A Justiça Federal incluiu o adolescente haitiano Virgile, de 13 anos, no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas e determinou que seja concedida a ele a cidadania brasileira. A decisão pode criar polêmica em Brasília, já que o processo de naturalização segue uma disciplina legal rígida. O garoto foi abandonado em 2009 em São Paulo por um bando de coiotes, traficantes internacionais de pessoas, que não conseguiram extorquir dinheiro de sua mãe.
"É uma questão humanitária. A Advocacia-Geral da União pode criar resistência, mas acho que tornar o menor um brasileirinho é a única forma de minimizar sua aflição", pondera o juiz Ali Mazloum, da 7.ª Vara Criminal Federal em São Paulo. "A concessão da cidadania ao menino é medida justa e de bom senso porque o Brasil é corresponsável pela dramática situação do menor."
##RECOMENDA##Sequestradores de Virgile foram identificados pela Polícia Federal e denunciados pela procuradora Ana Carolina Previtalli Nascimento, sob acusação de introduzir clandestinamente estrangeiros no País (1 a 3 anos de prisão) e abandono de menor (6 meses a 3 anos). O líder dos coiotes, Jean Paul Samuel Myrthil, ainda foi acusado de extorsão mediante sequestro (4 a 10 anos). O juiz decretou prisão preventiva de cinco deles - que estão foragidos - e encaminhou o caso à Interpol. "Os denunciados revelam capacidade de deslocamento internacional, com grande mobilidade, havendo informações de que alguns já foram deportados anteriormente." Para Mazloum, "privado do poder familiar e sem garantia do governo de seu País", Virgile "corre grave risco de sofrer atentados contra sua integridade física e moral".
Nascido em 12 de dezembro de 1998, o garoto foi capturado com outras 12 crianças haitianas no bairro Fond de Negres, em Porto Príncipe, capital de seu país. O Brasil é rota do tráfico internacional de seres humanos. O menino tinha 11 anos quando coiotes o deixaram em São Paulo porque sua mãe, Dieula Goin, não pagou resgate. Era 21 de dezembro de 2009.
Localizado pela polícia na Estação Itaquera do Metrô, Virgile foi enviado a um abrigo por ordem do Juízo da Infância e Juventude. Sem documentos, a burocracia do Estado brasileiro o impediu de viajar à Guiana, onde vive sua mãe - há um mês o governo haitiano resolveu conceder-lhe o passaporte.
Investigação
A PF apurou que em dezembro de 2009 Dieula contratou por US$ 1,9 mil os serviços de Myrthil, o chefe dos coiotes, para levar seu filho à Guiana Francesa, onde ela já estava - no Haiti, o menino vivia com o avô, pois o pai já morreu.
O coiote e as crianças viajaram em um voo da Copa Airlines - cópias das passagens foram obtidas pela PF. O grupo fez conexão na Cidade do Panamá e desembarcou em Lima, no Peru. Dali, todos foram para Buenos Aires, na Argentina, onde tomaram um ônibus para o Rio de Janeiro. Na primeira tentativa de entrarem no Brasil, foram barrados em Foz do Iguaçu (PR). No dia seguinte, o grupo cruzou a fronteira e rumou para São Paulo, onde Myrthil telefonou para a mãe e exigiu mais 1 mil para entregar Virgile. Mas Dieula não tinha o valor.
Foi para resolver essa situação que o juiz federal decidiu pela concessão da cidadania ao menino, mesmo que de forma temporária. "Sem documentos de seu país de origem, não se logrou ainda restabelecer seu status quo", afirma. "Para a Guiana Francesa, onde vive sua mãe, em situação irregular, não foi também possível encaminhá-lo por omissão das autoridades locais, especialmente a França. O menor está em uma espécie de limbo que o remete à situação de apátrida."
Mazloum lembra que o Brasil é signatário de instrumentos internacionais que o obrigam a reconhecer direitos inalienáveis da pessoa humana. "Sendo vítima e em situação de evidente vulnerabilidade, V. tem direito de procurar e gozar asilo em outros países. Estando em situação de apátrida, tem direito a uma nacionalidade, uma ordem social."
Segundo o juiz, a Lei 6.815/80 permite naturalização provisória. "A interpretação sistemática desse e de outros dispositivos legais e tratados que o País subscreve permite concluir pela possibilidade de albergar menor introduzido clandestinamente no Brasil, cujas fronteiras foram transpostas sem óbice da fiscalização, estando aqui privado de direitos básicos." As informações são do jornal O Estado de S.Paulo.