Recife: Ensino para surdos funciona, mas falta adequação
Professora da Rede Municipal de Ensino do Recife conta dificuldades na alfabetização de crianças surdas
A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é um dos idiomas oficiais do Brasil, contudo ainda não há total inclusão da linguagem no sistema educacional do País. No levantamento feito em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 5% dos brasileiros são surdos, contando na época um percentual de cerca de 10 milhões de pessoas, das quais 2,7 milhões não escutavam nada.
Mãe de uma filha surda, Nélia Pinho é educadora para alunos surdos desde 2015 em Recife, quando a prefeitura da cidade, por meio Decreto Municipal nº 28.587/2015, instituiu as salas regulares bilíngues. Essas salas de aulas estão espalhadas por várias escolas polos, contemplando todo o ensino fundamental. A professora trabalha na Escola Municipal Cristiano Cordeiro, localizada no bairro da Cohab.
Nélia é responsável pelos sete alunos surdos que frequentam a sala bilíngue do primeiro ao quinto ano. Já toda a rede municipal de ensino conta com 173 alunos surdos nestas salas. Em outras cidades, como Paulista, há apenas 14 alunos em toda rede.
Os números apresentados são relativamente baixos, mesmo que se leve em consideração que um percentual desses alunos podem estar em salas de aulas para ouvintes com auxílio de intérpretes. “Desde quando eu estou aqui há oito anos, o número de alunos nem diminui e nem aumenta”, é o que aponta a professora, quando questionada sobre a pouca quantidade de estudantes na rede de ensino.
Em dados da pesquisa do IBGE de 2019, Recife tinha cerca de 1% da população de pessoas totalmente surdas e cerca de 0,5% de pessoas que utilizam algum tipo de aparelho auditivo. Totalizando, à época, cerca de 24 mil pessoas. Os baixos números de surdos no ensino, podem estar explicados aí, mas a professora Nélia Pinho discorda.
“Falta divulgação, tem muita gente que não conhece esse trabalho (salas bilíngues). E além de tudo tem também aquelas mães que são resistentes, aquela família que prefere que o aluno surdo esteja numa sala junto com os ouvintes, porque acredita que isso é inclusão, que acha que se eles estão numa sala separada eles não estão incluídos. Tem algumas pessoas que pensam assim. Mas eu acredito que a falta de divulgação é o principal foco”, afirma a educadora.
Nélia Pinho, educadora de Libras em salas bilíngues do município do Recife. (foto: Mateus Moura/LeiaJá)
Outro assunto relevante quando se fala do ensino de Libras é a tecnologia, que vem sendo grande aliada da comunidade surda no acesso ao ensino. Como é o caso dos aparelhos auditivos. Aparelhos como celulares, tablets e computadores trazem facilidade no ensino da língua de sinais por mostrarem imagens, além de possuírem aplicativos destinados à comunidade.
A Secretaria de Educação do Recife explica que “Considerando a importância de ofertar materiais didáticos que garantam uma educação bilíngue de qualidade para os estudantes das salas regulares bilíngues para surdos, os estudantes receberam materiais pedagógicos em Libras. Os kits pedagógicos dessas salas são compostos por um caderno de atividades bilíngues de Libras e Português, catálogo Libras e os projetos GEOLIBRAS e Observando, Manipulando, Jogando e Aprendendo”.
Além disso, de acordo com a Secretaria, todos os estudantes com deficiência da Rede Municipal de Ensino receberam tablets com aplicativos que facilitam o processo de ensino-aprendizagem.
Contudo, a realidade nas salas de aulas bilíngue parece estar bem distante do que apresenta a Prefeitura do Recife. “Os meus alunos receberam (os tablets). Agora não é específico de sala bilíngue. Eles recebem de acordo com a série deles”, aponta a educadora.
Além disso ela ainda relata que “Em relação às tecnologias, a gente tem o que a escola tem, se eu precisar de um data show a escola vai me servir, se eu precisar de um notebook, de um computador, a escola me serve sim, mas um específico para sala bilíngue, não temos ainda”.
Outro problema apontado por Nélia Pinho é a falta de treinamento específico com tecnologia para os professores e uma falha no diário online que fornece informações para os doentes. “No Diário Online não entra a disciplina de libras. Então, como é que eu posso preencher um diário online, onde entra português, matemática, ciência, história, geografia e não entra Libras?”, questiona.
Em sala de aula, a professora dispõe de quatro apostilas didáticas. Uma que mostra o alfabeto, outra que mostra os números, já uma terceira maior que as duas outras juntas fala sobre o sistema solar. Esse material didático segundo a educadora teria sido entregue ainda em 2022.
Ela ainda levanta a informação que o material didático distribuído pelo município não é adequado para os alunos surdos. E ainda que não existem livros didáticos. “Não tem livros, o que a gente tem é uma apostila que fugia da realidade do aluno. Recebemos uma apostila que falava do sistema solar, eu não usei porque não está adaptado para realidade deles”.
Apostila sobre o sistema solar, que a professora afirma não ser pertinente para a alfabetização de seus alunos. Mateus Moura/LeiaJá
Os jogos didáticos também foram um problema apresentado pela professora. Segundo ela, os jogos enviados pela Secretaria de Educação não são adequados e não conseguem aprofundar o ensino dos alunos. Jnto com sua filha, a docente pensou em adaptações para os jogos funcionarem melhor com os estudantes surdos.
“Junto com a minha filha, que já é profissional, a gente criou alguns jogos. Ou seja, os jogos chegam e a gente faz adaptação para Libras. Porque os únicos jogos palpáveis que a gente recebeu aqui foram de alfabeto e de números. Mesmo assim, a quantidade de números é de um até dez e o alfabeto, pronto. Nada mais do que isso. Se tiver algum outro material aqui na sala, foi construído por nós (ela e a filha) ou foi comprado por mim”, conta a educadora sobre a falta de material didático.
Estante com materiais didáticos na sala bilíngue. (Foto: Mateus Moura/LeiaJá)
A falta de adequação não está somente nos jogos e no material didático, as provas externas, como o Sistema de Avaliação Educacional de Pernambuco (SAEPE), não vêm ajustadas para os estudantes surdos, sendo uma prova igual para todos os alunos da rede. Nesse sentido, a professora diz ser a intérprete dos alunos.
A educadora ainda cobra livros paradidáticos em Libras. “O que a gente tem aqui são comprados por mim. Aqui na sala tem Chapeuzinho Vermelho surda, Cinderela surda, mas são meus. A prefeitura não mandou nenhum e a escola também não. Então, ou a gente compra para trabalhar melhor com eles, a questão da literatura, ou a gente vai fazendo adaptações. Acredito que a Libras não devia ser adaptações, porque o português nunca foi adaptação. Porque na Libras tem que ter? Aí vamos fazer a adaptação? Não, vamos criar em Libras”.
Um dos jogos adaptados pela educadora para usar expressões faciais na aprendizagem. (Foto: Mateus Moura/LeiaJá)
“Os alunos quando chegam, a maioria deles são de família ouvintes. Eles não conhecem a Libras, eles chegam somente usando gestos, fazendo mímicas, e aqui, a primeira coisa que a gente vai fazer é ensinar Libras”. É o que diz Nélia Pinho sobre a alfabetização em Libras dos alunos surdos.
Segundo a educadora, um de seus alunos já se encontra alfabetizado e deve migrar para uma nova escola polo no próximo ano. De acordo com Nelia, a criança chegou na Escola Municipal Cristiano Cordeiro há cerca de dois anos e já está completamente alfabetizada e tendo o português como segunda língua.
Aluna escreve em português uma frase passada em Libras pela professora. (Foto: Mateus Moura/LeiaJá)
Nélia Pinho reforça que a feição da criança mudou no processo de alfabetização em Libras, que antes ela era cabisbaixa e agora é feliz. “Você gosta da sala de língua?”, perguntou a professora para sua aluna em sinal de Libras. “Aprendi a ler”, essa foi a resposta dela em linguagem de sinais. “Hoje você se sente feliz ou triste?”, segue o diálogo da educadora com a criança. “Feliz!”, responde a estudante.
O poder da comunicação foi o motivo da mudança da criança, é o que aponta a educadora. “Aqui que eles estão incluídos, os que estão nas salas de ouvintes, se não tiver uma intérprete de língua, vocês não estão incluídos. A inclusão é na sala de bilíngue”, afirma a professora a respeito da inclusão dos alunos e de sua importância no processo de ensino.
Se sentir bem é um aspecto importante do processo de aprendizagem para esses alunos. “A diferença é estar fazendo parte e ser incluído. Aqui eles são incluídos entre eles e comigo. A gente se relaciona bem e a gente se entende”, conclui a professora.