro país a ofertar gratuitamente o teste rápido para apoiar o diagnóstico de hanseníase, que ainda é essencialmente clínico, baseado na avaliação minuciosa do paciente, especialmente de pele e nervos periféricos.

“O teste rápido para o diagnóstico é uma grande conquista”, disse Queiroga. “Que nós possamos fazer o diagnóstico clínico, confirmar através dos exames sorológicos e, através de uma terapia adequada, fazer com que os pacientes sejam curados”, acrescentou.

O Ministério da Saúde deverá aplicar neste ano R$ 3,7 milhões para oferecer os novos testes.

Inquérito

O Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD - Fiocruz Amazônia) e o governo do Amazonas, por meio da Fundação Hospitalar Alfredo da Matta, unidade de referência no tratamento da hanseníase, vão realizar neste ano 1º Inquérito da Hanseníase no Brasil, investigando as incapacidades físicas ocasionadas pela hanseníase em mais de 200 municípios brasileiros mapeados pelo Projeto Inquérito da Hanseníase no Brasil.

A pesquisa tem liderança do Ministério da Saúde.

O trabalho de campo deve começar em março, com atividades realizadas por equipes multidisciplinares formadas por profissionais de todo o Brasil. Após a conclusão dos trabalhos, deve ser criado de um banco de dados nacional sobre as incapacidades físicas pós-cura da hanseníase.

O Dia Mundial de Combate e Prevenção da Hanseníase é celebrado sempre no último domingo do mês de janeiro. Neste ano, a data cai no dia 30 e o tema da campanha é “Precisamos falar sobre hanseníase”. A data é símbolo do Janeiro Roxo e visa chamar a atenção das pessoas para a doença, que tem tratamento e cura. O preconceito ainda é um dos grandes desafios no combate à hanseníase.

A hanseníase é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium Leprae, também conhecida como bacilo de Hansen (em homenagem à Gerhard Hansen, o médico e bacteriologista norueguês descobridor da doença, em 1873). O bacilo se reproduz lentamente e o período médio de incubação e aparecimento dos sinais da doença é de aproximadamente cinco anos, de acordo com informações da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

##RECOMENDA##

Os sintomas iniciais são manchas na pele, resultando em lesões e perda de sensibilidade na área afetada. Também pode acontecer fraqueza muscular e sensação de formigamento nas mãos e nos pés. Quando os casos não são tratados no início dos sinais, a doença pode causar sequelas progressivas e permanentes, incluindo deformidades e mutilações, redução da mobilidade dos membros e até cegueira.

Para Artur Custódio, coordenador Nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), os desafios no combate à doença são muitos. "A gente tem problemas de diagnóstico precoce da hanseníase, ou seja, os profissionais de saúde não estão conseguindo identificar a doença no início. Outro problema grave, que ocorreu no ano retrasado, foi a falta de medicamentos. A gente precisa ter a fabricação desses medicamentos no país para não ficar vulnerável a qualquer problema externo. Também precisamos ter pesquisa para novos fármacos para a hanseníase, assim como para testes novos para o diagnóstico precoce. Também temos o problema das sequelas da doença. Então necessitamos de um sistema de reabilitação que aceite as pessoas, que não tenha preconceito, que possa cumprir com o papel de reabilitar aqueles que ficaram com alguma sequela da hanseníase. E por último, temos que enfrentar o estigma da doença. O estigma é subestimado, ele está aí, ele é estrutural e gera uma série de problemas, inclusive do ponto de vista institucional”.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), cerca de 30 mil novos casos da doença são detectados todos os anos no Brasil. No mundo, cerca de 210 mil novos casos são reportados anualmente, dos quais, 15 mil são de crianças. Segundo a Opas, a hanseníase é encontrada em 127 países, com 80% dos casos na Índia, Brasil e Indonésia (dados de 2018).

Sandra Durães, coordenadora do Departamento de Hanseníase da SBD, a hanseníase está classificada entre as doenças ditas negligenciadas, que atingem as populações com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). “O Brasil, apesar de estar entre as grandes economias mundiais, apresenta  grande desigualdade social. Nas periferias de suas metrópoles existem grandes bolsões de pobreza”, explica.

Ela ressalta ainda que a maioria da população é resistente à hanseníase, mas há um pequeno percentual de pessoas que são suscetíveis à doença. “Nessas pessoas, a doença varia muito conforme a resistência que elas apresentam à doença. Temos dois tipos básicos de pacientes, aqueles com uma ótima resistência e que apresentam poucas lesões na pele, poucos nervos periféricos acometidos e pequena carga bacilar. Por outro lado, temos pacientes que apresentam grande carga bacilar, grande número de lesões cutâneas e grande número de nervos periféricos acometidos. O tratamento desses pacientes é diferente. Os que apresentam poucas lesões fazem tratamento com administração de antibióticos por seis meses. Os pacientes com grande carga bacilar fazem tratamento por 12 meses. O tratamento é feito no posto de saúde onde o paciente, uma vez por mês, toma uma medicação, e as outras medicações são tomadas em casa”.

Transmissão

A hanseníase é transmissível pelo ar, principalmente em situações de contato próximo. A maioria da população tem defesas naturais contra a bactéria, mas cerca de 10% da população não têm esses mecanismos de proteção e podem adoecer.

Assim que o tratamento com antibióticos é iniciado a doença deixa de ser transmissível, por isso é importante diagnosticá-la logo no início dos sinais. No entanto, o tratamento com antibióticos não reverte danos neurais e sequelas causadas pelo diagnóstico tardio. Caso haja um resultado positivo, as pessoas que têm intenso convívio com o infectado também devem procurar o sistema de saúde.

A estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS), intitulada Rumo à Zero Hanseníase, se concentra na redução da detecção de novos casos, incapacidades físicas (especialmente entre crianças) e estigma e discriminação. Até a década de 1970, no Brasil, os portadores da doença eram excluídos do convívio social e levados para o confinamento em colônias.

“No passado, a gente tinha uma política de segregação, higienista, de limpeza do Estado brasileiro, em que vinha a polícia sanitária, capturava a pessoa e levava para uma colônia de isolamento. Essa prática, apesar da descoberta da cura na década de 40, persistiu no Brasil oficialmente até 1976 e, na prática, tivemos episódios até 1986. A criação da Lei 11.520/2007, que estabeleceu indenização, pelo crime de Estado, àquelas pessoas que foram segregadas. E a gente luta para ter o reconhecimento dos filhos que foram tirados dos pais na época da segregação. Existe um projeto de lei nesse sentido, que infelizmente foi tirado da pauta na última votação do ano. Então é importante que ele volte para a pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e saia da CCJ da Câmara e vá para o Senado”, explica Custódio.

Ainda de acordo com o coordenador Nacional do Morhan, “o Brasil é um dos países que acabou com todas as leis discriminatórias na década de 1990, e que avançou para a criação de reparação”. 

“O Brasil já indenizou cerca de 10 mil pessoas até hoje”, acrescentou.

Para Sandra Durães, o esclarecimento da população é fundamental, “para que ela esteja ciente, conheça os sinais e sintomas da doença, possa procurar assistência médica o mais precocemente possível e para que o diagnóstico e o tratamento sejam precoces, evitando assim o dano neurológico e a incapacidade do paciente. E, ainda, contribuir para a diminuição do estigma que existe em relação à doença, que é infecciosa e potencialmente curável”.

Por acaso você viu, nos últimos dias, um prédio público ou algum monumento iluminado de roxo? Caso tenha visto, saiba que é uma forma chamar a atenção da sociedade para a hanseníase. O Janeiro Roxo foi criado em 2016 e tem o último domingo do mês como data símbolo. Nesse dia é celebrado o Dia Mundial de Combate e Prevenção da Hanseníase. São 30 mil novos casos da doença por ano no Brasil, que é o país com o segundo maior número de casos, perdendo apenas para a Índia.

Neste mês, a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) vai divulgar, com apoio de médicos da área, material sobre a doença. Entre as informações, a descrição de sinais e sintomas da hanseníase e orientações sobre onde buscar diagnóstico e iniciar o tratamento. A hanseníase, segundo especialistas, é uma doença estigmatizada e cercada de preconceito.

##RECOMENDA##

“Combater o estigma é salvar vidas. Por isso, queremos auxiliar a sociedade a compreender essa doença. Desfazer mitos e fazer prevalecer a verdade sobre a hanseníase são as principais formas de ajudar profissionais da área de saúde, familiares, amigos e principalmente aqueles que buscam por tratamento”, afirmou o vice-presidente da SBD, Heitor Gonçalves.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM), a partir de dados do Ministério da Saúde, a doença é mais frequente nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, que respondem por quase 85% dos casos do país. O Brasil concentra mais de 90% dos casos da América Latina.

A campanha de 2021 tem como slogan: A hanseníase é negligenciada, mas a saúde não!. Além da SBD, participam da campanha de esclarecimento à população as secretarias de Saúde dos estados, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB), a Confederação Nacional de Municípios (CNM), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

“Os portadores da doença eram, até a década de 70, excluídos do convívio social e condenados ao confinamento em colônias”, explica o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, em seu site. A hanseníase é uma doença causada pela bactéria Mycobacterium Leprae que atinge os nervos e se manifesta na pele.

Apesar do passado triste envolvendo a hanseníase, a doença tem cura, seu tratamento é simples e custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E tão logo ele seja iniciado, a doença deixa de ser transmissível. O tratamento pode ser buscado, no caso da rede pública, em postos de saúde ou com uma equipe de saúde da família.

Sintomas

Os sintomas da doença aparecem, principalmente, nas extremidades das mãos e dos pés, no rosto, orelhas, nádegas, costas e pernas. São manchas esbranquiçadas, amarronzadas ou avermelhadas, com perda de sensibilidade ao calor, ao toque e à dor. É possível uma pessoa queimar a pele na chama do fogão ou em uma superfície quente e sequer perceber. A sensação de formigamento também é um sinal da doença.

Outros sintomas são sensação de fisgada, choque, dormência e formigamento ao longo dos nervos dos membros; perda de pelos em algumas áreas e redução da transpiração; redução de força na musculatura das mãos e dos pés; e caroços no corpo, em alguns casos avermelhados e dolorosos. Condições precárias de moradia e saneamento favorecem a ação da Mycobacterium Leprae.

Quem tem diagnóstico para hanseníase deve começar a tomar os medicamentos prescritos de imediato. O tratamento deve ser seguido à risca. As pessoas que convivem com pacientes diagnosticados com a doença devem ser examinadas pelo médico.

“A prevenção consiste no diagnóstico e tratamento precoces, o que ajuda a evitar a transmissão e o consequente surgimento de novos casos. Precisamos frisar: hanseníase tem cura e quanto antes o tratamento for iniciado, menor o risco de sequelas”, afirmou Sandra Durães, coordenadora do Departamento de Hanseníase da SBD.

[@#galeria#@]

O Movimento de Reintegração de pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), em parceria com o Concurso Nacional de Beleza (CNB), promoveu uma campanha solidária de doação de cestas básicas para pessoas afetadas pela hanseníase que são acompanhadas pelo núcleo do Pará. A ação contou com a presença de ativistas e do mister Brasil, o modelo William Gama. Clique no ícone abaixo e ouça podcast sobre o assunto.

##RECOMENDA##

[@#podcast#@]

O modelo e a CNB organizaram a arrecadação de dinheiro em espécie para comprar cestas básicas e doar para os integrantes do Morhan. “Conseguimos um valor que até a própria Morhan achou muito acima do esperado. Foi muito legal ver que de fato todos se engajaram no projeto. É uma causa muito nobre. Eu ganhei, mas eu represento todos que ajudaram”, disse William Gama.

Segundo Edimilson Picanço, coordenador do Morhan Pará, a ação é importante porque amplia nacionalmente e dá visibilidade à causa da hanseníase. “Essa ação que eles fizeram chamada ‘Beleza pelo bem’ arrecadou cerca de R$ 16.530,00 que foi tudo remetido à compra de 240 cestas básicas”, ressaltou o coordenador.

Por Sandy Brito.

 

 

 

 

 

[@#galeria#@]

“Eu já saí daqui com sequelas nas mãos e nos pés, mas fui trabalhar e encarei a sociedade.”

##RECOMENDA##

Missondas Araújo é vice-coordenador estadual do Movimento de Reintegração das pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), que realiza um trabalho de luta pelos direitos humanos de pessoas atingidas pela hanseníase e de seus familiares. Foi internado quando já se discutia sobre o fechamento dos leprosários, visto que essa medida aplicada durante anos só contribuiu para fomentar o estigma.

Missondas saiu do Estado do Acre com a irmã para ser internado e receber o tratamento. “Quando eu cheguei aqui o sistema já estava mais relaxado, podia sair para visitar, se tivesse alguém para levar. Mas aqui eu fiquei, fiz curso de enfermagem, sapataria ortopédica, fiz curso de datilografia. Eu conheci um amigo aqui dentro, que tinha vindo de São Paulo com hanseníase, mas ele era um profissional, aí ele foi convidado para trabalhar lá em Belém numa oficina ortopédica. Como eu já tinha uma certa experiência aqui dentro, ele me levou para trabalhar com ele. Passei sete meses estagiando, depois fiz um concurso no Estado e passei, e fiquei sendo funcionário do Estado, eu e minha irmã, aí fomos morar em Belém e trabalhar”, disse.

Missondas afirma que sempre foi engajado nas causas de melhoria da saúde pública, e na luta contra o preconceito e pelo direito de pessoas que foram acometidas pela hanseníase. “Eu tenho uma luta muito grande lá fora, até porque eu sou vítima da falta de saúde pública, e eu sempre batalhei por uma saúde melhor, por uma saúde de qualidade. Sempre me indignei com a falta de saúde pública, e hoje a gente precisa de gente como eu, que esteja lá ocupando espaço e lutando em prol de todos”, disse.

Mesmo diante da discriminação, Missondas procurou levar uma vida normal, ainda que com sequelas visíveis nas mãos e nos pés. 

Após anos tendo seus direitos humanos retirados, portadores da hanseníase receberam da União um reconhecimento do dano causado pela prática de degredo. Mesmo sendo irrecuperável a perda do convívio familiar, é uma maneira justa e legítima de reconhecer que direitos foram violados. O MORHAN - Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase é uma organização que se empenha em lutar pelas pessoas acometidas pela doença e filhos separados pelo isolamento compulsório.

Acolhimento

Materializada nos anos de 1930, por meio de um processo de políticas públicas nacional de combate à hanseníase, a ex-colônia de Marituba instituiu-se no local para receber os doentes que vinham do interior do Pará e da cidade de Belém. A criação da colônia definiu uma perspectiva geográfica e sociológica da cidade.

Em decorrência do isolamento, os antigos internos da ex-colônia perderam o contato, e a maioria, os laços afetivos com a família. Então, depois do decreto federal que exigiu o fechamento das colônias, as pessoas que viveram nesses locais por longos anos de suas vidas não sabiam, na maioria das vezes, onde encontrar seus familiares.

Para solucionar o problema, foram criados abrigos ou feita a restruturação de hospitais-colônias para oferecer aos antigos internos uma vida mais digna, com todos os direitos e ao lado de sua família e amigos. Hoje alguns moradores da ex-colônia de Marituba recebem o acolhimento no João Paulo II. Pode-se dizer que a prisão se transformou em abrigo.

Reportagem e texto: Adrielly Araújo.

Edição: Antonio Carlos Pimentel.

 

“Aqui existia muita solidariedade", tudo que existia na sociedade existia aqui também.”

Nos anos de 1940 a 1960, isolados dentro dos muros da colônia de Marituba, os doentes precisavam encontrar forças e esperança para conseguir ver graça na vida. Com os laços familiares cada vez mais desgastados, precisavam suprir o vazio com os seus companheiros e irmãos de dor e sofrimento.  Criavam várias maneiras de se divertir e esquecer a saudade do mundo lá fora.

##RECOMENDA##

Dentro da colônia de Marituba existiam times de futebol, blocos carnavalescos, festas juninas, grupo de teatro, cinema. Umas das rivalidades mais acirradas que existia era a dos blocos carnavalescos chamados Casadinho e Traz Aqui. Tudo era preparado com bastante dedicação e entusiasmo. Todos ali queriam mostrar que estavam cheios de vidas e poderiam dar o seu melhor.

Geraldo Cascaes, formado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), chegou na colônia em 1954 aos 10 anos de idade e afirma que as pessoas procuravam reproduzir um pouco do mundo lá fora, como se fosse uma encenação da vida social.

Cascaes, como é conhecido dentro e fora do abrigo João Paulo II, explica que começou a sentir os primeiros sintomas da doença aos 7 anos. O tempo foi passando e as manchas e dores ficaram cada vez mais acentuadas. Quando completou 10 anos de idade, sua família desconfiou que ele estava com a doença e o levou ao médico. Ele contou que chegou a tomar alguns medicamentos, mas sem sucesso, e o jeito foi ser internado na colônia.

“A minha sorte foi que a minha família nunca me abandonou. No meu pavilhão tinham uns 15 meninos; desses 15, só uns sete tinham visitas, outros vez ou outra, e alguns nem tinham”, disse.

Logo nos primeiros dias na nova morada, Cascaes estranhou bastante, mas logo se enturmou nas brincadeiras com os amigos do pavilhão. Sempre muito esforçado e inteligente, ele queria estudar. A dúvida, na época, era escolher entre o Direito e a Pedagogia, mas optou seguir pelos caminhos da justiça. Terminou o segundo grau e se preparou para prestar vestibular, ele e mais um amigo da colônia.

Em 1977, os dois ouviram no rádio a notícia que mudaria os seus destinos: foram aprovados na Universidade Federal do Pará (UFPA). “Foi uma alegria enorme comemorar esse dia”, recordou Cascaes.

Passado o entusiasmo da aprovação, o sentimento que tomou conta foi o medo de encarar uma universidade. As sequelas da doença já eram visíveis em suas mãos. “Fui frequentar a universidade, a gente ficou temeroso. Eu já tinha defeitos nas mãos, e meu amigo que passou, também. Aí tinha que fazer um exame pra entrar na UFPA, mas falamos com o Dr. Chaves, diretor da colônia, ele mandou a gente levar um documento, passamos pela inspetoria e nossa entrada foi liberada. Durante as aulas eu não tive problema nenhum. Eu não falava que morava aqui, mas o pessoal sabia que eu tinha a doença. Eu nunca passei vexame. Eu usava perna mecânica, porque a doença tinha afetado meus nervos e eu tive que amputa”, explicou.

Geraldo também se casou na colônia e teve dois filhos que foram levados para o educandário, mas isso não impediu que lutasse pelos seus objetivos. Quando se formou, em 1982, retirou os seus filhos do internato compulsório. A menina tinha 11 e o rapaz, 9 anos.

Dentro de todos os hospitais-colônias do Brasil existia uma participação muito grande da igreja católica. Em Marituba, não foi diferente. Padres e freiras foram responsáveis pelas grandes mudanças e perspectivas melhores aos doentes.

Embora o decreto nacional de desativação das colônias tivesse sido instituído em 1970, a colônia de Marituba realizou internações até fevereiro de 1982, e no decorrer do mesmo ano internos da colônia receberam a visita do papa João Paulo II, que proferiu palavras de esperança e fé aos internos que estavam preocupados com o que iria acontecer com seu futuro.

Geraldo explica que a visita foi um dia único na vida de todos que estavam ali. “O papa veio aqui quando a gente estava com aquele pensamento: o que vai acontecer com a gente, porque não se interna mais ninguém. O papa veio em boa hora, e dirigiu umas palavras muito fortes para gente. Foi um dia esplendoroso”, recordou.

Após essa visita, as coisas mudaram significativamente na colônia. Lembram do Jorge da Silva, do início da reportagem? Ele escreveu um poema que retratou em palavras o quanto a segregação foi devastadora na vida de quem foi acometido pela hanseníase, e também falou sobre a mudança da colônia para o abrigo.

DO INFERNO AO PARAISO

Outrora, um cárcere privado,

Que da sociedade escondia seres humanos,

Acometidos de um mal quase sem cura.

Crianças, jovens, adultos aqui chegavam,

Sem esperanças de sobreviverem, a uma vida difícil e tão dura.

Intensa mata virgem de frondosas árvores,

Circundavam aquele exílio, transformando-se

Em poderosas muralhas,

Que isolavam do resto do mundo,

Aquele povo, já marcado e escravizado,

Pela tão temida desgraça.

Um presídio onde pessoas

Fingiam sorrir, para suas tristezas esconder,

Fingiam cantar, enquanto as dores dos sofrimentos

Por dentro os faziam chorar

Pareciam eternos, os dias de angústia e solidão,

Para que alguém ali pudesse se acostumar.

Mas dos altos céus, um poderoso Deus tudo via.

E traçou em suas mãos um destino novo,

Para aquele povo que ali sofria.

Ungiu quatro amigos, uniu quatro vidas,

E entrelaçou-as em um só coração,

Para lutarem por um só ideal,

Transformar vidas sofridas,

Em calmaria real [...]

Lembrá-los hoje não é tudo,

Tudo é viver as lições de vida,

Que hoje aqui estamos a desfrutar.

Dom Aristides, João Calábria,

Marcello Cândia e João de Deus,

Servos do senhor, que por aqui

Passaram, queremos aqui homenageá-los

E agradecer-vos em espírito,

Por este paraíso abençoado,

Que por vós foi reformado,

Libertando do cativeiro,

Um povo sofrido, mas por vocês tão amado,

Salve o dia 14 de novembro, dia em que o abrigo João Paulo ll foi por Deus abençoado.

(Jorge Silva, morador da colônia de Marituba)

Reportagem e texto: Adrielly Araújo.

Edição: Antonio Carlos Pimentel.

 

No abrigo João Paulo II, um dos quartos chama a atenção pelo capricho. Da janela, dá pra ver várias mudas de plantas. Na cozinha, panos de prato decorados com crochê. Em cima da geladeira, um porta-retrato com a foto de mãe e filha. No quarto, a colcha de cama combinando com as fronhas cheias de borboletas, iguais aos adesivos colados na geladeira.

Quem mora ali é Maria Lemos de Sousa. Ela descobriu que estava com hanseníase aos 7 anos de idade, mas só foi internada na colônia de Marituba aos 14, isso porque sua mãe não queria que ela fosse levada para o leprosário pois sabia que perderia o contato. Eram ribeirinhas, e realizar as visitas seria algo difícil. Mas não teve jeito. Maria foi denunciada à vigilância sanitária e seguiu para a colônia de leprosos, a prisão perpétua dos atingidos pelas chagas malditas.

##RECOMENDA##

Quando chegou na colônia, o susto: descobriu que estava grávida de 4 meses. Na hora do parto ficou sabendo pelas enfermeiras que não poderia tocar nem amamentar o seu bebê. A filha foi doada para uma família que ela sequer conhecia. “Mandaram eu dar para uma família, eu dei. Mas acabou que a menina morreu. Já estava sentando a bichinha, faleceu com uma espinha na garganta, foi o que me disseram”, contou.

Mesmo com a dor da perda, Maria precisou retomar a vida novamente. Casou-se na colônia e teve mais seis filhos. “Eu nunca amamentei meus filhos, nenhum deles. Eles se criaram tudo lá no Educandário. Por isso que eu digo: a gente não tem muito amor pelos filhos porque a gente não criou. Eu era só ter, levavam. Eu tive sete filhos todos dentro da colônia.”

A filha Ivonete, cuja foto está estampada no porta-retrato, tem 46 anos e viveu no educandário até os 8 anos de idade. Também foi contaminada pela hanseníase, mas fez o tratamento precocemente e não adquiriu nenhuma sequela da doença.

A política de isolamento devidamente respaldada pelo governo e reconhecida como única medida de combate à disseminação da lepra deixou um buraco irreparável na relação entre pais e filhos. No ano de 1940 foram instituídas algumas normas para a prevenção da doença, e uma delas abordava diretamente sobre os filhos. Pela Lei nº610, nos Artigos 15 e 16, a ordem de segregação era clara: “Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais. Os filhos de pais leprosos e todos menores que conviviam com leprosos serão assistidos em meio familiar ou preventórios especiais”.

De maneira desumana, bebês eram arrancados de suas mães logo após o nascimento e levados imediatamente para um educandário, um tipo de orfanato que, na maioria das vezes, era administrado por freiras. Em Belém, todo filho de hanseniano foi encaminhado para o educandário Eunice Weaver, localizado próximo à Base Aérea, no bairro da Pratinha.

Ana Dias Pantoja Saraiva também passou pela mesma situação da sua colega de pavilhão. Ficou grávida duas vezes dentro da colônia, e viu suas filhas serem arrancadas do seu ventre e levadas para o educandário, sem o direito de receber um cheirinho de mãe. Ela conta que se sentiu muito satisfeita porque ainda conseguiu ver suas filhas quando nasceram, mesmo que fosse de longe. “Tinha mãe aqui que tinha o filho e só recebia a notícia que o filho tinha falecido. Que nada! Às vezes eles tinham era doado a criança”, falou. 

Ana explicou que nas poucas vezes em que foi visitar as filhas no educandário não conseguiu nem tocar nas crianças. “Não podia nem chegar perto das crianças que as irmãs não deixavam. Não podia levar nada, nem comida, nem dinheiro. Eu fui pegar na minha filha quando já era grandinha.”

Além do isolamento, na colônia também existiam diversas regras e punições. Quem cometesse alguma infração já estava ciente que iria responder. Quem praticasse o ato sexual antes do casamento, por exemplo, era obrigado a casar.

Foi o que aconteceu com Ana, que conheceu seu marido dentro da colônia, casou-se, mas alega nunca ter sentido amor pelo cônjuge. “Aqui a regra era clara, tinha que obedecer. Aí eu conheci meu marido, mas eu nem gostava dele, era só aquele negócio, sabe. Aquele desespero, aquela influência, porque era muito fechado aqui dentro, a gente vivia isso aqui”, disse.

Ana ficou grávida e encurralada pela situação. Ela e o pai da criança tiveram que “juntar as escovas” e seguir com o matrimônio conforme as regras e protocolos da colônia. Ela conta que o diretor, quando soube do que tinha acontecido, ofereceu-lhes duas opções: casamento ou transferência para a colônia do Prata, que ficava afastada cerca de 150 quilômetros da capital e que negligenciava ainda mais os pacientes. Ana afirma que ninguém queria ir para lá.

Sem saída, o que lhes restava era casar, porque nem o bebê com eles iria ficar. “Eu casei, mas eu nem queria, eu tentei pegar uma amizade, mas não era amor, a gente só estava habituados. Ele era muito diferente de mim, muito diferente. Aí fomos morar no pavilhão dos casados e ficamos casados nove anos”, disse.

Doença milenar

Apesar da hanseníase ser uma doença milenar, ela ainda encontra dificuldades para se libertar das profundas raízes do preconceito e do medo. Por muito tempo pessoas infectadas pelo bacilo de Hansen foram isoladas da sociedade e obrigadas a viver como indigentes em cavernas ou florestas, abandonadas para se deteriorar.

Acreditou-se por vários anos que a moléstia era uma espécie de maldição. As chagas de um castigo divino.

Na Idade Média, o tratamento contra os hansenianos foi bem mais cruel. Os enfermos tinham seus laços cortados com a sociedade, e na maioria das vezes tinham que ser considerados legalmente mortos, eram obrigados a esquecer da família, bens etc. O doente ainda era obrigado a usar vestimentas específicas que o identificassem como tal e fazer soar um sino ou algum objeto que causasse ruído e avisasse aos sadios da sua chegada. O sistema era tão perverso e rigoroso que, para desfazer definitivamente as ligações com a sociedade ou com vida que levava antes da doença, rezava-se uma missa para oficializar a separação.  

Antes de serem encontrados a cura e o tratamento correto para a hanseníase, alguns pacientes passaram por diversas formas de experimento, muitas vezes com uso de substâncias que lhes causaram muito mais danos que benefícios. 

Reportagem e texto: Adrielly Araújo.

Edição: Antonio Carlos Pimentel.

 

[@#galeria#@]

“O seu filho está leproso.”

##RECOMENDA##

Essa foi a frase que traçou o destino do seu José Glória de Sousa, hoje com 68 anos, cadeirante e morador do abrigo João Paulo II, em Marituba. Glória, como é conhecido pelos amigos da ex-colônia, dedica suas tardes a ver o movimento na saída do abrigo, senta todos os dias embaixo de um jambeiro e fica batendo papo com o porteiro até chegar a hora do jantar, servido às 18 horas.

Nascido no Marajó, interior do Pará, Glória levava uma vida normal até completar 14 anos de idade, quando foi diagnosticado com a doença. “Começou a aparecer mancha no meu corpo, aí o papai me levou no farmacêutico, que já tinha sido enfermeiro na colônia do Prata.” Glória conta que lembra até hoje do que foi dito naquele dia. “O farmacêutico disse pro papai: ‘Seu filho está leproso’. Naquele tempo não era hanseníase, era lepra”, afirma.

Mal ele sabia que depois desse dia a sua vida nunca mais seria a mesma. Após receber o diagnóstico da doença, começou a sentir as chagas do preconceito. “Era muito ti-ti-ti, esse cara vai passar doença pra mim. Era muita gente que dizia para meu pai: ‘Ei, rapaz, por que tu não mandas esse teu filho embora daqui?. E o meu pai dizia: ‘Poxa, eu não vou mandar ele embora daqui, sair de dentro de casa, ele é meu filho’.”

Conforme o tempo passou, Glória tentou continuar vivendo no vilarejo, por mais alguns anos, mas não aguentou a discriminação de amigos e familiares e decidiu partir por conta própria para o seu destino, a colônia. “Meu pai faleceu quando eu tinha 18 anos e aos 22 anos eu fui embora para colônia me internar. Era tanta conversa que existia contra mim que eu achei melhor ir para o meio dos meus irmãos de sofrimento”, finalizou. Glória viu sua família pela última vez em 1987. 

Embora o tratamento da hanseníase seja acessível em qualquer unidade de saúde e exista há vários anos, o Brasil ainda é, atualmente, o segundo maior país do mundo com maior número de casos da doença, ficando somente atrás da Índia, segundo dados da Organização do Mundial da Saúde (OMS).

Diagnóstico precoce é fundamental

Segundo médico Francisco de Assis Norat, há doenças que existem há milênios, como a hanseníase, e que são negligenciadas porque atingem, em sua maioria, as camadas mais pobres. “Então, ela se prolifera e não se dá a importância devida”, informou o médico.

A transmissão do bacilo de Hansen se dá pelo contato íntimo e prolongado com o portador da doença através de gotículas eliminadas no ar pelo infectado, principalmente em locais com ausência de higiene e saneamento básico. Entretanto, estima-se que a maior parte da população adulta tenha resistência à hanseníase. 

Dermatologista e pioneiro no tratamento ambulatorial de poliquimioterapia – PQT, no Estado do Pará, Norat entende que o diagnóstico precoce é fundamental para que o tratamento avance antes que a doença evolua, causando alteração de sensibilidade ou atinja os nervos periféricos do corpo.

Desde 2016, o Ministério da Saúde oficializou janeiro como o mês de combate à hanseníase e consolidou a cor roxa para campanhas educativas sobre a doença. Veja informações no site da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH).

Reportagem e texto: Adrielly Araújo.

Edição: Antonio Carlos Pimentel.

 

 

“Faz 50 anos que eu não vejo a minha família, eles nem sabem que fui mandado pra cá.”

No primeiro quarto, do bloco 05, do pavilhão masculino, mora um senhor de 61 anos, conhecido como “Peixinho”. Um homem pacato, tímido, quase não exprime sentimentos. Quem o vê consegue perceber a angústia em seu olhar. Jorge da Silva foi um dos condenados à exclusão. Interno da ex-colônia de hansenianos de Marituba, perdeu o vínculo e o contato com a família e se viu obrigado a transformar a antiga prisão em lar.

##RECOMENDA##

Nascido no município de Breves, no Marajó, interior do Estado do Pará, quando criança era um menino travesso que costumava brincar e tomar banho no rio, mas aos 10 anos viu sua vida tomar um rumo completamente diferente. Após uma inspetoria de saúde médica, realizada todo mês nas cidades do interior, ele foi examinado e recebeu o diagnóstico temido: estava com a lepra. Começou um pesadelo. Foi arrancado e levado para longe dos braços da família, contra a sua vontade.

“Não tive nem o prazer de me despedir da família, que na época não era permitido, da feita que fosse diagnosticado não se tocava em nada mais da família. Inclusive, tudo que era meu que tinha na casa foi queimado, não ficou nada”, recorda.

Pela falta de solução do Estado e pouca informação sobre a forma de contágio da doença, pessoas eram submetidas a situações desumanas. A lei da época tratava os pacientes como monstros. A voz de Jorge estremece quando ele lembra de como chegou na colônia. Apenas com a roupa do corpo, foi jogado dentro de porão de um barco, chamado de batelão, responsável por transportar os leprosos daquele tempo.

“Eu vim de lá no porão de um barco, eu e mais doze doentes, só sabíamos o que era dia e o que era noite porque levavam as refeições: café, almoço e janta. Foram três dias e três noites de viagem”, afirmou e silenciou por alguns minutos.

A maioria dos internos da colônia de Marituba chegou lá por rotas fluviais, já que boa parte morava próximo aos rios. Na parte de trás da estrutura da colônia passa um traço do rio Guamá, chamado de rio Mocajatuba. Conforme o tempo passava, as perspectivas dos internos de regressar novamente à sociedade diminuíam. O que lhes restava era aprender a conviver com a saudade e a dor.

“Peixinho” ainda encontrou luz no fim do túnel. Na adolescência, conheceu uma freira, que trabalhava na colônia. Foi ela que resgatou suas esperanças e lhe ofereceu proteção e acalento materno. “Depois que eu, entre aspas, consegui me acostumar aqui, eu passei a ser cuidado por uma freira, foi ela a responsável por tudo que eu sei hoje em dia, pela minha educação, pelo meu trabalho, era ela que me sustentava. Fiz vários cursos, mas Deus não quis que eu trabalhasse”, relatou e acrescentou que era muito grato à irmã.

Estigma e discriminação

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa que age de maneira lenta e caracteriza-se por manifestações e evoluções neurológicas e dermatológicas, atingindo nervos periféricos da mão e do pé, como também membros da face, especialmente nariz e olhos, causando vários tipos de mutilações e limitações físicas, principalmente se não houver um diagnóstico precoce. Denominada por muitos anos como lepra, e conhecida desde antigas civilizações, a doença carregou ao longo de sua história um estigma de discriminação e isolamento.

Inaugurada em 1942, a colônia de Marituba, município da Região Metropolitana de Belém, a cerca de 20 quilômetros da capital, tinha o propósito de combater a endemia. Por meio do Serviço Nacional da Lepra, criado um ano antes, além do isolamento compulsório, a colônia de Marituba também teve uma política interna ditatorial, com regras e leis punitivas para qualquer infração.

Doença da pobreza

A hanseníase é uma doença que existe há milênios, mas a proliferação da endemia acontece até os dias atuais. A enfermidade, que deveria ter sido erradicada em 2015, ainda apresenta uma alta transmissão e detecção de novos casos em várias regiões do país, principalmente onde reinam condições de extrema pobreza e falta de atendimento médico.

Conforme os parâmetros do Ministério da Saúde, o Estado do Pará ocupa o 5º lugar no ranking de incidência da doença, com 29,73 casos por cada 100 mil habitantes notificados em 2018, ficando atrás do Maranhão, Mato Grosso, Tocantins e Rondônia. Segundo dados da Secretária de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), somente em 2019 já foram confirmados 973 novos casos. A negligência e o atraso no combate contribuem para o fortalecimento do estigma e preconceito em relação à doença.

Com o objetivo de afastar de diminuir o preconceito que o termo “lepra” impunha aos doentes, o governo brasileiro proibiu o uso da nomenclatura através da Lei nº 9.010, de 1995. Conforme a nova legislação, a doença passou a ser chamada de “hanseníase”, em homenagem ao médico norueguês Gerhard Amauer Hansen (1841–1912), que descobriu, em 1873, o micróbio causador da infecção, chamado de Mycobacterium Leprae.

LeiaJá também

A frase que traçou destinos: "O seu filho está leproso"

Dor de mãe: "Eu nunca amamentei meus filhos"

O outro lado da colônia: "Aqui existia solidariedade"

A superação: "Saí daqui com sequelas, mas fui trabalhar"

Uma audiência pública será realizada na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), em belém, nesta sexta-feira (29), para debater a situação de filhos separados dos pais durante o isolamento compulsório da hanseníase, entre as décadas de 1930 e 80. O encontro, proposto pela deputada Michele Begot, atende solicitação do Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase (Morhan).

No Pará, uma ação do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) resultou em um projeto de lei que reivindica reparação aos filhos e filhas separados de pais atingidos pela hanseníase isolados compulsoriamente no Brasil. O projeto também será debatido durante a audiência pública.

##RECOMENDA##

De acordo com o Projeto de Lei apresentado pela deputada Michele Begot e em tramitação nas comissões permanentes da Alepa, os filhos segregados dos pais com hanseníase submetidos à política de isolamento compulsório terão o direito à indenização se tiverem sido encaminhados a educandários, creches e preventórios, ou se permaneceram separados de seus pais por meio de adoções judiciais ou não, bem como as crianças que foram acolhidas em casa de parentes que não recebam o benefício concedido pela Lei federal 11.520/2007 e que tenham um rendimento de até que salários mínimos.

“Precisamos buscar também, através do Estado do Pará, a indenização desses filhos e filhas de hansenianos, que também tiveram seus direitos violados”, justifica a deputada Michele Begot.

O governo federal já fez o levantamento oficial de quantos filhos separados ainda estão vivos no Brasil e poderiam ser beneficiados com as indenizações. Assim é possível estipular o impacto financeiro do pagamento para o orçamento da União. Essa estimativa hoje é de cerca de 15 mil pessoas (1/3 dos 45 mil estimados em 2007, quando a mobilização foi iniciada).

O Brasil tem hoje cerca de 5 mil filhos cadastrados pelo Morhan, através do Telehansen 08000-26-2001.

Cerca de 200 pessoas, entre filhos e ex-pacientes de hanseníase das antigas colônias de Marituba e do Prata, em Tomé-Açu, são esperados para o debate. As propostas apresentadas, como a união de todos os estados em torno do pagamento de uma indenização federal em todo o país, serão encaminhadas à Comissão de Saúde da Assembleia e anexadas ao dossiê “A história dos filhos órfãos de pais vivos”.

Da assessoria da Alepa.

 

A Sociedade Brasileira de Hansenologia aponta que não existia nenhum embasamento científico para o isolamento no intuito de controlar a transmissão da doença. Sabia-se apenas que o contágio era feito de indivíduo doente para indivíduo sadio. Porém, os meios de transmissão ainda não estavam totalmente claros.

Atualmente, os casos ainda são muitos. Em 2016, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 143 países reportaram 214.783 casos novos de hanseníase, o que representa uma taxa de detecção de 2,9 casos por 100 mil habitantes. No Brasil, no mesmo ano, foram notificados 25.218 casos novos, uma taxa de detecção de 12,2 a cada 100 mil habitantes. Esses parâmetros classificam o país como de alta carga para a doença, sendo o segundo com o maior número de casos novos registrados no mundo. O Morhan aponta que uma das maiores dificuldades para essa diminuição é o preconceito, ainda muito latente.

##RECOMENDA##

Segundo Erving Goffman, pesquisador autor de "Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada" (1988), cada sociedade estabelece para seus membros os atributos que ela considera como comuns, aceitáveis. O autor complementa que as relações sociais são mediadas por esses atributos e quando somos apresentados a alguém, a pessoa é avaliada segundo tais códigos sociais e categorias específicas.

Quando esse "estranho" não corresponde aos padrões e códigos, logo é enquadrado numa categoria rebaixada, sendo classificado como inferior. Goffman relaciona três tipos de estigma. Em primeiro lugar, as chamadas ‘abominações do corpo’ – relativo às várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas ou distúrbios de caráter mental. E, finalmente, os estigmas de raça, nação, religião.

A ‘lepra’ se enquadraria no primeiro tipo de estigma. Mesmo nem todos os doentes apresentarem sintomas aparentes da doença (lesões físicas). Mesmo assim, o passado histórico e sua referência bíblica a caracterizam como uma ‘abominação do corpo’.

Os olhares da sociedade distanciavam cada vez mais os internos de uma realidade próxima a normalidade. Ao mesmo tempo em que essas práticas de exclusão iam sendo impostas, táticas de resistência eram inventadas cotidianamente por esses doentes para escaparem dessa rede de exclusão. Muitos não aguentavam a vida dentro do hospital-colônia e fugiam.

Thiago Flores, diretor do Morhan, alega que tudo não passou de uma crime de estado, além da dor e sofrimento. "O brasil desde 1968 não poderia mais seprar compulsoriamente pessoas com hanseniase e nem isolar os seus filhos. Mas ao contrário da lei, até o ano de 1986 as pessoas com hanseníase eram obrigadas a viverem isoladas nas colônias do país", denunciou.

Frei Guido, o homem mais respeitado da Mirueira

Quadro do Frei Guido pendurado na sede do Centro Social da Mirueira. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O religioso franciscano Frei Guido Fiekers contriu a hanseníase quando participava de uma caravana missionário no norte do Brasil. Ele decidiu se tratar e logo foi transferido para a então Colônia da Mirueira. Passou a morar na Vila dos Casados do hospital. O Franciscano encontrou uma realidade desafiadora, um ambiente de pobreza, cenário de grandes dramas sociais.

O alemão deu início a uma ação pastoral interna. Realizava celebrações na própria residência, catequizava e ajudava na alimentação de alguns carentes. Ele optou por permanecer na Colônia mesmo depois de sua liberação hospitalar. Em 1967, é nomeado Capelão do Sanatório Padre Antônio Manoel, passa a morar junto ao pórtico principal do hospital, próximo a igreja, numa pequena casa, depois reformada e designada Residência do Capelão. Reformou a entrada da igreja, com intuito de facilitar aos doentes com sequelas motoras, o acesso aos atos religiosos ali celebrados.

Frei Guido também foi responsável por ajudar os pais a localizar os filhos afastados. Muitas vezes doava terrenos para que as famílias pudessem buscar as crianças e começar uma nova vida. Fundou uma escola no bairro da Mirueira porque os filhos dos internos não podiam estudar nos colégios tradicionais por causa do preconceito. Havia, naquele tempo, medo de contágio e isso causava uma forte discriminação e rejeição aos que de alguma forma eram atingidos pela doença.

Frei Guido criou em março de 1970 a Escola Centro Social da Mirueira, que oferecia material didático, fardamento e merenda a seus alunos. Em 31 de maio de 1980, Frei Guido vem a falecer de infarto em sua residência, dentro do Hospital da Mirueira. Dois anos depois, a Escola fundada por ele, recebe o nome de Grupo Escolar Frei Guido.

[@#video#@]

Não há respeito nem a memória dos enterrados no cemitério do hospital Atualmente o Hospital Geral da Mirueira, apesar de ainda ser considerado referência no atendimento à hanseníase, também realiza o tratamento para recuperação do alcoolismo.

O enfermeiro Randal Medeiros, coordenador do Morhan Recife. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Para Randal Medeiros, coordenador do Morhan, o tratamento para os hansenianos deixa a desejar. Ele aponta que o centro médico não disponibiliza as melhores condições para os pacientes.

"Não há ambulatório estruturado, o local de internação é precário e pode perceber que as alas de hanseníase ficam bem no fim do hospital. Eles agoram atuam na questão do álcool porque é o que dá mais dinheiro. A gente percebe que há um abandono por lá, o mato muito grande e parece que a história vai se apagando aos poucos", destaca Randal.

No cemitério, onde as memórias deveriam ser preservadas com dignidade, o cenário de abandono é visível. Lápides com muitas pixações, sem os devidos nomes dos que já partiram. O mato tomou conta do local que parece não passar por uma obra de preservação há anos. O local do velório não existe mais.

Apesar do abandono, os pacientes que restaram fazem questão de serem enterrados lá. Querem descansar ao lado de seus companheiros de vida. A gestão do hospital coloca a culpa no município e vice-versa. Não bastasse o sofrimento cometido contra essas pessoas em vida, a morte também parece ser uma dificuldade.

[@#podcast#@]

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:



"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"

"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe





"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"



"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso

Zilda Pereira da Silva, 69, não se lembra do começo de sua vida. A primeira recordação é ao acordar no Instituto Guararapes, que ficava localizado no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. O preventório é para onde as crianças afastadas dos pais eram encaminhadas pelo Estado. Atualmente a sede do instituto está sob responsabilidade da Igreja Católica e o orfanato não funciona mais.

##RECOMENDA##

Ela chegou por lá ainda bebê e diz que no início a rotina era normal. Eles podiam brincar, tinham aulas e conviviam bem. Mas, bastava uma criança fazer algo fora da curva que ela já era espancada e castigada de forma severa. Nas palavras de Zilda é possível perceber que ela ainda não sabe a gravidade do que passou naquele local, quando estava sob responsabilidade do governo. Afirma não ser sido humilhada, mas conta que era torturada pelas mulheres que trabalhavam no local.

“Elas batiam nas nossa cabeça, esmurravam, e nos colocavam no milho para rezar”, detalhou. Um episódio que aconteceu no Instituto Guararapes causa problemas até hoje para Zilda, décadas depois. Ela estava no balanço brincando com os colegas e um garoto atirou em sua direção uma lata de doce, daquelas de ferro. “Ela pegou em cheio no meu dos meus peitos. Sangrou muito e inflamou, eu me lembro. Como ninguém tratou até hoje sou prejudicada, já fiz cirurgia e tomo muitas medicações porque dói muito, minha filha”.

Entrada do antigo Instituto Guarrapes, na Várzea. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

A aposentada nunca conseguiu conhecer a sua mãe. Parece que a história se repete em círculos. Ela também foi uma filha afastada dos braços maternos e imagina até hoje como teria sido uma vida diferente caso tivesse o apoio de uma mãe. Quando ficou mais velha descobriu como a mãe morreu e o trauma só aumentou.

“Foi assim minha filha, ela vivia aqui dentro da Mirueira internada. Aqui eles casavam e tinham filhos porque só podiam conviver entre eles. Ela não sabia que estava grávida e mandaram ela pra uma hospital daqui de Paulista. Ela chegou lá e eles viram que ela ia ter o bebê. Mas olharam o prontuário dela e viram que era hanseniana. Não sei se ficaram com medo, mas não fizeram nada e ela continuou sangrando. Mandaram a minha mãe de volta para a Mirueira e ela, não sei ao certo, não conseguiu parir. O meu irmão nasceu deformado e morreu. Ela também morreu, muito jovem”, chora Zilda ao argumentar que a mãe não teve os cuidados necessários que um ser humanos precisa.

Zilda conseguiu sair do Instituto Guararapes só aos 18 anos e foi morar com uma familiar. Ela entrava escondido no hospital para conversar com o pai e teve tempo de conhecê-lo. Sua vida também girou em torno da região do bairro da Mirueira e é assim até hoje. Casou, teve filhos, uma delas também foi diagnosticada com hanseníase, mas se tratou e vive saudável. Ela nunca conseguiu criar os filhos devido as condições financeiras. “Meu sonho era tê-los criado, mas não deu. Pelo menos estão bem e com saúde”, disse aliviada, enquanto se despede e pergunta se a entrevista pode ajudá-la de alguma forma.

Zilda também participa de reuniões com outros filhos separados com o intuito de lutar por uma indenização pelos danos causados pela seu afastamento dos familiares. Ela exita em culpar o estado, o hospital ou a direção do Instituto Guararapes. Acredita que tudo acontece por um motivo e que deus só dá o fardo para quem pode aguentar. Mas, se questionada sobre as violências sofridas por toda uma vida, as memórias ressurgem e ela fala como se tudo tivesse acontecido ontem.

Casa onde funcionava a antiga maternidade do Hospital da Mirueira. Hoje o local foi reformado e é utilizado para fins administrativos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ao entramos no hospital, atualmente com cerca de 11 hectares de terra, nos deparamos com um local que parece não ter fim. É imenso. Ladeiras, igrejas, muito mato e funcionários para todos os lados. No fim da rua principal fica o espaço destinado aos últimos moradores que também são pacientes. Ficaram por lá porque já são idosos e não têm mais familiares dispostos a cuidar da enfermidade. Do período da compulsoriedade ainda residem na área asilar 23 pacientes.

Já aposentada, Maria José de Souza, 70, chegou no auge de sua vida ao hospital. Não se lembra com clareza dos números, mas desconfia que tinha vinte anos. Ela estava grávida da terceira filha, as duas primeiras já não tinham convivência com ela e foram morar em São Paulo com a família do pai.

Diagnosticada com hanseníase, ela sabia que ao ter o neném não poderia ficar com a filha para criar, um sonho antigo. Mas também não imaginava que ela lhe fosse tirada exatamente no mesmo dia em que nasceu. Ela conta que pariu na maternidade da Mirueira e só conheceu a criança um mês depois, após conseguir uma licença e ir visitá-la na Várzea. E foi assim por anos. Visitas esporádicas e uma relação abalada.

Maria José recebe ligações às vezes das filhas, mas é nas novelas que se apega. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ela mora sozinha uma casa simples dentro do condomínio ‘Gil de Campos’, onde pacientes mais antigos residem. Recentemente pintou a casa toda de cor de rosa para ficar charmoso. Por muito tempo fez questão de cozinhar sua própria comida, mas pelas limitações físicas Maria José aguarda rotineiramente pela alimentação que já vem preparada da enfermaria. Recebe ligações às vezes das filhas, mas é nas novelas que se apega. “Gosto de assistir porque é a única coisa que me restou para fazer”, disse.

Durante a tarde, conversa com o vizinho na calçada e observa a antiga praça onde viveu momentos marcantes ao lado dos amigos também internos. Ela se locomove com uma cadeira de rodas improvisada feita de madeira e com rodinhas de poltronas de escritório. É da cama para a porta de casa e vice versa todos os dias. O tom de saudosismo e os olhos marejados aparecem quando ela relembra as décadas passadas.

“Aqui tinha festa para toda época do ano. A gente vivia isolado, mas tinha muitas pessoas, mais de 400. Era uma cidade, tinha festa de são joão, nessa época mesmo as bandeirinhas já estavam penduradas por aí. Tinha quadrilha, comida e muita música. A gente era feliz, apesar de tudo. Hoje em dia é assim. Um silêncio absoluto”, destacou Maria.

Única fotografia mais jovem que guardou. Nessa época ela já estava internada na Mirueira. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Um pouco mais a frente da casa de Maria José, na praça que hoje se encontra mal cuidada, uma senhora tira um pano do bolso e enxuga a testa de tanto suor. Ela está vestida com uma roupa azul e chapéu para se proteger do sol forte, quando o relógio se aproxima das 15h. Caminha de um lado para o outro limpando o mato com uma vassoura de jardim metálica e ao ser chamado diversas vezes por uma das colegas, prefere não olhar e continua o serviço.

Após a insistência, Carmem Lúcia Cavalcanti, 54, decide parar por alguns segundos e topa conversar um pouco desde que não a atrase nos afazeres. Ela trabalha como ajudante de serviços gerais no Hospital da Mirueira há mais de trinta anos. Coleciona histórias do que já fez pelo local e diz que é feliz trabalhando na colônia, apesar do salário ser pouco e atrasar muito.

Prefere ser chamada de ‘Cainha’ porque não gosta do seu nome. Ela nasceu na Paraíba e ainda muito garota sua família descobriu que ela tinha hanseníase. Foi morar na ala dos doentes no Instituto Guararapes porque não podia ficar mais em casa para não passar a doença aos irmãos.

Cainha trabalha no hospital há mais de trinta anos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O pai descobriu a doença quando retornou no quartel e foi transferido para a Mirueira. “Ele não podia ficar com a gente porque o tratamento só era feito se ele estivesse internado. A mãe de Cainha tinha cinco filhos, dois deles também fizeram o procedimento médico e o resultado deu positivo para hanseníase. Clóvis e Cainha foram ainda jovens morar no preventório, na Várzea.

“Se eu tivesse um filho hoje com esse mesmo problema eu nunca internaria eles lá. Foi a pior fase da minha vida”, relembrou. Ela chegou com oito anos e saiu aos 19. O discurso é o mesmo de quase todos que passaram por ali. Sofrimento, tortura e muitos castigos.

Antigo pavilhão onde ficavam os dormitórios no Instituto Guararapes. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Os quartos das crianças com hanseníase era isolado dos outros para não correr o risco da disseminação da doença. Cainha também sempre sofreu de esquizofrenia e precisava tomar remédios controlados. Quase sempre fazia xixi na cama e como castigo, dormia no chão porque a cama estava molhada.

Quando recebia visitas da mãe, sempre chorava e pedia para voltar para casa. Anos afastada da família, Cainha garante que não houve um dia sequer que não sonhou com a volta para a casa. No ano em que o pai já estava melhor de saúde, comprou uma casa no bairro da Mirueira e trouxe a esposa e parte da família. “Foi quando a minha mãe veio buscar a gente, eu e meu irmão”.

Ao reencontrar a família dos vinte anos em diante, sentiu o que era um vínculo familiar pela primeira vez. Conseguiu ainda jovem um emprego no Hospital da Mirueira, onde ela e seu pai se tratavam.

[@#video#@]

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:

"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"




"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe




"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso



"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"

Antônio José Cisneiros ainda criança no preventório. Foto: Arquivo Pessoal

##RECOMENDA##

Antônio José foi afastado dos pais e só conviveu três meses com a mãe. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Antônio José Cisneiros, 75, passou doze anos da vida no Instituto Guararapes. Foi mais uma criança separada da mãe e do pai, que permaneceram internados no hospital. Só conviveu com a mãe por três meses, ela veio a falecer noventa dias após ele sair do orfanato. Conversava com ela pessoalmente e nunca se esqueceu das lembranças daquele tempo.

Passou anos morando na rua e passando fome, após ser retirado do orfanato por uma suposta tia, que o fazia de empregado. Vendeu jornal, fez biscaite e a vida só melhorou quando aprendeu a dirigir e um conhecido lhe ofereceu um emprego para trabalhar de motorista. Ele foi empregado pelo governo do estado e passou a dirigir o carro do Hospital da Mirueira.

Ao lado da filha Irene Lopes, 49, José relembrou as etapas vencidas de sua trajetória. Conviveu com o pai durante alguns anos quando dirigia para o hospital e guarda ótimas lembranças. O tempo que passou no Instituto Guararapes ainda provoca arrepios pelo tratamento que sofreu.

Irene ao lado do pai. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Thiago Flores, diretor nacional do Morhan, Diretoria Jurídica e Diretoria de Filhos Separados, luta também para que os filhos afastados ganhem uma indenização do governo. “É aos moldes da Indenização da Lei 11.520/07, ao qual indeniza todas as pessoas com hanseníase no Brasil que foram separadas compulsoriamente, essa luta tem 9 anos e ninguém ainda foi indenizado, não existe ainda a lei. Alguns filhos já entraram na justiça pedindo danos morais, mas o tempo é um dificultador, a maioria dos magistrados consideram que os "crimes" estão prescritos.”, explicou.

Pai de cinco filhos e casado desde 1964, Antônio ainda espera receber a indenização em vida. "Quando chega dia de finados, eu venho ao hospital para acender velas. Eles estão enterrados aí. Esse dinheiro não vai pagar o sofrimento, mas é justo que a gente receba pelos danos", comentou. 

[@#video#@]

Deitado em uma cama dentro da enfermaria para hansenianos no Hospital da Mirueira, o aposentado José Ancelmo, 80, é integrante do pequeno grupo que restou por lá. Um papel ofício colado na parede ao seu lado o identifica de longe. Com letras escritas por um hidrocor preto, qualquer pessoa ao entrar na sala já sabe quem é aquele senhor. O procedimento é praxe para todos pacientes, mas não precisaria estar ali como auxílio para o lembrete. Todos no hospital conhecem seu Ancelmo e sua história de vida. Carismático e muito querido, o senhor é lembrado pela lucidez e simpatia para conversar com qualquer um, conhecido ou não.

Ancelmo é cego desde os 38 anos e também não pode mais se locomover sozinho. Por causa das consequências da hanseniase, precisou amputar os dois pés e as mãos ficaram sequelados e com tremores constantes. Ele está bem acomodado com uma fralda descartável e parece até que voltou a ser criança. Não fosse a tonelada de histórias que carrega, poderia voltar a ser um bebê.

Ele aproveitou a vida ao máximo até quando sua saúde permitiu. Gostava de tomar chopp em barzinhos, ouvir Nelson Gonçalves e dançar. A vida era um barato para Ancelmo, que antes mesmo de iniciar a conversa já canta versos que o fazem lembrar dos tempos da boemia, no centro do Recife.

Senhor,
Aqui estou eu de joelhos
Trazendo os olhos vermelhos
De chorar, porque pequei

Senhor, 
Foi um erro de momento
Não cumpri o mandamento
O nono de vossa lei

Senhor,
Eu gostava tanto dela
Mas não sabia que ela
A um outro pertencia

Perdão,
Por este amor que foi cego
Por esta cruz que carrego
Dia e noite, noite e dia

Senhor,
Dai-me a vossa penitência
Quase sempre a inconsciência
Traz o remorso depois

Mandai,
Para este caso comum
Conformação para um
Felicidade pra dois...

É nas letras da canção 'Novo Mandamento', de Cauby Peixoto, que a memória se faz viva e presente. A juventude bem aproveitada orgulha Ancelmo, que também adorava dançar. 

Ancelmo entrou no hospital aos 16 anos, mas passou períodos morando nos arredores da região da Mirueira, quando tinha melhora. Depois adoecia novamente e aí voltava.  Ele é natural da Paraíba e nasceu na roça. Desde os cinco anos já aparentava estar doente, mas a família não sabia ao certo o que poderia ser. Um dia seu primo montou com ele em um cavalo e foram a um povoado próximo para o atendimento médico. 

Quando relembra deste dia, o senhor lamenta a humilhação sofrida. O médico explicou o que ele tinha e falou na frente de todos que ao retornar para sua casa, todos seus pertecens precisavam ser separados, até mesmo o copo de água. "Voltei chorando muito no cavalo, nunca tinha sido tratado daquele jeito", lamentou.

"Era 1954. Estava em casa sofrendo muito e meu cunhado me levou em Serra Branca. Fiquei aguardando o atendimento. O dono da farmácia me colocou logo na frente da fila porque eu estava muito doente. O médico mandou logo eu me afastar. Perguntou se eu tinha mãe ou pai. E continou escrevendo em um papel. Ele me entregou a receita médica e tinha que tomar cinco injeções todos os dias e eu saí chorando. Quando eu cheguei em casa e contei a minha mãe, ela disse para eu não me preocupar", detalhou Ancelmo.

Registro de um aniversário de Ancelmo. Ele canta ao lado de uma amiga. Foto: Arquivo Pessoal

Anos depois foi transferido para se tratar no Hospital Geral de Mirueira e entre as saídas e retornos, fez muitos amigos, conquistou corações e repensou a vida. “Sou internado há 64 anos e estou vivendo mais alegre e feliz”, disse.

Ancelmo conhece cada esquina do hospital. Mesmo após as reformas com o passar dos anos, ele ainda sabe onde cada instalação fica. Frequenta atualmente o centro espírita porque foi na religião que encontrou paz. 

Casou duas vezes. Com a segunda esposa, que também estava internada na colônia, teve uma filha. A criança nasceu no dia 8 de março de 1965 e no mesmo dia foi enviada ao preventório, como era o costume da época. . “Eu me arrependo de colocar a minha filha lá, mas não havia outra maneira. Eu já estava com uma condição física ruim e minha família era toda sertaneja, não tinha ninguém para tomar conta dela", afirmou. 

A pequena Dolores Anselmo Barbosa passou os primeiros anos de vida na Várzea. Os pais conseguiam tirar a licença vez ou outra para encontrá-la. Os internos podiam sair do hospital por algumas horas ou alguns dias. Bastava fazer os exames e ser detectado que estava “negativo”. O médico dava uma licença que valia mais do que qualquer outro documento. Esse papel dizia o tempo que os pacientes podiam ficar na rua. “Era um documento que se a gente fosse chamada atenção na rua, podíamos mostrar e ficava tudo bem", disse ele.

Na conversa, Ancelmo relembra o primeiro encontro com a filha, aos quatro anos. Ouça abaixo:

[@#podcast#@]

Quando a criança completou onze anos, ele teve uma melhor condição e tirou a filha daquele local. "Ela não ficou aqui e foi morar na casa do meu enteado em Santo Amaro", contou. Atualmente, ele e Dolores são próximos. Ela está com 54 anos e visita o pai na Mirueira com frequência. O neto vai ao hospital todos os dias para dar banho no avô. "Logo mais ele chega por aí, o meu netinho Diego Anselmo", falou.

A saudade de casa sempre foi grande, mas a necessidade do tratamento era uma realidade "Esse era o mundo de todos internados. Era aqui. Aos poucos foram se espalhando. Uns pediam alta e iam embora. Outros a família vinha buscar e outros partiam para um mundo melhor. A vida é boa de se viver, só quem não sabe viver a vida é quem sofre muito. Eu não sofro".

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:

"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"

"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe

"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"



"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"

Maria José em sua casa no bairro da Mirueira. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

##RECOMENDA##

A aposentada Maria José Nascimento, 71, hoje vive cercada de seus oito filhos. Embora muitos tenham casado e constituído família, eles não saíram das redondezas do bairro onde vive a mãe. Ela gosta de ter todos eles próximos para se reunirem nos fins de semana, na laje de um dos filhos. O desejo de manter essa proximidade com os herdeiros remonta às décadas passadas, em que foi obrigada a se afastar dos maiores amores de sua vida ao ser diagnosticada com hanseníase.

Maria José é natural de Escada, cidade localizada na Zona da Mata Sul de Pernambuco, distante 60 quilômetros do Recife. Trabalhou por muitos anos na roça, capinando e plantando principalmente macaxeira e batata. De família humilde, casou-se ainda muito jovem e foi morar no Recife ao lado do esposo. Com ele teve nove filhos; posteriormente, um deles faleceria. A aposentada lembra que não tinha boas condições financeiras para cuidar da saúde e começou a sentir fortes dores no corpo ainda jovem.

Foi em diversos hospitais, postos e clínicas e ninguém sabia o que ela tinha. As dores não eram constantes, ela apareciam em períodos e podiam sumir, também. "Sentia um formigamento, parecia que tinha algum bicho andando pelos meus braços, sabe. Era um queimor danado", descreveu a aposentada. 

O marido decidiu que a família se mudaria para o Rio de Janeiro por mais opções de trabalho. Mesmo com dores, Maria José ficou alguns meses por lá trabalhando como doméstica nas casas de família. A viagem não fez bem. Os fortes sintomas voltaram e ela não conseguia sequer andar. Ficou de cama e os seus ossos doíam bastante. Os filhos ajudavam a dar banho, preparar a comida, mas todos queriam saber qual a solução para tamanho sofrimento da mãe.

O companheiro dela a abandonou e mandou todos de volta para o Recife. Na capital pernambucana, Maria foi instruída a procurar o Hospital da Restauração, referência em tratamento médico na Região Metropolitana do Recife. Não demorou muito para que de lá ela fosse transferida para o Hospital Geral da Mirueira, em Paulista, também chamado Sanatório Padre Antônio Manuel, na época. O diagnóstico confirmou a hanseníase, então lepra. Ela não sabia o que era a doença e nem desconfiava da existência do leprosário, local onde os pacientes eram isolados da convivência externa.

A colônia da Mirueira funcionava como uma micro-cidade e foi fundada em 1941 para atender às recomendações do Serviço de Profilaxia da Lepra. Projetado com ruas, praças, templo religioso, prefeitura, escola, área de lazer, além dos complexos médicos necessários, o local era símbolo do isolamento social dos acometidos pela doença em Pernambuco.

"Em Mirueira, sítio pitoresco, que fica em Beberibe, no extremo da zona rural do Recife, o govêrno nacional construiu uma cidade, provida de todas as instalações necessárias para o fim humano a que se destina. Parques de diversão, cinema, campos de cultura, a vida que se pode viver nas grandes cidades, fora dos recolhimentos e dos hospitais, em contacto com a natureza e a civilização, os doentes vão ter ali".

No dia 9 de julho de 1941, o jornal Folha da Manhã publica a nota acima acerca das obras de construção do Hospital-Colônia da Mirueira, inaugurado 17 dias depois, em 26 de agosto de 1941.

Fotografia antiga do Hospital da Mirueira. Foto: Acervo do Hospital Geral da Mirueira

Em 1970, quando chegou ao hospital, Maria José acrescenta que se assustou com o que viu. As pessoas estavam muito piores do que ela, muitas delas já deformadas, sem membros e fragilizados psicologicamente. O ambiente do hospital, por ser isolado, facilitava com que ela conhecesse a fundo a realidade de outros pacientes que por ali estavam há anos, muitos desde jovens.

"Muitos diziam a versão bíblica de que era um castigo para o corpo, outros falavam que era um problema de saúde herdada da família e diziam que era muito contagioso. Muita desinformação", lamentou Maria. 

Ao descobrir do que se tratava a “lepra”, parte de sua família virou as costas e não ofereceu suporte. Ela só tinha o pai e a mãe, essa última doente de cama e sem condições de oferecer muita ajuda. O pai foi o responsável por acolher as nove crianças no interior do Estado enquanto ela estava internada sem poder ter contato com ninguém do mundo externo.

“Meu pai não ganhava bem, não era aposentado e nada. Trabalhava no interior para cuidar de tudinho. Ele me disse que ia mandar cada um para uma casa de parente distante porque ele não tinha como dar comida e cuidar, precisava trabalhar. Me desesperei achando que nunca mais ia encontrar meus filhos”, relembrou Maria José.

A filha Maria de Fátima Santana, hoje com 50 anos, foi levada com o irmão Ronaldo para a casa de um parente distante no Engenho Jundiá, nas proximidades da cidade de Escada. Ela tinha dez anos e diz que apesar de tentar apagar as memórias ruins daquele tempo, elas ainda são vivas e presentes. “Meu avô dizia assim, ‘Eu não quero dar vocês não, mas a mãe de vocês está muito mal, de cama. Vou ter que espalhar vocês pelo interior’. Eu fui para a casa do irmão do meu avô e os outros foram sendo distribuídos. Não dava para a gente encontrar o outro porque era muito distante”, contou.

Ela relembrou que a família humilhava os filhos porque tinham medo deles terem a doença também. “Eu sofri muito nessa casa, trabalhava demais e ouvia muita coisa ruim”, lamentou ao relatar sobre o início da adolescência. Abuso sexual, espancamento e falta de carinho. Dos dez aos treze anos foi assim. Separados da mãe e sem perspectiva de um reencontro.

Outro filho de Maria José, o vigilante Paulino Santana, 45, tinha apenas sete anos quando precisou deixar os braços da mãe para que ela fosse se tratar da doença. Não entendia bem o que estava acontecendo e passou a viver com um "estranho" tendo apenas um irmão mais novo como vínculo familiar. 

O 'tutor' os obrigava a roubar frutas da casa do vizinho e os espancava com frequência. "Eu tive que fugir um dia. Não aguentei mais. Saí correndo por dentro do mato quando vi ele bater muito no meu irmão. Entrei dentro das canas sem nem saber onde ia parar. Saí em outra parte do engenho e fui parar na casa de uma tia distante. Pedi pelo amor de deus para me esconder em baixo da cama dela e prometi que não daria trabalho", frisou Paulino. 

A tia dizia que não podia ficar com ele porque se o marido soubesse ia mandá-lo de volta para a casa de onde veio. Ele se escondeu por muito tempo e aos dez anos o dia mais feliz de sua vida chegou. 

Maria José deixou o hospital e foi visitar os filhos no interior. Ela ainda não estava totalmente bem da saúde, mas conseguiu a licença. Fez a promessa a todos de que assim que estivesse melhor e com uma casa viria buscar todos e o pesadelo acabaria. O reencontro foi muito doloroso para Maria de Fátima. Ela não queria deixar a mãe retornar ao hospital. "Eu queria tanto voltar com ela, estava cansada daquele tratamento desumano". 

Maria José voltou e começou a trabalhar no Hospital Geral da Mirueira. Ela se tratava lá e também prestava serviços. "Naquela época só quem trabalha lá eram os doentes porque ninguém sadio queria esse contato com os leprosos, eles chamavam a gente assim. Mas quase não recebia o salário direito, vivia das doações", relembrou. 

Pouco tempo depois, o Frei Guido, um dos admistradores e um dos religiosos mais respeitados na luta contra a hanseníase, doou uma casa no bairro da Mirueira para Maria José. A casa não tinha piso, nem móvel e ainda precisava ser melhor estruturada para servir de moradia. Ela não quis saber. No mesmo dia voltou ao interior e foi buscar todos os filhos. Ela destaca que os mais novinhos nem se lembravam mais dela. Mas trouxe um por um. 

"Foi o dia mais feliz da minha vida", garantiu Maria de Fátima. A família permanece morando no bairro da Mirueira atualmente. As consequências do afastamento afetaram a vida daquela família. Os filhos não tiveram acesso a uma educação de qualidade e até hoje sentem as sequelas disso. "A gente tinha que trabalhar para ajudar a mãe e para ter comida dentro de casa, não dava tempo de estudar", confirmou Paulino. 

Maria José ao lado de quatro filhos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

[@#video#@]

A agente de saúde Eliene Alves, 50, trabalha para a Prefeitura do município de Paulista há trinta anos. Entrou na área da saúde porque passou em um concurso público e era uma oportunidade de ter uma maior estabilidade. Na profissão, buscou se especializar no tratamento contra a disseminação da hanseníase. 

O principal motivo foi porque ela nunca conheceu o seu pai, Anastácio José. Ele era doente e foi praticamente arrancado da família para ser internado na Mirueira. Quando ele morreu ela tinha 13 anos e nunca pode dar um abraço sequer. 

A irmã mais velha, Josefa da Silva Falcão, 61, ainda teve o privilégio de conviver alguns anos com seu pai. Apesar disso, também carrega as memórias que insistem em nunca sair da mente. "Tiraram o meu pai da nossa família sem nem perguntar a ele o que queria fazer e como", criticou a doméstica. 

Josefa e Eliene, as irmãs. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ela era jovem quando Anastácio foi diagnosticado com hanseníase e esperou por um reencontro que nunca aconteceu. Visitava o pai no hospital mas o contato era praticamente proibido. Como ele era o responsável por sustentar a família, a mãe de Josefa decidiu se mudar para o Recife porque poderia morar no Instituto Frei Guido, na época um colégio criado pelo religioso para filhos de hansenianos. 

"Viemos todo porque e mãe trabalhava lá e a gente praticamente morava", acrescentou. Josefa chora ao lembrar das humilhações que passou apenas por seu pai ser doente. Os maus tratos começavam logo da família mais próxima, sem deixar que eles brincassem com os primos porque tinham medo da doença contagiar todo mundo. "Meu pai sofreu muito e a gente também. Ele não aceitava estar lá e não queria", complementou Josefa. 

Eliene não coleciona memórias do pai que nunca conheceu. Hoje ela atua na organização de reuniões com filhos separados que desejam receber uma indenização do governo federal. Conhece o bairro da Mirueira desde nova e busca sempre conscientizar a população sobre os cuidados que devem tomar caso desconfiem que estão doentes. 

Josefa segura a única fotografia do seu casamento que o pai Anastácio aparece. Ele está do lado direito da imagem. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Cerca de 30 mil casos de hanseníase são registrados por ano no Brasil. Esses números colocam o país como o segundo lugar com mais casos da doença, atrás apenas da Índia, de acordo com o Ministério da Saúde. Apesar do avanço no tratamento do hanseniano no Brasil, o medicamento até hoje não promoveu a erradicação da doença. Uma das razões apontadas por Eliene é o preconceito associado à hanseníase. 

"Eu sei que hoje diminuiu muito o estigma de um hanseníano. Mas aquelas pessoas que foram acometidas no passado não conseguiram se inserir na sociedade. E aí os filhos também tiveram essa dificuldade. É uma herença muito negativa e precisamos reverter isso. Aqui em Paulista, em janeiro, fazemos uma espécie de passeata com música em busca de desmistificar o hansen e pedir mais respeito", explicou Eliene. 

Ela também analisou a diminuição do preconceito com relação ao bairro da Mirueira. Antigamente, por sediar o hospital, o local era alvo de muitos comentários negativos. Hoje não mais", agradeceu. 

[@#podcast#@]

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:

"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"

"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"




"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso




"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"

Reviver o passado não é dos passatempos favoritos de Helena Buenos Gomes, 58. As memórias de uma infância e adolescência com pouco ou quase nenhum suporte emocional e material abalam a rotina dela e os danos duram por dias. Por isso, ela titubeou em abrir o livro de um passado não tão distante. Medo, tristeza e a depressão são os principais motivos. Tocar nessa ferida é difícil. Mas, para que as barbaridades cometidas contra ela e sua família não se apaguem com o passar dos anos, Helena decidiu por falar. “Meu maior desejo hoje é que essa história nunca mais se repita em nosso país”, cravou Helena, com a voz pouco embargada.

O início da vida

##RECOMENDA##

Helena Buenos Gomes quando criança. Foto: Arquivo Pessoal

No dia 27 de janeiro de 1961, Maria Alves de Oliveira Bueno deu à luz em uma cadeia do Sanatório de Pirapitingui, em Itu, no interior de São Paulo. Hoje o local é sede do hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes. O bebê era uma menina, mas a mãe não conseguiu ao menos segurar a criança pela primeira vez. Poucas horas após o parto, a pequena Helena era enrolada em uma toalha branca e seria transferida daquele local. De acordo com os procedimentos da época, ela não poderia ficar com a mãe ou o pai; ambos estavam internados em uma colônia, também chamada de leprosário, termo utilizado no passado.

Esse foi o único e último contato de Helena com a mãe. A recém-nascida foi colocada em um carro e pegou estrada por cerca de duas horas. O destino era uma creche no bairro de Pinheiros, em São Paulo. “Imagina só, uma bebê sendo transferida no mesmo dia em que nasceu, isso é criminoso e até representa perigo, também”, criticou Helena.

Antes de prosseguir com a narrativa, durante a nossa entrevista, ela faz questão de afirmar que toda a história que sabe sobre sua trajetória é um mérito próprio, porque ela foi em busca das documentações e informações com desconhecidos. Não existiu auxílio por parte da Justiça ou ninguém para sentar ao seu lado e explicar de onde ela vinha e qual motivo de não ter família por perto.

Em meados de 1935, durante o governo de Getúlio Vargas, a política de isolamento foi endurecida no Brasil como principal medida profilática contra a hanseníase. Tal afastamento compulsório da sociedade foi efetivado com a construção de colônias, verdadeiras cidades isoladas, leprosários, dispensários, preventórios e educandários. No final da década de 1950, o Brasil contava com 36 leprosários, 102 dispensários e 31 preventórios/educandários, localizados em quase todos os estados.

Crianças posam para a foto no Educandário Santa Terezinha. Foto: Arquivo Pessoal/Santa Terezinha

Ao completar três anos, Helena precisaria deixar a creche onde tinha vivido os primeiros anos de sua vida. Por lá, aprendeu a falar e andar. Ela foi novamente transferida e, dessa vez, sua nova morada era o Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. O local abrigou centenas de crianças separadas dos pais entre os anos 1950 e 1980, em decorrência da hanseníase dos familiares.

Ano após ano, o sofrimento aumentava. Helena não sabia o que era pai e mãe e muitas vezes se revezava entre o trabalho como doméstica nas casas de família e a vida no educandário. Entre sete e seis anos, já era encaminhada para algumas residências e por lá precisava realizar afazeres do lar. "Eles não eram famílias adotivas, pelo contrário, só vivia lá para trabalhar", relatou. 

Tortura, castigos e maldade. São três palavras que resumem a passagem da garota pelo Educandário Santa Terezinha. O local era palco de histórias dramáticas. Segundo ex-internos, as crianças eram submetidas a trabalho infantil e muitas eram vítimas de agressões, humilhações e torturas psicológicas. Ela lembra até hoje as três penalidades que sofreu e nunca conseguirá esquecer. “Os castigos eram assustadores, se o governo estava ali para cuidar das crianças dos pais que estavam na colônia, eles deveriam nos educar, dar carinho e amor. E não para nos fazer chorar todos os dias”, disse em tom de tristeza.

Gerido por freiras, o local tinha normativas católicas e as crianças precisavam frequentar a missa todos os dias e rezar em vários momentos. “Em um belo dia, eu e umas meninas fugimos da missa e elas descobriram. À noite, nos colocaram nuas dentro do banheiro com o rosto voltado para a parede e as mãozinhas pro alto. Levamos uma surra com vara de marmelo e depois tivemos que ficar a noite toda de joelho ao lado da cama”.

Um dia após a tortura, ela precisava ir a um médico que já estava agendado. Era comum as crianças passarem por uma triagem sempre que retornavam das casas de famílias. Ela foi orientada que não podia falar de onde as marcas no seu corpo eram provenientes. “Eu tinha que inventar algo sobre os arranhões e dizer que tinha passado por arame farpado, e quando o doutor perguntou, eu disse”, lamentou Helena, ao relembrar daquele momento. Outra punição marcante é quando ela ia descer do dormitório pela escada, no formato caracol. Muitas vezes, as crianças adoravam apoiar a bunda e escorregar. Um dia, uma das mulheres viu e quando Helena chegou ao chão levou pisadas no estômago.

Os castigos desencadearam consequências psicológicas e físicas, com as quais Helena precisa conviver até hoje, cerca de cinquenta anos depois. “Elas torturavam tanto os meus dedos, colocando a unha contra o espaço onde ficam as cutículas que até hoje meus nervos nessa região são afetados. Tem época que dói demais”.

Maria Alves de Oliveira e Nelson Pereira Bueno, pais de Helena. Foto: Luciana Faustine/Cortesia

O pesadelo de Helena, filha afastada dos pais

Em 1968, a filha afastada dos pais continuava sem saber o que era uma família. Em dezembro daquele ano, um documento aponta que o Estado de São Paulo autorizou um tutor a desinternar a garota do educandário. O homem de nome Cegismundo Alves passaria a ser o responsável ‘legal’ pela menina. O pesadelo de Helena só aumentaria nas mãos de um homem que nunca tinha visto na vida.

Ele a encaminhava para várias casas de família, onde ela não recebia nada pelos trabalhos prestados. “Ele não me explicava nada sobre o meu passado, só falava da doença dos meus pais, da lepra. Eu nunca tinha ouvido falar nisso, não sabia o que era. Ele também me dizia que eu tinha uma irmã em algum canto”, contou.

Dos nove anos em diante, migrou por anos nas casas das famílias. Ela não se lembra bem a idade, mas acredita ser com 14 anos que foi trabalhar na residência de uma família que a mantinha em cárcere privado. Nunca recebeu nada pelos serviços prestados. Vez ou outra, o tal tutor aparecia e deixava uma espécie de lista com a dona da casa, que seriam as despesas de Helena. Era uma espécie de acerto de contas por produtos de higiene e outros itens.

O tratamento dos patrões era frígido e Helena passava os dias aflita, tentando descobrir quem era no mundo. “Eu não podia mexer na geladeira, ficava no quintal e no quartinho do fundo, onde eu dormia. Tomava banho de bacia de alumínio porque eu não podia entrar no chuveiro. Pratos, copos, talher, tudo meu era marcado com esmalte vermelho”, esclareceu Helena, ao relembrar do trabalho que considerava escravidão, já que recebia nenhum centavo pelo serviço. São comuns os relatos de famílias que tratavam as adotadas como empregadas domésticas.

Helena preferiu não expor o nome dessa família, mas contou que a patroa era cabeleireira, a filha uma advogada e o marido aposentado da Polícia Militar. Como ela sempre ficava trancada do lado de fora da casa, passava fome em muitos momentos. Em uma tarde, após se certificar de que todos haviam saído, conseguiu ir na cozinha e pegar uma banana em cima da geladeira. “Quando a mulher chegou de noite, ela percebeu. E me jogou na parede para saber se eu tinha pego a fruta. Eu neguei muito, ela me encostava na parede para eu assumir. Nessa hora eu pensei em fugir, não aguentava mais aquela humilhação”.

A fuga e o ursinho que ficou para trás

Ela pensou em um plano para ir embora de vez. Conseguiu deixar uma brecha da porta do quintal para a cozinha aberta e, quando todos saíram, foi ao quarto da patroa para encontrar a sua certidão de nascimento. Por sorte, não demorou e achou o documento em cima do guarda-roupa. "Fiz amizade com a vizinha, de maneira escondida. Essa mulher me disse que, se um dia eu quisesse fugir, ela me daria abrigo. Então eu liguei para ela e disse 'Eu não aguento mais'", lembra.

No outro dia, de manhã bem cedo, Helena pegou o pouco que tinha, um chinelo e um vestido, pulou o portão de ferro e só não conseguiu recuperar o seu ursinho, que caiu durante a fuga. Ela ficou com muito medo de voltar, porque o terrorismo psicológico era imenso. “Eles diziam que se a gente fizesse coisas erradas iam nos internar na Febem”, relembra.

“Corri para nunca mais voltar”

Ela foi morar na casa da vizinha que tinha ajudado na fuga, mas o tutor logo a localizou e uma perseguição diária teve início. Todos os dias um carro ficava parado na frente da casa dessa senhora que a ajudava. Eles telefonavam e ameaçavam que ela estava com uma menor de idade e iam prendê-la com um mandado da Justiça. As ameaças ficaram insuportáveis e a moça encaminhou Helena para morar em outro bairro. “Por lá fiquei até completar 18 anos, bem escondida. Trabalhava em outras casas de família, mas ainda não podia responder por mim. Não via a hora de completar a maioridade, era o meu sonho na época”.

Ao recordar do dia em que se viu livre das burocracias e perseguições de seu tutor, Helena respira aliviada. Poucos dias após completar 18 anos, ela foi ao endereço da casa de sua irmã; já a tinha visitado uma vez aos 11 anos. “Antes eu até tinha o telefone dela, mas não podia manter contato”, detalhou. Helena e sua irmã Claudete foram enviadas, no dia do nascimento, a diferentes educandários em São Paulo. Ao encontrar a única familiar que conhecia, descobriu que o Cegismundo entregou toda a documentação dos pais das duas, sendo a carteira profissional, certidão de óbito e outras papeladas. Foi a primeira vez que ela tinha a confirmação de que a mãe e pai estavam mortos, de verdade.

Ao vasculhar os documentos, encontrou um endereço de uma residência em Guarulhos, em São Paulo, e se deslocou até lá para saber quem poderia encontrar. “Eu ainda não acreditava que meus pais tinham morrido, queria uma carta de despedida, alguma coisa que me fizesse acreditar que eles tinham sido internados por toda uma vida por causa de uma doença”, descreveu. Ao chegar na localização desejada, uma senhora abriu a porta e ouviu atentamente o pedido por informações de Helena. A senhora, que teve o nome preservado por escolha da entrevistada, era uma grande amiga da mãe de Helena.

“Ela contou que minha mãe morreu, me mostrou um vestido que costurou para ela e me contou algumas lembranças. Eram grandes amigas, eu falei que queria uma cartinha, se caso ela tivesse. Ela me pediu para esperar um pouco e foi buscar uma bíblia. Na primeira página, estava escrito ‘se encontrar alguma, dar a uma delas’. Era a coisa mais linda do mundo”, relatou.

Registro feito da capa da bíblia escrito pela mãe de Helena. Foto: Luciana Faustine/Cortesia

Ainda na busca por mais informações sobre a família, ela foi ao cemitério e descobriu que a mãe foi enterrada como indigente. “Eu lembro de olhar para o céu e perguntar a deus porque isso estava acontecendo comigo dessa forma. Chorei bastante nesse dia e decidi que ia jogar tudo para debaixo do tapete. Estava cansada de sofrer. Decidi seguir a minha vida e esquecer o passado”, destacou a filha afastada dos pais Maria Alves de Oliveira Bueno e Nelson Pereira Bueno.

Sozinha no mundo, portando apenas poucos pertences e toda a documentação da família, Helena passou a viver em pensões. O custo era baixo e com o dinheiro que ganhava trabalhando como doméstica era o que dava para pagar. Teve um problema nos rins e precisou ficar de repouso por três meses. Ela define essa parte da vida como traumática, já que não tinha ninguém para ajudá-la na recuperação. Foram quinze anos de tratamento e muitos perrengues.

“Eu já tinha convívio com a minha irmã, mas nessa época, ela me negou os cuidados. Hoje eu até entendo,  a gente não teve uma relação juntas e até hoje não temos. A senhora que cuidou dela não queria que eu me aproximasse da minha irmã porque tinha medo dela sair de casa e ir morar comigo, mas não era isso, eu só queria essa aproximação. Não culpo a minha irmã de forma alguma”.

Aos 20 anos, os profissionais de saúde avaliavam o caso da jovem como muito difícil de se tratar. “Os médicos desacreditaram que eu poderia me curar desta enfermidade. Uma amiga me ajudou e hoje estou curada após tratamentos com homeopatia. Tenho certeza que esse problema foi uma consequência dos maus tratos que passei durante toda a vida”, admitiu.

Helena buscou reescrever o seu futuro e entrou no curso técnico de secretariado, mas preciso interromper por causa da saúde. Casou, teve um filho e preferiu não lembrar mais do passado turbulento.

 Helena ao lado de companheiros do Morhan em uma praça pública de São Paulo. Foto: Cortesia

O milagre do Morhan

Em 2011, mais de trinta anos após ter decidido parar de procurar as suas raízes, Helena conheceu o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas Pela Hanseníase (Morhan), enquanto navegava na Internet. “Na época eu vi que em março ia acontecer uma reunião em Itu, ao lado da Colônia na qual nasci. Pensei que tinha tudo a ver comigo, mas não fazia ideia de que existiam tantas histórias dramáticas como a minha”, disse. Nesse encontro, ela conheceu muitos filhos separados pela hanseníase que também sofreram demais no preventório. Ao retomar o quebra-cabeça de sua trajetória, entrou em depressão.

“Uma enxurrada de informações permeava o meu cérebro e quase pirei ao saber de tudo que aconteceu no passado, de eu não ter conhecido ninguém da minha família, eu sofri e fiquei no fundo do poço, entrei em depressão ao resgatar a minha história justamente por não saber o que tinha acontecido”, lamentou. Lutou, foi forte e decidiu enfrentar os medos do desconhecido. A troca de depoimentos entre os filhos afastados era muito importante para entender o que tinha acontecido no Brasil e o quão grave era a situação.

Atualmente, Helena Bueno é voluntária do Morhan e integra a Comissão dos Filhos Separados. “Não me considero filha separada se eu não lutar pela eliminação da hanseníase no país. Como eu vou dormir no meu travesseiro sabendo desse problemão todo no país. Eu sei que a doença tem cura, tem remédio gratuito, tratamento nos postos de saúde, mas existe muito preconceito. É preciso ter mais informações, orientações e a chegada de uma vacina seria crucial. Vamos diminuir isso”, comentou.

Helena mostra documentos dos pais, que guarda como verdadeiras relíquias. Foto: Luciana Faustine/Cortesia

O quebra-cabeças que ainda provoca suspiros

Descobrir a árvore genealógica - suas origens, quem eram seus avós - passou a ser algo que tirava o sono de Helena. Ela já sabia o nome do pai e da mãe e tinha algumas documentações deles. Todos os pacientes das colônias tinham fichas, os prontuários. Com o fechamento desses espaços, tais papéis muitas vezes se perdiam, mas no caso de ainda existirem, ficam sob responsabilidade da Secretaria de Saúde do Estado.

Ao vasculhar a documentação, percebeu que realmente nasceu na cadeia, mas não sabe o que a mãe teria cometido dentro do hospital para ser presa. Um outro papel que poderia ajudar na busca por mais detalhes era a ficha epidemiológica dos pacientes, em que alguns detalhes seriam revelados. Descobriu o nome dos avós e também que o avô era portador da hanseníase e teve a filha separada (a mãe de Helena) quando a criança tinha cinco anos. “A minha mãe cresceu no Sanatório Padre São Bento, que fica em Guarulhos, até os 17 anos sem nenhuma documentação, acredita?”, provocou. Só quando Maria Alves de Oliveira tinha mais de 18 anos conseguiu a certidão de nascimento através de um juiz.

Ruínas da cadeia dentro do hospital-colônia onde Helena nasceu. Foto: Luciana Faustine/Cortesia

Mesmo sem conhecer a mãe, ela sabe que o sofrimento foi grande. A lepra não era bem aceita pela sociedade e o estigma era forte. Documentos do Sanatório de Pirapitinguí comprovam que, em 1965, Maria Alves, na época com 27 anos, sofria com ‘psicose depressiva’ e passou por eletroconvulsoterapia, tratamento também conhecido como eletrochoques, no qual são provocadas alterações na atividade elétrica do cérebro induzidas por meio de passagem de corrente elétrica. A mãe de Helena faleceu seis anos depois, aos 33 anos de idade.

Documento que comprova o tratamento recebido pela mãe de Helena

Já o avô José Alves de Oliveira, pai da mãe de Helena, faleceu dentro do Padre Bento e foi enterrado na Colônia de Bauru. “Eu não sei se meu pai conheceu a minha mãe dentro da colônia, mas eu nasci naquele hospital, eles casaram e tudo. E depois de um ano, nasceu a minha irmã em outro local”.  Há dois anos, ela e a irmã foram encontrar pela primeira vez a família do pai das duas. Ela conta que conheceu todos eles e, diferente da vida difícil que ela teve, eles estão estáveis e o encontro foi bom para conseguir esclarecer algumas dúvidas. Ela soube um pouco mais sobre seu pai, mas a própria família não sabia muito da vida dele após ter sido internado com o diagnóstico de hanseníase. “Foi bom, mas não há um vínculo forte, de família”, contou.

Um dos primos relembrou a morte de Nelson Pereira Bueno, pai de Helena. “Mataram o meu pai por causa de preconceito e discriminação. Levou uma enxadada na cabeça e teve traumatismo craniano. O que meu primo me contou é que ele estava já fora da colônia pelas comunidades próximas e foi visitar a filha recém-nascida de um conhecido. Ambos estavam bebendo e esse amigo dele disse que ele não entraria em sua casa porque não podia chegar perto da criança. Eles discutiram e meu pai apanhou. Foi internado em uma colônia em Guarulhos e por lá mesmo morreu”.

Tal isolamento de vítimas da doença em hospitais-colônias obrigou uma geração a crescer longe dos próprios familiares. “Quero saber muito mais sobre a minha família, tenho a maioria dos documentos, são relíquias. Ao mesmo tempo, é uma dor muito profunda o que fizeram com milhares de famílias no Brasil, não só comigo. É uma tristeza carregar isso pelo resto das nossas vidas. Não tem dinheiro que pague o que fizeram com os filhos e os pais”, denunciou.

Helena ao lado do filho e do marido. Foto: Arquivo Pessoal

Hoje ela atua como voluntária na causa do Morhan e é dona de casa. O sonho era trabalhar como cozinheira, paixão antiga. Mas as sequelas nos dedos, que herdou dos anos de moradia no educandário, deixam a mão com muitas dores e isso a distancia da profissão. “Têm coisas na minha vida que eu nunca vou conseguir fazer. Não me formei em nada, mas hoje com minha família levo uma vida feliz”.

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:

"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe

"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"



"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso



"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"

Quatro crianças internas no Asilo-Colônia Aimorés em Bauru, São Paulo. Foto: Arquivo Pessoal/Jaime Prado

##RECOMENDA##

A série de reportagens ‘O passado presente e a dor do afastamento pela hanseníase', produzida pelo LeiaJá, conta histórias de famílias partidas, afastadas do convívio muitas vezes no dia do parto. Danos irreversíveis, sofrimento do passado que ainda abala o presente, a falta de um abraço de despedida e de reencontros que nunca aconteceram.

No começo do século XX, a então chamada ‘lepra’ passou a integrar a lista das “doenças de notificação compulsória”. Em 1920, com o surgimento do Departamento Nacional de Saúde Pública, criou-se uma legislação específica que determinou a internação compulsória de todas as pessoas diagnosticadas, em consonância com o cenário internacional.

Com os pais e mães internados, muitas crianças foram afastadas do convívio familiar.  De acordo com uma lei, os enfermos tinham de viver isolados nos chamados hospitais colônias e os filhos desses pacientes eram encaminhados aos educandários, preventórios ou a algum familiar que estivesse disposto a cuidar da criança.

Não há dados oficiais sobre o número de crianças que foram afastadas de seus pais devido à hanseníase. O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) estima que, em 60 anos, 40 mil filhos tenham sido separados dos pais em todo o Brasil.

Crianças afastadas dos pais. Foto: Jaime Prado

Adolescentes no Educandário Santa Terezinha. Foto: Jaime Prado

Devido à precariedade dos registros, aos longos períodos de internação e às constantes transferências entre instituições de abrigo, muitas crianças nunca mais encontraram os pais. O Morhan também calcula que uma média de 14 mil crianças, hoje com mais de 50 anos, estejam vivas.

O repórter cinematográfico Jaime Prado, 66, possui um dos maiores arquivos de fotografia dos hospitais-colônia de São Paulo. Ajudou a unir novamente ao menos sete famílias, que se reencontraram muitos anos depois. “Foi assim, 46, 48, 54, 56, 59, 64 e 73 anos de separação de famílias que consegui unir novamente com as minhas fotos sem usar nenhum dinheiro público, apenas doação de amigos e o meu trabalho voluntário”, relatou.

Encontros e reencontros marcaram a vida de Jaime. O último deles foi através de uma publicação no Facebook. “Um homem me ligou e disse que se viu em uma das fotografias que publiquei. Ele saiu da colônia bebezinho e foi pro Educandário Santa Terezinha. Navegando pela internet, observou a foto de uma criança em um cesto e descobriu meu número. Me ligou chorando e dizendo que era ele”, disse Jaime, ao se emocionar pela sua trajetória na causa da hanseníase.

Jaime relembra que conheceu pela primeira vez o Asilo Colônia Aimorés, atual Instituto Lauro Souza Lima, em Bauru, São Paulo, após entrar clandestinamente no local para conhecer um outro mundo, em 1967. Sabia da história de primos que tinham sido arrancados dos pais por causa do internamento. "Eu vinha da roça, semianalfabeto e com pouco dinheiro. Tinha três perguntas sem respostas. Queria entender os motivos de separarem os filhos, porque os isolavam e em que contexto isso se dava. Era o mundo dos excluídos da sociedade. Eles carregavam o preconceito e o estigma de uma doença dos tempos bíblicos", explicou o fotógrafo.

Em 1976 conseguiu um emprego lá, como operador de caldeira, e foi conhecendo um pouco mais da realidade dos enfermos, criando vínculos e colecionando histórias. Decidiu montar um estúdio de comunicação por ter mais aproximação com a área. Conviveu por anos com os hansenianos e viu mães e pais morrerem sem ao menos um abraço dos filhos. Cartas com pedidos de informações, mensagens-viagens e muita solidariedade resumem o trabalho de Jaime, que apesar de hoje ser aposentado, ainda continua com seu trabalho ajudando muitas famílias a se encontrarem. “Meu medo é que essa história se acabe quando todos morrerem e ninguém saiba que esse crime aconteceu no Brasil, por isso converso sobre o assunto e divulgo”, revelou.

Hanseníase, uma das enfermidades mais estigmatizadas da história

Arte: João de Lima

Arte: João de Lima 

Desde 1976, o Ministério da Saúde substituiu o termo ‘lepra’ por hanseníase nos atendimentos de serviços de saúde e nas campanhas de divulgação sobre a doença (televisão, rádio e distribuição de materiais educativos), visando minimizar o preconceito e as atitudes de discriminação. A regra da segregação também foi revogada no mesmo ano, mas o isolamento continuou ocorrendo por pelo menos mais dez anos.

Com a aprovação da lei nº 11.520, em setembro de 2007, as pessoas que foram atingidas pela hanseníase e compulsoriamente internadas em colônias hospitalares no Brasil podem solicitar uma pensão mensal do Estado. Atualmente, o Morhan luta para que o governo federal também pague uma indenização pela separação forçada da família e pelos traumas sofridos na infância. Esse dinheiro seria de direitos dos filhos, por terem sido tão afetados como os pais.

Neste especial, o LeiaJá retrata histórias de filhos e pais que por anos tiveram suas memórias presas, por medo de falar do passado e serem ainda mais estigmatizados.

Ao mergulhar nesse universo pouco conhecido, encontramos histórias de abusos sexuais, espancamento e tortura nos orfanatos, a dor da distância da família e pessoas que não tiveram tempo de conhecer quem lhes deu à luz. Um capítulo triste nas páginas da história do Brasil.

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:
"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"



"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe


"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"


"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso



"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"

Páginas

Leianas redes sociaisAcompanhe-nos!

Facebook

Carregando