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O Cine Líbero Luxardo exibiu, na quinta-feira (21 de abril), a sessão de estreia em Belém do longa-metragem “Medida Provisória”, dirigido pelo ator e cineasta Lázaro Ramos. No cenário de um Brasil autoritário, o filme trata de uma realidade distópica em que o governo ordena que todos os afrodescendentes, com nacionalidade brasileira, sejam deportados para o continente africano, com a justificativa de reparar o período histórico da escravidão. A decisão causa desordem, medo e movimentos de resistência ilegais que trazem esperança ao país.
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Graduado e licenciado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2010), mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2013) e doutorando na Universitat de Barcelona, o professor Diego Pereira Santos, coordenador do curso de História da UNAMA - Universidade da Amazônia, tem dedicado suas pesquisas ao tráfico interno de escravos das capitanias e províncias após a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão e da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e da Paraíba, destacadamente no último quartel do século XVIII até a primeira metade do século XIX. Em entrevista ao LeiaJá, o historiador falou sobre a relação da temática do filme com a realidade histórica brasileira.
O Brasil é uma nação racista?
Quando a gente pensa essa noção de racismo é importante que a gente entenda de onde ela vem. O intelectual africano Achille Mbembe, em um livro chamado "A crítica da razão negra", vai construindo essa ideia de como o racismo se processou e se processa na contemporaneidade. Ele fala que o racismo nasce de vários processos de efabulação (ato ou efeito de fabular, fantasiar), de criação de visões de negação, até da negação do eu. O racismo é essa negação profunda; você não coloca o outro apenas como inferior, mas você nega a sua própria existência. Nesse ponto, a gente entende, dentro das ciências sociais, sim, o Brasil é um país racista, porque há diversas práticas de negação desses sujeitos ao longo do tempo, especialmente dos negros. O Brasil é um país racista porque esse racismo que vem se constituindo, especialmente a partir do momento em que a Europa começa a se consolidar enquanto continente, se processa como uma ideia de negação, e o tráfico consolida esse processo de inferiorização do negro, que hoje ainda temos como um elemento negativo dentro da sociedade brasileira.
O que é racismo estrutural?
Ele está baseado numa estrutura de poder. Ao longo do tempo, quando a gente entende a formação da sociedade brasileira, ela se dá nesse encadeamento de relações, na qual você passa a pensar o branco positivando e você passa a pensar o negro, seja a partir de questões históricas, culturais, interpessoais, como negação. O racismo estrutural está presente em vários momentos. Não há apenas a ideia de um racismo institucional, na relação direta. Há uma compreensão de grande parte da sociedade, a gente não pode falar do todo, que reconhece privilégio de um grupo social ou, nesse caso, um grupo étnico, ainda que etnia seja um pouco mais profundo da gente pensar, sobre outro. Nesse caso, se privilegiou o branco em detrimento do negro.
O que você pode falar sobre desigualdade racial?
A desigualdade racial é manifesta. Eu poderia falar da sociedade americana como um todo, americana no sentido do continente América, porque essa ideia de descobrimento acaba manifestando uma negação do outro. Quando você descobre, você privilegia o descobridor, não o descoberto, e muito menos aqueles que são arrancados, desterritorializados, desenraizados das suas etnias, reinos, famílias, e seus grupos sociais são colocados dentro de uma outra relação de poder. O Brasil é um exemplo muito claro disso, no Estados Unidos isso acontece muito, não é uma realidade única, ainda que seja uma realidade complexa e diferenciada nesses estados nacionais. Existe sociedade igual? Não. Acho que o termo mais adequado hoje, para nós pensarmos isso, é equidade. Hoje não se fala de igualdade, porque a igualdade é você dar as mesmas oportunidades para os diferentes. Quando você entende que há desigualdade o sentido muda, porque você passa a oportunizar as diferenças para os diferentes. Então é fundamental compreender que não se pensa, hoje, numa sociedade que vá ser igual, porque brancos e negros não são iguais no Brasil. A ideia, quando você pensa as relações étnico-raciais, é você compreender que essas oportunidades têm que se dar compreendendo as diferenças de cada grupo social.
Existe relação entre o racismo e o descobrimento do Brasil pelos portugueses?
Sim, sem dúvida. Porque quando você pensa a raiz dessa ligação, o sentido do descobrimento é da negação, mas ele não é da negação do outro no sentido de compreender a alteridade. O descobrimento é pautado numa visão ocidental, racista, branca, europeia, então tudo o que era diferente disso passava a ser negado, tudo o que não era europeu, ocidental ou que não casava dentro de uma ideia de civilidade europeia passa a ser visto como inferior. Além disso, é muito interessante a gente pensar antes desse descobrimento, por exemplo, os contatos que houve da Europa com a África, principalmente a partir do século XV. Em 1415, tem a Conquista de Ceuta, onde hoje é o Marrocos. Esse entreposto comercial passa a ser fundamental para que os europeus, em particular os portugueses, passassem a ter um domínio do continente. A partir dali eles vão tentar fazer a circunavegação do continente, vão tentar rodear, porque a ideia era chegar nas Índias, mas esse contato com a África já passava a necessidade de ser um contato econômico. Muito se pensa que o objetivo era já num primeiro momento a escravidão, e não era. No primeiro momento os europeus estavam mais interessados na prata e no ouro, principalmente, mas a partir desse contato com os africanos eles entendem a possibilidade de ter ganhos com a questão da venda desses seres humanos. É dali que começa uma série de negócios que todos ganhavam dentro do que a gente chama de tráfico de escravos. Nessa ideia do descobrimento, o africano é visto como outro, como um sujeito inferior. Não à toa, nas crônicas desse período, do século XVI e do XVII, era muito comum que se falassem dos africanos que usavam rabos, que eram “tão pequenos que sumiam”, porque havia todo um imaginário e ele acabou se condensando dessa negação. O que nós vamos ter posteriormente a isso é um quadro de negações, de inferiorizações e, como Mbembe fala, ‘de objetificações’.
Como as pessoas brancas podem contribuir para a luta antirracista?
A luta antirracista não é de uma cor só. A luta antirracista é de todos, eu acho que isso também é um ponto que a gente precisa entender, para além dos lugares de fala que são muito complexos na sociedade brasileira. É preciso que a gente entenda que essa relação precisa ser compreendida por todos. Quando a gente entende o que é o racismo, quando a gente compreende que muitas vezes as falas presentes no nosso racismo estrutural estão nas brincadeiras menos oportunas, num tratamento ou num olhar preconceituoso, manifesto numa ação discriminatória, aí eu tenho exatamente que compreender que esse não é um problema só dos negros, mas é um problema da sociedade brasileira.
Filmes como “Medida Provisória”, com grande repertório histórico, cultural e artístico, com exibição em um ano de eleições, são importantes para o debate político?
É decisivo, porque muitos desses conceitos estudados pela ciência foram negados. Foi negado o racismo, alguns negaram o fato de haver escravidão. Essa negação de um passado, silenciamento, uma censura, isso é extremamente problemático, diante desse cenário. O fato de vir à tona agora um filme como esse, com uma dimensão que busca problematizar, em essência, situações que acontecem no nosso cotidiano, reforça aquilo que estava sendo negado, especialmente no atual governo, em que há a ideia de naturalizar o racismo, o preconceito, a ditadura, as torturas. Toda a perspectiva histórica é pautada em relações de poder, não tem como nós pensarmos de forma diferente. Injúria racial é crime, racismo é crime. São diferentes? São. Injúria racial é quando você manifesta isso numa ação direta com um indivíduo. O racismo é manifestado em relação à ideia da raça como um todo. Esse questionamento, isso é fundamental em ano de eleição, porque amplia nossas possibilidades de uma escolha democrática. A arte é um palco privilegiado da crítica social no Brasil, e sempre foi assim desde a década de 60, 70, 80. Lembro dos movimentos ligados aos negros, muito fortes, e que vinham, então, tentar buscar soluções ou a repensar a sociedade a partir da arte e da cultura. É fundamental que a gente tenha esse tipo de debate neste ano de 2022.
No filme existe um governo autoritário, que limita a liberdade dos cidadãos. Na sua opinião, quais são os impactos sociais desse tipo de regime?
O impacto social direto é você ter um controle das mentes. Isso faz parte da cultura brasileira. Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu uma ditadura, hoje compreendida como uma Ditadura Civil Militar, em que havia esse processo de negação. Analisemos, então, o nosso quadro político contemporâneo. Eu tenho pelo menos dois impeachments, nessa breve, nova República. A nossa primeira eleição é indireta, que eu tenho o Tancredo Neves, depois o Collor, tenho um impeachment, vem o Itamar Franco, que era vice dele, depois vêm os dois governos de Fernando Henrique, depois os dois governos Lula, o governo Dilma impedido, tem um governo e meio, depois vem o Temer, depois vem o Bolsonaro. A nossa República é uma República com traços autoritários. O próprio Jair Bolsonaro, atual presidente da República, disse que o seu voto era em nome de um torturador, quando ele fala do impedimento da Dilma, naquele contexto. Então, o voto dele para um ditador, uma pessoa que foi um torturador, isso mostra que a gente tem aí na nossa República traços autoritários, isso não está distante de nós.
No longa eles mostram um ativismo forte contra um governo opressor. Você pode dar exemplos de situações que retratem essa realidade no Brasil?
Esse ativismo é bem compreendido hoje, os movimentos negros são bem organizados. Aqui, inclusive, na nossa região, tem um órgão que é o CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará) que tem um papel muito interessante. O movimento negro foi responsável por várias mudanças no âmbito educacional, que é um caminho interessante, ainda que seja a longo prazo. Há duas leis que foram editadas ainda nos idos dos anos 2000, que é a lei 10.639/2003, da obrigatoriedade do ensino de historia e cultura africana e afro-brasileira nas escolas da educação básica, e em 2008 a 11.645/2008, que vai pensar também os grupos indígenas. Você tem de 2010 para 2011 o Estatuto da Igualdade Racial, fundamental para legitimar que eu não tenho essa igualdade, porque ela nunca existiu. A Constituição de 1988 diz que todos são iguais, mas essa igualdade não era de fato. Quando você vai, por exemplo, para a LDB, alguns anos depois da Constituição de 1988, a Lei Diretrizes e Bases da educação, de 1996, ela fala sobre a pluralidade racial. Só que nos anos 2000, aí num momento de grande crescimento dos movimentos sociais, na época do governo do PT, importante que se diga, é que isso vai se tornar uma realidade mais clara. Ainda que hoje não haja um mecanismo de intervenção direta, em relação a se estar ministrando ou não essas aulas nas escolas públicas ou particulares, há, pelo menos, a lei que nos indica esse caminho, e houve diversas produções bibliográficas a partir dessas duas leis e do Estatuto da Igualdade Racial.
Com as novas mídias que surgem, especialmente nas redes sociais, com seus canais abertos a todas as manifestações, você acha que o racismo pode se agravar?
É complexo, porque quando você abre os canais isso não é ruim, naturalmente, você tem liberdade de expressão no Brasil, isso é uma realidade constitucional. Mas a internet abre as portas para a ignorância, para discursos do período colonial, de negação, contra aquilo que já está, de alguma maneira, consolidado dentro de uma visão universitária, científica. Há um caso que foi retratado agora no Big Brother. Uma das participantes, a Natália, fez um comentário falando sobre a questão de que os negros vieram para cá porque eram fortes. A questão aqui não está tanto no comentário dela, mas como essa visão é enraizada na sociedade brasileira, o quanto ainda hoje o olhar da sociedade em geral é esse. Essa visão era a que o traficante de escravo tinha quando ele tirava o escravo da África, quando ele negociava o escravo na África e o colocava na condição de escravizado, é o mesmo discurso. A internet banaliza de certa maneira determinados pontos de vista, porque eles não são alicerçados numa base cientifica, eles são abalizados no ‘eu acho’, no ‘o que eu compreendo’, no ‘o que eu penso’. As fake news são um retrato muito claro disso. Você amplia, dá a vazão para milhões de pessoas compartilharem o mesmo conteúdo. Esses discursos, muitas vezes anacrônicos, fora do seu tempo, vão circular. Em ano de eleição, nem se fala. A ampliação é positiva, os canais são positivos, você ter as suas mídias, construir mídias sociais sem a necessidade de um aparelhamento dessa reflexão, desses aparelhos televisivos, dos programas televisivos, isso é interessante. O que é problemático é quando você tem um desfavor, por determinados canais, por determinados apresentadores.
De que forma o entendimento da política brasileira pode ajudar na luta por direitos?
Eu vejo muito hoje esse movimento político dentro de um quadro que é claramente ocidental, da polarização. A polarização dos olhares, ‘só tem um ou outro’ ou ‘você é de uma cor ou de outra’. A realidade humana não é tão simples. Ela é subjetiva, complexa. Olhar para essa realidade e compreender para além disso, procurar estudar, olhar realmente quais são os programas políticos de cada candidato, ter uma percepção melhor daquilo que foi, que é e que será, eu acho que são pontos fundamentais. A história não se repete, não há historiador que vai dizer que a história vai ser a mesma, isso é muito reproduzido na sociedade, ‘vai acontecer igual’. Não, nunca vai ser igual, mas há ecos, há reverberações desses momentos históricos. É fundamental, especialmente para os jovens, já que a gente está abrindo esse canal, a possibilidade de um questionamento a tudo isso que a gente colocou aqui, ao filme, à sociedade, a toda complexidade desses elementos formativos da sociedade brasileira. A juventude informada precisa dizer não, precisa se informar para que ela possa criar seus próprios olhares. Ela precisa entender o que é essa política, porque entendendo a gente tem também a nossa possibilidade de arbitrar sobre isso, de construir o nosso posicionamento, em direção a uma democracia, consolidação desse estado democrático, que é falho, e muitas vezes abre margem para a corrupção, mas ainda é a melhor opção do que viver em um estado ditatorial, no qual você tenha uma sociedade do controle, no qual se pense a retirada daqueles que são ou que podem ser considerados indesejados, como o filme propõe em relação aos negros. As elites no Brasil se incomodam, sim, com essa presença de negros, pardos, índios, dentro da universidade, porque há uma sociedade construída em bases, e são bases brancas, elitistas, com visões sectárias de separação. É preciso votar. É preciso fazer parte desse movimento de mudança.
Por Giovanna Cunha e Vinicius D. Reis (sob a supervisão do editor prof. Antonio Carlos Pimentel).