'Panelas comuns' e restaurantes são aliados contra a fome

No Chile, se multiplicaram iniciativas nos bairros mais pobres e vários restaurantes, alguns gourmet, que acionaram suas cozinhas para que ninguém durma sem comer

dom, 23/08/2020 - 14:12
MARTIN BERNETTI . MARTIN BERNETTI

Os meses da pandemia multiplicaram as iniciativas para aliviar um drama que o Chile acreditava ter erradicado: a fome. As 'panelas comuns' (movimento voluntário para combater a fome) se multiplicaram nos bairros mais pobres e vários restaurantes, alguns gourmet, acionaram suas cozinhas para que ninguém durma sem comer.

Em Lo Hermida, uma das localidades mais combativas de Santiago, nove mulheres se uniram para criar "Las Guerreras", uma panela comum que entrega 175 almoços todos os dias aos vizinhos que lutam contra a fome, mas também contra o coronavírus que atingiu duramente a este setor da comuna de Peñalolén, no leste de Santiago.

“Nunca pensei que seria tão necessário aqui”, disse Ruth Lagos à AFP, surpresa com as deficiências que a pandemia expôs neste bairro de classe baixa onde moram famílias sustentadas com empregos precários, gravemente afetados pela pandemia e a quem os auxílios estatais não chegaram ou demoraram demais.

Primeiro, elas começaram a reunir ingredientes e depois montaram uma cozinha no quintal de uma casa de Lo Hermida.

A população local se formou a partir de uma ocupação de terras e é considerada uma das mais emblemáticas na luta contra a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Também foi muito ativa nas mobilizações de outubro de 2019.

Embora não tivessem muita experiência na cozinha, as voluntárias recorreram ao que vivenciaram neste mesmo local nos anos 1980, quando a aguda crise econômica levou à multiplicação das panelas comuns no Chile, em um drama que parecia ter ficado no passado.

“Lutamos para não passar por isso. Lutamos por um Chile melhor e fica pior a cada dia”, diz Ruth, que aos 48 anos lembra de ter “descascado batatas” quando criança com os pais no panela comum criada em Lo Hermida na época.

Junto com "Las Guerreras" há outras três panelas comuns, e em toda Peñalolén cerca de 80, formadas no calor da solidariedade e com a ajuda de vizinhos e amigos.

Dados de fundações e organizações comunitárias estimam pelo menos 400 cozinhas populares que surgiram em Santiago, onde vivem mais de 7 milhões de habitantes, e em muitos casos servem a única refeição diária para as famílias.

“Sobrevivemos graças à panela comum”, admite Paola, ao receber de “Las Guerreras” um prato de arroz com frango com mostarda. Desempregada há cinco meses, até agora não recebeu nenhum auxílio estatal.

Comida para todos e para a alma

Mas, além das panelas comuns, vários restaurantes, alguns deles com comida gourmet, reativaram suas cozinhas para preparar refeições e distribuí-las entre famílias pobres.

O sistema também permite atender restaurantes que ficaram fechados por meses por conta de restrições sanitárias, pequenos fornecedores e transportadores escolares que a pandemia deixou sem apoio após o fechamento de escolas.

“Eles nos ajudam muito, ajudam muita gente porque uma rede se forma ”, disse à AFP a renomada chef Carolina Bazán, dona do restaurante Ambrosía Bistró, eleita no ano passado como a melhor chef latino-americana entre os 50 melhores restaurantes da América Latina.

Carolina manteve seu restaurante fechado por dois meses, mas depois decidiu reabri-lo com entrega em domicílio, e também aderiu à iniciativa “Comida para Todos”, que hoje reúne 14 restaurantes que entregam cerca de 6.000 almoços por semana.

Junto com dois ajudantes, Carolina prepara 450 pratos de comida por semana que são entregues às famílias no centro de Santiago. Para fazer isso, ele teve que abrir mão das preparações elaboradas de seu restaurante em estilo francês para se concentrar na comida mais simples.

“A ideia é que seja comida caseira, mas o mais importante é que seja comida deliciosa, que preencha a alma e que seja nutritiva”, acrescenta a chef de 39 anos e mãe de dois filhos.

A iniciativa “Comida para Todos” é financiada por meio de doações, que pagam pelos ingredientes, os funcionários dos restaurantes e transportadoras que fazem as entregas.

“Quando começamos (segunda semana de maio) havia três refeitórios populares ou panelas comuns; depois de duas semanas eram 25 e em um mês eram 78, isso é a escalada da fome no Chile”, diz Ana Rivero, da equipe de comunicação desta iniciativa que atende também as cidades de Santiago, Antofagasta (norte), Valparaíso e Viña del Mar (centro).

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