Casa do Cachorro Preto anuncia que irá fechar as portas

Tradicional centro cultural de Olinda alega ordem da prefeitura para encerrar as atividades

por Renato Torres qui, 08/06/2017 - 22:03
Reprodução/Facebook Espaço funcionou por cinco anos e recebeu 50 exposições Reprodução/Facebook

O Sítio Histórico de Olinda deve perder um de seus principais espaços culturais. A Casa do Cachorro Preto anunciou, na noite desta quinta-feira (8), que irá fechar as portas por determinação da Prefeitura que alegou irregularidades no funcionamento do centro e inadequação das atividades no setor. Os donos do espaço contam, em nota publicada nas redes sociais, que nunca receberam incentivo, e, mesmo assim, foram capazes de atuar por cinco anos recebendo 50 exposições de artistas, além de lançamentos de livros e discos, oficinas, desenhadas, filmes, apresentações teatrais, circo, contações de história, performances, festivais.

Na nota, a Casa informa ainda que irá, no domingo (18), se desfazer do acervo, móveis, peças e produtos. Porém, a loja do espaço deve voltar a funcionar em julho.

"O sentimento é de tristeza, nos considerávamos parte do contexto do Sítio Histórico"

Em entrevista ao LeiaJa.com, Sheila Oliveira, que é sócia do centro, junto ao artista plástico Raoni Assis, contou que a prefeitura está alegando desacordo apenas com a música ao vivo, porém, no documento pede que todas as atividades sejam encerradas. "Eles vão dizer que só precisava parar com a música ao vivo, alegando perturbação da ordem e inadequação das atividades que vínhamos desenvolvendo, mas não é. Nos mandam cessar as atividades em imediato", disse a mantenedora.

Segundo a sócia, o local faz falta, porém não irá acabar com a proposta. "Nós não consideramos a casa como apenas um endereço, então vamos investir em outras atividades, em outros locais. Temos a casa itinerante, vamos dar fôlego na lojinha, e realizar atividades como fizemos em maio, no shopping", afirmou.

Entretanto, é impossível evitar que o sentimento seja algo diferente da perda do espaço que foi casa para diversas atividades nos últimos cinco anos de funcionamento. "É um lugar que nós cabíamos bem, trabalhávamos as artes de forma integrada. Recebemos festivais, cinema, exposições, lançamentos, bem a cara de Olinda. Nascemos e nos criamos por lá. Primeiro, foi ruim ser tratados dessa forma, passamos três meses tentando um entendimento e não foi possível preservar. Às vezes éramos o único lugar da cidade com atividade cultural. Mas não vamos nos deixar abater, continuaremos juntando a turma da arte e cultura em outros espaços", lamentou Sheila.

Confira a nota íntegra:

A Casa do Cachorro Preto encerra, oficialmente, as atividades no número 99 da rua 13 de maio, em Olinda. Fomos (in)devidamente notificadxs para cessar todas as nossas ações. Durante 5 anos agregamos idéias, imagens, sons, rosnados, balançadas de rabo, experimentamos, quebramos a cara, abrimos uns sorrisos, planejamos, suamos, discutimos, erramos e acertamos muito em tudo isso. Recebemos uma notificação da Prefeitura determinando o nosso fechamento alegando "irregularidade", "perturbação da ordem" e "inadequação das atividades" no setor do Sítio Histórico. Passamos março, abril e maio procurando responder o que não tinha sido perguntado e debater o que foi ignorado.

Procuramos as autoridades para apresentar A Casa, mostrar nossa programação, solicitar orientação para adequação às regras da cidade e nossa disposição e propósito de continuar desenvolvendo nossos trabalhos em Olinda, uma cidade com plena vocação, histórica, boêmia, transgressora, inspiradora, e não merece ficar parada. O reconhecimento público do papel que cumpre A Casa do Cachorro Preto para a cultura, infelizmente, não cabe nos poderes públicos de Olinda na atual conjuntura. Temos plena consciência do que a Casa representa para a cultura contemporânea de nossa cidade, do nosso estado e do país.

Viramos uma referência e espaço para muitos dos artistas das diversas áreas e também para o público da Cidade Patrimônio Histórico Cultural da Humanidade. Ironicamente, somos a principal atividade relacionada à economia criativa, usada pela própria prefeitura em apresentações das possibilidades de uso do perímetro histórico. Ocupamos uma lacuna deixada pelo fechamento dos equipamentos públicos e o uso da cultura como mera atividade de entretenimento. O que grita para gente como a ausência de um equipamento sequer funcionando com atividade regular - não vamos nos aprofundar por aqui nas questões de completa falta de estrutura, iluminação, segurança, banheiros públicos, abastecimento de água, dentre outros requisitos básicos para o convívio coletivo na cidade que se propõe a receber visitantes de várias partes do país e do mundo - perturba muito mais a ordem, com toda certeza.

E Olinda está assim, com vários espaços de atividades diversas sendo compulsoriamente fechados. Não recebemos nenhum incentivo e até então sobrevivemos com o consumo de nossas obras, produtos e atividades pelo nosso público. Em 5 anos fizemos 50 exposições, 16 delas primeiras individuais, 3 leilões de obras de arte, editamos a primeira publicacao da editora A Casa do Cachorro Preto , o Tô Miró, fizemos vários lançamentos de livros e discos, oficinas, desenhadas, filmes, apresentações teatrais, circo, contações de história, performances, festivais. Muitas bandas se formaram por aqui, ensaiaram geral e saíram ganhando o mundo em suas turnês. Recebemos atrações nacionais e internacionais.

Momentos memoráveis de transcendência, criação, encontros e trocas. O conceito e as atividades da Casa são integradas. Um lugar de convivência. Um espaço cultural. Artes visuais, literatura, teatro, circo, música, aqui tem lugar. E pra gente só tem sentido se for assim. Por isso viramos matilha. Cheia de gente que cria, batalha e se junta pras coisas acontecerem. Não temos como permanecer sendo "irregulares". Como todo trabalho, precisamos nos manter, pagar as contas, cuidar e investir no espaço. Para quem vive do que produz, parar por 3 meses inviabiliza a sustentabilidade de qualquer atividade.

Mas como já disse um artista "a crise também é estética". O texto que nos criou alertava: "A casa do cachorro preto não é um espaço. A casa do cachorro preto não é uma casa. A casa do cachorro preto não é uma ideia. Nem um movimento. As casas não se movem. As coisas não se movem. O cachorro corre. O cachorro ladra. E às vezes morde". Não somos um endereço. E da nossa natureza solta, estaremos de andada, passeando com o Cachorro em outros ares. Levar a Casa pra onde a gente for. Cada umx que passou nesse endereço está destinadx a ganir por onde passar. Não vamos parar por aqui. O movimento é constante e ainda temos muita coisa pra ajeitar por dentro e por fora das nossas ideias.

Esse será um chamado pra nos reunir e enfrentar o que tiver de atrasado e retrógrado pela frente. Enquanto estivermos livres vamos nos juntar pra fazer nossos barulhos e nossos rabiscos e nossas mungangas, e tudo mais que a liberdade nos permitir. Por enquanto não teremos novo endereço. Aqui, vamos manter o escritório, a lojinha física e vamos dividir o espaço com outros parceiros, porque nessas horas é importante juntar as forças e focar num caminho. Vamos dar uma turbinada na presença virtual e levar o Cachorro pra passear "onde quiser, o que der, o que for e o que vier.

Quem quer que seja o cachorro e onde quer que seja a casa. Deixamos de ser uma casa e um cachorro. Pra ser matilha solta. Somos uma casa de agregados. E cachorros. E imagens. E ideias. Sendo eles pretos. Mas não só e também".

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