Morre Vicente Franz Cecim, o escritor do livro invisível
Aos 74 anos, poeta e romancista paraense estava internado para tratamento de câncer e contraiu a covid-19
“Tu escreves um livro com tinta invisível. Por que fazes isso?”
O escritor que não escreve, a escrita sem palavras, o vazio infinito, o mistério, o insondável. A cidade e a floresta. A magia e o espanto. O ser, o nada, o mundo, o cosmos, o sim, o não. Cecim.
Vicente Franz Cecim, 74 anos, setent’anos, setentrional, universal. Poeta do inverso, do não verso, morreu Cecim. Em Belém. Em Andara. Em qualquer lugar. Ou não lugar.
O imaginário poético de Vicente Franz Cecim, ó serdespanto, jamais será traduzido em línguas, porque é memória coletiva. Vida, um dia, eterna.
Cecim atravessou todos os terrenos da narrativa – a notícia, a persuasão, a fantasia, o verso. Sempre verbo.
“É preciso amar os vivos como se ama os mortos.”
Morreu do vírus que espalha corpos na praça, o artífice enigmático, encantador de "labirantros", mas também da angústia que o acompanhou nas linhas retas e tortas de textos fantasmas, da insaciabilidade, da inquietação criativa que o colocou acima dos medíocres, que o tirou do raso e o atirou num constante choque com o real/irreal do mundo.
“Depois de mim virá um outro, e agora vou contar a história dele.”
Sempre teremos um segredo, pensou. No mundo de Cecim, os livros tramam contra homens que tramam contra outros homens que tramam...tramam, vivos ou mortos, personagens são os mesmos e outros, existem e não existem. São transgressores, cegos que veem, aves que cegam. Pura invenção. Ou não.
“O que é Literatura? Nem Verdade, nem Mentira...”
Cecim é ficção e verdade. Permanência e viagem. Diminuta imensidão.
“- a Literatura é a Outra Vida. Qual? Aquela que livre das limitações dos sentidos - e lidando apenas com significados - ganha, pelas Palavras, a liberdade que nesta em que vive aquele que escreve não tem."
Cecim não morreu. Ninguém nasce Cecim, ninguém morre Cecim.
Sobre Vicente Franz Cecim
O escritor paraense Vicente Franz Cecim morreu da tarde desta segunda-feira (14), em Belém. Cecim estava internado no Hospital Ophyr Loyola e fazia tratamento contra um câncer. Segundo familiares, ele apresentava sintomas da covid-19.
Do site da Cinemateca Paraense: “O escritor Vicente Cecim, antes de começar sua jornada por Andara, em sua série de livros, filmou em super-8 entre os anos de 1975 e 1979. Depois abandonou o cinema para se dedicar ao Livro Invisível”.
Do site Cultura Pará: “Vicente Franz Cecim nasceu e vive em Belém do Pará, na Amazônia, Brasil. Desde que iniciou em 1979 a invenção de "Viagem a Andara oO livro invisível", se devota unicamente a essa obra imaginária, que chama de literatura fantasma e diz escrever com tinta invisível. Os livros visíveis que escreve emergem dessa Viagem, ou, segundo o autor, não-livro, ambientados no território metafísico e físico de Andara, transfiguração da Amazônia em região-metáfora da vida".
Caminhada literária
1979: com "A asa e a serpente" (ed. Semec, Belém), primeiro livro individual de Andara, inicia a criação de "Viagem a Andara oO livro invisível".
1980: o segundo, "Os animais da terra" (ed. Semec, Belém), recebe (junto com "O cego e a dançarina", de João Gilberto Noll) o Prêmio Revelação de Autor da APCA.
1981: "Os jardins e a noite. A noite do Curau" (ed. Semec), versão resumida deste terceiro livro de Andara, é Menção Especial no Prêmio Internacional Plural, no México.
1983: "Lança Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau" (edição do autor, Belém), por uma insurreição poética e política do Imaginário Amazônico.
1984: "Terra da sombra e do não" (ed. Semec, Belém), quarto livro individual de Andara.
1988: "Viagem a Andara" (ed. Iluminuras, São Paulo), reunindo os 7 primeiros livros, recebe o Grande Prêmio da Crítica da APCA.
1995: "Silencioso como o Paraíso" (ed. Iluminuras, São Paulo), com quatro novos livros, prossegue a Viagem a Andara.
2001: a invenção de Andara já havendo ultrapassado duas décadas, publica "Ó Serdespanto" (ed. Íman, Lisboa) com dois novos livros em Portugal, apontado pelo jornal O Público (Lisboa) como um dos melhores do ano.
2004: segunda edição dos primeiros 7 livros visíveis de Andara, em novas versões, transcriados e agora reunidos nos volumes "A asa e a serpente" (ed. Cejup, Belém) e "Terra da sombra e do não" (ed. Cejup, Belém). No mesmo ano, "Música do sangue das estrelas/Música de la sangre de las estrellas" (Poetas de Orpheu, Brasil/Espanha), reunião de poemas e cantos extraídos de "Ó Serdespanto".
2005: primeira edição, em Portugal, de "K O escuro da semente" (ed. Ver o Verso, Lisboa), primeiro livro visível de Andara em Iconescritura, mesclando palavras e imagens.
2006: sai a edição brasileira de "Ó Serdespanto" (ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro).
2008: "oÓ: Desnutrir a Pedra" (ed. Tessituras, Minas Gerais).
2014: "Breve é a febre da terra" (Prêmio Iap de Romance, Belém).
2015: "Fonte dos que dormem" (ed. Córrego, São Paulo).
2016: edição brasileira de "K O escuro da semente" (ed. Letra Selvagem, São Paulo).
2020: edição em Obra Completa (1238 pags) de "Viagem a Andara oO livro invisível" (contendo os 3 inéditos: "oO Círculo suas Rendas de Fogo/coisas escuras procurando a luz com dedos finos cheios de hervas/ Oniá".
Por Antonio Carlos Pimentel Jr.