Livro reúne as melhores histórias do 'Canal 100'
A supercâmara lenta utilizada na transmissão da Copa do Mundo, capaz de dissecar qualquer lance e expor detalhes da movimentação da musculatura dos jogadores, não chega a ser tão impressionante para quem frequentou o cinema entre as décadas de 1960 e 1980, época em que a exibição de um determinado cinejornal era tão (ou mais) aguardado que o filme que viria a seguir - entre 1959 e 1986, o Canal 100 mostrou a construção de uma nova estética no modo de filmar o futebol, aproximando-a da verdadeira arte.
É o que pretende provar Canal 100 - Uma Câmera Lúdica, Explosiva e Dramática, livro fartamente ilustrado, com textos e organização de Claudia Pinheiro e Carla Niemeyer, lançado agora pela DoisUm Produções. Trata-se de um grande apanhado fotográfico de um cinejornal que, no entender de seu editor-chefe, Carlos Leonam, dividiu a história do cinejornalismo no Brasil.
De fato, criado em 1959 por Carlos Niemeyer (1920-1999), o Canal 100 adotou um formato usado por americanos e europeus, mas tornou-o essencialmente brasileiro ao eleger o futebol como seu carro-chefe. Assim, ainda que retratasse momentos decisivos da história contemporânea brasileira (desde a inauguração de Brasília até os comícios pelas Diretas, passando por shows tropicalistas, bossa-novistas e ainda as modificações arquitetônicas do Rio), o ponto alto do Canal 100 era a forma inédita como exibia uma partida de futebol.
Niemeyer não queria aborrecer o espectador, especialmente aquele que havia assistido à partida no estádio. Assim, inovou ao filmar os lances em câmera lenta, o que permitia observar detalhes inacessíveis mesmo para quem tinha visto a reprise do jogo na televisão. Para isso, ele usou câmeras teleobjetivas de 400 a 600 mm, aparelhagem que nenhuma TV então sonhava utilizar.
Como só boas máquinas não bastavam, Niemeyer contou ainda com uma afiada equipe de cinegrafistas, formada por Francisco Torturra, Liercy de Oliveira e João G. Rocha. A princípio, o grupo filmava os principais jogos do campeonato carioca, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, já acompanhava também a seleção brasileira.
Em 1966, com o sucesso consolidado, o Canal 100 alargou fronteiras e passou a cobrir Copas, começando naquele ano na Inglaterra. Em 1970, garantindo ao então ministro da Fazenda, Delfim Netto, que o Brasil seria campeão no México, conseguiu patrocínio da Caixa Econômica Federal.
Com o título conquistado (e as contas acertadas), Niemeyer decidiu reunir seu material de arquivo (em preto e branco) com as imagens colhidas no México (coloridas) e produziu o documentário Brasil Bom de Bola, que bateu recorde de bilheteria. Na Copa de 1974, na Alemanha, repetiu a dose e o material captado resultou no documentário Futebol Total, dirigido por Oswaldo Caldeira.
Mas o templo sagrado de Niemeyer era o Maracanã, especialmente nos embates do mais famoso clássico estadual do Brasil: o Fla x Flu. Flamenguista doente, Niemeyer (que era primo do famoso arquiteto) distribuía sua equipe no estádio em pontos estratégicos. Queria ângulos novos e procurava transmitir a emoção das partidas.
Posicionava duas câmeras no fosso do estádio e outra nas cadeiras especiais. O técnico de som ficava na arquibancada. Os cinegrafistas caprichavam no close dos jogadores, pois Niemeyer sabia que o futebol é um drama disfarçado de esporte e as expressões faciais dos atletas tinham tanta importância quanto seus dribles.
"As lentes do Canal 100 eram capazes de salvar um partida. O que em campo não havia empolgado era trabalhado com uma bem-sucedida montagem e sonoplastia, tornando as tomadas significativas e interessantes", observa o jornalista João Luiz de Albuquerque.
Não satisfeito, Niemeyer pedia que também se filmassem os torcedores. "A grande intuição de Niemeyer foi entender que o drama da partida não estava só no campo, mas também no espectador", observa João Moreira Salles, em depoimento publicado no livro. "Ele foi o primeiro a desviar a câmara para o público. Para o torcedor com o radinho vendo o jogo do Flamengo. Ali, ele construía uma pequena narrativa, uma pequena história de alguns minutos."
Logo, o Canal 100 tornou-se obrigatório para fãs. Bastava a tela do cinema se encher de bolinhas coloridas e surgirem os acordes da música Na Cadência do Samba, de Luiz Bandeira, para qualquer sala escura se transformar em arquibancada.
As imagens empolgavam também torcedores ilustres, como o tricolor Nelson Rodrigues. "Foi o Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol", escreveu.
Em 1986, com o fim da obrigatoriedade de exibição de cinejornais antes dos filmes, o Canal 100 ouviu o apito final. Ficaram mais de 1.300 edições, cujo exemplo de qualidade pode ser admirado no DVD que acompanha o livro, com dez reportagens. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.