Recife: restaurante popular não sai do papel e é esquecido

Para minimizar a não existência do estabelecimento, ONGs propõem o fornecimento emergencial de 900 quentinhas diariamente para pessoas em situação de rua

por Eduarda Esteves ter, 07/05/2019 - 13:52
Júlio Gomes/LeiaJáImanges José Codácio lamenta a falte de ações do poder público para garantir o direito dos moradores em situação de rua Júlio Gomes/LeiaJáImanges

Em 2004, o agricultor pernambucano José Codácio de Lima, 47, passou por uma série de problemas familiares em sua casa e foi morar nas ruas. Quinze anos se passaram e ele nunca conseguiu uma outra moradia. Migrou pela capital pernambucana, por São Paulo, Goiás e Salvador e viveu diferentes momentos das políticas públicas destinadas aos moradores em situação de rua no país.

José relembra que, na condição de morador que vive nas ruas, se alimentar bem era mais fácil há dez anos atrás pela existência de dois restaurantes populares no Recife. “Antigamente, a gente ia lá, almoçava e pagava um real. Eu viajei pelo Brasil e todos esses locais tinham esses restaurantes. Quando eu voltei para o Recife, os que funcionavam aqui tinham fechado e até hoje é uma luta diária para conseguir uma quentinha”, detalha.

Os dois estabelecimentos que José Codácio se refere foram abertos em meados de 2005. Um deles era o Centro Social Urbano Bidu Krause e servia 350 refeições com 1.300 calorias, por R$ 1, de segunda a sexta, das 11h30 às 13h30. O outro ficava localizado no Cais de Santa Rita e se chamava ‘Restaurante Prato Popular’, oferecia refeições a R$ 1 no Centro do Recife. Neste último, era disponibilizadas cerca de 300 refeições, também e os interessados precisavam fazer um cadastro de identificação. O restaurante era uma parceria entre a Prefeitura do Recife, a empresa Coca-Cola e o programa Fome Zero, do Governo Federal.

Um inquérito no MPPE vai  avaliar a inexistência de restaurantes populares no Recife e na Região Metropolitana. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Atualmente, o Recife está longe da premissa de que o fornecimento de alimento seguro para consumo é uma questão de política pública. A ideia desses restaurantes era favorecer trabalhadores informais da região, pessoas de baixa renda e moradores em situação de rua. Mas, além dos dois restaurantes não existirem mais, não há, no Recife, um estabelecimento gerido pela gestão municipal para subsidiar essas refeições com o baixo custo, a exemplo do que acontece em outras cidades, inclusive de Pernambuco.

No Sertão pernambucano, o ‘Restaurante Popular de Petrolina’ é uma iniciativa coordenada pela gestão municipal, através da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. O local oferece diariamente uma alimentação saudável e equilibrada que está disponível à população por apenas R$ 1,50. Diariamente, são servidas cerca de mil refeições e o cardápio varia entre baião de dois, carne de bode, feijoada, doces caseiros e sucos naturais.

Com o intuito de resolver a situação na capital pernambucana, de forma emergencial, foi aberto um inquérito civil no Ministério Público Estadual, com o objetivo de investigar a suposta violação do Direito Humano à alimentação adequada voltada para a população em situação de rua e vulnerabilidade social pelo município do Recife e pelo Estado de Pernambuco. A ação vai avaliar a inexistência de restaurantes populares no Recife e na Região Metropolitana.

Segundo o Manual dos Restaurantes Populares de 2004, elaborado pelo Governo Federal, restaurantes populares consistem em "estabelecimentos administrados pelo poder público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas, nutricionalmente balanceadas (…) a preços acessíveis, servidas em locais apropriados e confortáveis, de forma a garantir a dignidade ao ato de se alimentar. São destinados a oferecer à população que se alimenta fora de casa, prioritariamente aos extratos sociais mais vulneráveis, refeições variadas, mantendo o equilíbrio entre os nutrientes", diz trecho do documento. 

No dia 19 de dezembro 2018, foi debatido em uma reunião no MPPE, um Plano Emergencial que previa a possibilidade do fornecimento de 900 refeições diárias nas Regiões Político Administrativas 1, 2 e 6 do Recife. De acordo com a ata de reunião, o qual a reportagem do LeiaJá teve acesso, seria necessária a elaboração de um projeto a ser submetido à apreciação da Procuradoria Geral do Município e um levantamento de custos para a implantação do plano.

Avaliou-se inserir no Plano Emergencial de Segurança Alimentar para a População de Rua algumas ações, como o levantamento de espaços no município que poderiam servir para o funcionamento de restaurantes populares e a intensificação do debate com instituições públicas e privadas. Participaram da reunião representantes da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, Pastoral do Povo da Rua, Conselho Municipal de Segurança Alimentar, Superintendência de Ações de Segurança Alimentar e Nutricional, Gerência de Proteção Social Especial de Média Complexidade e Vigilância Sanitária Municipal.

Voluntária da Pastoral do Povo de Rua exibe o documento que comprova a reunião entre os poderes públicos e sociedade civil. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Saúde e alimentação convivem lado a lado

Em 2011, um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que os hábitos alimentares de 90% da população brasileira estão fora dos padrões recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os responsáveis por isso são principalmente alimentos calóricos e de baixo teor nutritivo presentes na nossa dieta.

Uma outra pesquisa aponta que uma em cada cinco mortes em todo o mundo é causada pela má alimentação. A estatística foi divulgada pela revista científica The Lancet, que analisou os hábitos alimentares das populações de 195 países. Ainda de acordo com a publicação científica, todos os anos 11 milhões de pessoas morrem em decorrência de doenças causadas por dietas consideradas de baixa qualidade.

Em entrevista ao LeiaJá, o frei Marcos Carvalho, coordenador Pastoral do Povo de Rua explicou que o projeto para a construção de um restaurante popular no Recife está previsto no Plano Municipal de Política Pública para a população em situação de rua e deveria ter sido executado em 2017, mas não foi cumprido pela gestão. Confira o documento na íntegra.

População em situação de rua cresce a cada ano na cidade do Recife. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

“O inquérito do MPPE veio justamente por isso, porque como a medida não foi elaborada, pensamos no plano emergencial das 900 quentinhas, a curto prazo, até que se voltasse a pensar nesse restaurante popular. A proposta chegou a ser dialogada com a gestão municipal e estadual para a população em situação de rua ser atendida, nesse sentido”, explicou Marcos.

Apesar das deliberações da reunião no Ministério Público, em que o prazo para o início da distribuição dessas quentinhas seria março de 2019, em maio do mesmo ano, ainda não há sinal de andamento no projeto. “A gente já está dois meses atrasados e os processos de elaboração desse plano estão pendentes na área jurídica da Prefeitura da Cidade do Recife”, denuncia.

Para o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, a burocracia e falta de interesse dos gestores atrasa um plano que deveria ser emergencial. “Precisamos pensar em encurtar esses prazos para que corram de forma mais célere. Inclusive foi uma das propostas do promotor na audiência pública de que não se fosse para esperar tanto tempo, afinal, estamos falando da alimentação, algo crucial na vida de todos seres humanos. Não há boa vontade em resolver a questão”, diz.

Coordenador da Pastoral do Povo de Rua há dois anos, Marcos avalia que projetos esbarram na falta de vontade política. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

A comida como uma política pública e os números preocupantes no Recife

Eleito representante dos moradores em situação de rua, o pedreiro José Antônio de Souza, 51, vive no centro da capital pernambucana há sete meses, quando saiu de casa. Ele conta que não chegou a passar fome porque, apesar das dificuldades, comida é algo que quase sempre é mais fácil de conseguir. “Temos que correr para conseguir todas as refeições do dia. Seja um lanche ou uma janta. A gente vive do apoio das comunidades voluntárias que passam em horários diversos. Na fome você tem que aceitar o que vier”, explica.

Toinho, como é conhecido pelos amigos da rua, conta que apesar de nunca ter passado fome, muitas vezes gostaria de ter um espaço para tomar um banho e realizar a sua refeição em um prato limpo, com talheres e sentado, como as pessoas costumam fazer nos restaurantes ou em suas casas.

“O único local que podemos fazer isso é nos Centros POPs, mas são poucas vagas e não dá para ir todos os dias, só podemos duas vezes na semana e se conseguirmos a ficha, bem disputada. Eu acho às vezes que a gente deixa de ser humano e passa a ser visto como bicho porque estamos na rua”, lamenta o representante dos moradores em situação de rua do Recife.

José Antônio, eleito representante do povo de rua. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Mensalmente, cerca de 200 pessoas diferentes são atendidas nos dois Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro POP) da Prefeitura. Esses locais atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social para ter acesso à alimentação, higiene pessoal (banho), atendimento psicossocial e podem ser encaminhadas para acolhimento (se quiserem e se enquadrarem no perfil). Os Centro POP funcionam de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h, e estão localizados nos bairros de Santo Amaro (Centro POP Glória) e Madalena (Neuza Gomes).

Nos dois centros da PCR são oferecidas cerca de 90 refeições diárias, cada uma, somando café da manhã, almoço e janta, para as pessoas em situação de rua que estão utilizando os serviços dos centros. Ou seja, apenas 60 pessoas podem utilizar os serviços diariamente, 30 em cada um.

O número, no entanto, está longe de ser suficiente e efetivo, na visão do coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Marcos Carvalho. “Os dois centros fornecem um número insuficiente diante da atual quantidade de pessoas vivendo nas ruas do Recife”, pontua.

De acordo com o último levantamento feito pela Prefeitura do Recife, cerca de 1.200 pessoas vivem em situação de rua na capital pernambucana. Esse número também é visto com desconfiança por Marcos. “Em 2005, a UFPE realizou uma pesquisa nos moldes da academia e identificou cerca de 1500 moradores em situação de rua. Com a crise e o desemprego, a gente sabe que esse número aumentou muito, é só olhar nas ruas da cidade, você verá gente dormindo em todas as calçadas”, detalha Carvalho.

Ele comenta ainda que a função de alimentar essas pessoas acaba ficando sob responsabilidade de ONGs, entidades voluntárias e cristãs, grupos de caridade e até restaurantes privados. “Essas pessoas se compadecem com a situação de quem está com fome e fornecem essa alimentação. Mas, o problema é que a caridade nem sempre é feita da forma correta e digna, como todo ser humano deveria ter acesso por lei. São quentinhas sujas, muitas vezes, o fato de comer no meio da rua sem nenhuma higiene. É por isso que o restaurante a baixo custo é tão necessário”, explica Marcos.

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Se a situação da verba para o financiamento do restaurante popular estava difícil, em 2019, pode piorar ainda mais. Isso porque o presidente Jair Bolsonaro (PSL), através de uma medida provisória, retirou do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) a atribuição de propor ao governo federal as “diretrizes e prioridades” da política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar. Dessa forma, o conselho, antes formado por alguns representantes da sociedade civil, foi extinto e suas funções foram transferidas ao Ministério da Cidadania.

Na avaliação de Marcos, essa medida tem como consequência o não avanço de políticas públicas do governo federal nesse sentido, sobretudo referentes a segurança alimentar. “Antigamente, um programa federal financiava os restaurantes populares e as cozinhas comunitárias e foram extintos. Com essa nova extinção do próprio conselho, o impacto é grave e a reativação desse programa segue fora de cogitação”, destaca o frei, que coloca na conta da gestão municipal e estadual o financiamento e o repasse de recursos para a criação do restaurante e o cumprimento da medida emergencial.

Procurado pela reportagem do LeiaJá, o MPPE informou que a Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos da Capital não recebeu nenhuma resposta sobre os resultados da última reunião. Por meio de nota, o órgão destacou que diante da falta de resposta dos órgãos públicos, o MPPE encaminhou ofício para que compareçam a nova audiência sobre o tema, marcada para o dia 12 de junho, às 16h30, na sede das Promotorias da Capital.

“Em relação ao fornecimento emergencial das 900 quentinhas, não podemos afirmar se a medida foi implementada ou não por causa da falta de respostas. O ideal seria questionar a Prefeitura sobre o fato”, diz trecho da resposta do MPPE.

"Atualmente, a gente conversa com a Secretaria Executiva de Assistência Social do município para mobilizar e saber do percurso que está a medida. Também já buscamos junto ao MPPE o andamento do processo e o não cumprimento dessa ação. Além disso, também temos dialogado no Conselho de Segurança Alimentar no Recife em busca de respostas da gestão. A gente não percebe muita celeridade neste processo, apesar de pressionarmos de diversas formas. E colocamos os próprios moradores em situação de rua como protagonistas para que eles participem das audiências e peçam por seus direitos”, complementou Marcos, insatisfeito com a demora da gestão municipal em colocar um projeto em funcionamento.

Já a Prefeitura do Recife se posicionou através da  Secretaria Executiva de Assistência Social. A nota informa que vem sendo construído coletivamente - poder público e sociedade civil - uma proposta emergencial para o fornecimento de refeições para a População em Situação de Rua (PSR). O órgão minimizou a urgência da situação e pontuou que a questão segue em debate e não está em inércia.

“As discussões têm sido fundamentadas na Política Nacional de Segurança Alimentar. Para isso, foi criada uma comissão e elaborado termo de referência para  construção de edital para a seleção de organizações que apresentam em seus fundamentos a segurança alimentar e nutricional. No que se refere a implantação de um restaurante popular, as tratativas estão acontecendo e o pleito vem sendo conversado  junto ao Governo Estadual, para a viabilizar o projeto, assegurando uma solução estrutural que possibilite a construção do Restaurante Popular”, nota enviada pela PCR.

Histórico da administração pública brasileira em torno desse tipo de ação pública

Política pública de combate à fome no Brasil ganhou força com o Programa Fome Zero, em 2003. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Na história do Brasil, em 1940, uma iniciativa de Getúlio Vargas instituiu o chamado Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), que era um modelo de restaurantes públicos que ofereciam alimentação às populações pobres, posteriormente desativado pelo golpe militar, em 1968.

Os restaurantes populares só ganharam força efetivamente, enquanto estratégia de promoção da segurança alimentar em grande escala, em 2003 como parte integrante do programa Fome Zero do Governo Federal sob comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na época, o programa tinha o intuito de superar o problema persistente da fome no país.

O projeto elaborou uma série de medidas, dentre elas, a criação desses restaurantes em cidades com mais de 100 mil habitantes no Brasil. E a iniciativa teve sucesso, sendo o Brasil reconhecido internacionamente pelas políticas de combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional.

Em 2014, o país conseguiu sair do mapa da fome, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Cinco anos depois, o novo governo extingue o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional. A medida provocou diversas reações e movimentos sociais promoveram uma mobilização social para exigir que a comida continue sendo direito de todos e que a participação da sociedade na tomada de decisões seja garantida.

“A comida deve alimentar corpo, mente e alma, não matar, nem por veneno nem por conflito. Deve erradicar a fome e conservar a natureza, promover saúde e a paz entre os povos. Comer é ato político e o que comemos determina o sistema alimentar que fomentamos com nossas escolhas”, diz o manifesto publicado na página do banquetaço em uma rede social.

''Banquetaço'' destaca política nacional de alimentação

Entre as contribuições do Consea estão a definição e aprimoramento de políticas públicas como a estratégia Fome Zero, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, programas de convivência com o semiárido, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o Plano Safra da Agricultura Familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Guia Alimentar da População Brasileira.

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