Regulação do homeschooling: entre retrocesso e liberdade

No dia 18 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base que regulariza a prática de homeschooling, ou ensino domiciliar, no país

por Elaine Guimarães dom, 05/06/2022 - 11:38

Suellen e Lucas Alencar optaram pelo ensino domiciliar há cinco anos. Foto: cortesia

Desde 2017, Suellen Alencar, de 29 anos, é responsável pela educação dos filhos. Mãe de quatro crianças, a mais velha tem 6 anos e o caçula está com um mês, ela vê no homeschooling, ou ensino domiciliar, um meio de proporcionar educação individualizada e abordar conteúdos que ultrapassam os muros da escola.

“Temos a oportunidade de ensinar [com o homeschooling] não apenas com lápis e papel, mas com a vida cotidiana. Executar uma receita de bolo pode ser uma aula. Além de nos divertimos, podemos aprender também sobre matemática por exemplo. Além disso, o homeschooling proporciona um tempo mais presente na vida dos nossos filhos, que para nós é de grande valor”, explica ao LeiaJá.

À reportagem, Suellen, que é do lar e tem formação superior em administração, conta que as crianças possuem uma rotina desde o acordar ao dormir. As aulas domiciliares são no turno da manhã e duram entre 1h30 e 2 horas de estudos. Já as tardes são dedicadas a passeios ao ar livre. Todo o planejamento das atividades educacionais é realizado pela própria Suellen.

“Todo fim do ano verifico a grade curricular da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é a grade usada pelas escolas e também o currículo de educação clássica, que se encontra no livro ‘A mente bem treinada’. A construção é feita levando os dois em consideração. Pode parecer muito trabalho, mas faço com muito prazer!”, ressalta.

Suellen Alencar com os quatro filhos. Foto: cortesia

Nenhum dos filhos chegou a frequentar a escola e Suellen garante que ela e o marido, Lucas Alencar, de 31 anos, nunca foram alvos de críticas por parte da família ou amigos por isso. “Nunca sofremos nenhuma crítica a respeito por pessoas que nos conhecem e convivem conosco, muito pelo contrário, a maioria das pessoas ficam curiosas e encantadas ao ver como educamos nossos filhos”, conta.

Mas pondera: “Claro, que para quem não nos conhece, tem sempre os questionamentos. Lidamos com calma, entendendo que muitas dessas críticas são porque essas pessoas nunca conheceram uma família educadora e normalmente o desconhecido causa estranheza”. Outro fato que a dona de casa assegura é sobre a questão da interação e socialização não ser comprometida pela ausência no ambiente escolar.

“A socialização não é formada apenas pela escola, tendo em vista que a mesma surgiu há menos de 500 anos (...) entendemos a socialização como algo importante para o desenvolvimento dos nossos filhos e proporcionamos esses momentos, seja com encontros com outras famílias educadoras, atividades extracurriculares (natação, futsal, por exemplo), passeios diários ao parque, quando visitamos os avós, os primos. Quando não diminuímos a socialização de uma criança a quatro paredes de uma sala de aula, entendemos então que tudo pode ser uma oportunidade”, argumenta.

Nova rotina

Há quatro meses, Hannah, de 11 anos, trocou a escola tradicional pelo homeschooling. A escolha dos pais Everton Antônio da Silva e Adriana de Jesus Rocha pela educação domiciliar foi bem aceita pela menina, caso contrário, de acordo com Everton, ela continuaria a frequentar o colégio.

“A Hannah opina. Se ela falasse que queria continuar na escola, ela continuaria. Nós mostramos a ela, porque, a meu ver, o mais importante da escola é o ensino de base, alfabetização, a escola contribui mais é nessa parte. Depois dessa parte, formação da personalidade, do caráter, questão de gosto, ideologia, conhecimento, eu acredito que seja no seio familiar”, frisa Everton.

Hannah (no centro) começou no ensino domiciliar em fevereiro deste ano. Foto: cortesia

Ele afirma que a nova dinâmica de ensino não causou estranhamento e não precisou de grandes adaptações. Até o final de 2021, Hannah frequentava a escola tradicional, mas de forma remota devido à pandemia da Covid-19 no Brasil. “Ela dá continuidade aos estudos, só que em casa. Ela está na 6ª série. Então, a gente usa o material que seria usado na escola, a mesma coisa. Realizamos o acompanhamento, consultamos um site para aplicarmos as matérias, tem um professor nele. No final, lembra uma escola on-line", observa.

Homeschooling: que educação é essa?

Em entrevista ao LeiaJá, Rafaela Celestino, professora do Departamento Fundamento Sócio-filosófico do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutora em Educação, explicou que o homeschooling ou educação domiciliar surgiu na década de 1960 por meio do professor norte-americano John Hack, da Universidade de Harvard. De forma geral, a prática "defende, basicamente, a desescolarização e o direito a um ensino em casa", explicou.

À reportagem, a docente aponta que o ensino doméstico se difere do oferecido em instituições de ensino regular em vários aspectos. "Ele [ensino domiciliar] não tem a sistematização regular dos conteúdos, não precisa de um profissional habilitado para tal função, tendo em vista que são os pais que vão ter o direito de educar em casa os seus filhos" pontua. 

 Rafaela Celestino salienta que a prática vai de encontro ao que prevê o artigo 59, da Contituição Federal. O texto defende a obrigatoriedade da oferta de Educação Básica e gratuita para todo e qualquer cidadão. Além disso, ela reforça as lutas pela ampliação do acesso à Educação. "A gente pensa no histórico da Educação brasileira, a gente vê que já foi uma luta ampliar a educação escolar para a maioria. Então, [o homeschooling] soa como uma espécie de retrocesso", diz.

E complementa: "Embora o argumento do custo-benefício seja muito maior em relação à escola regular, o espaço formal de ensino, a gente sabe que quem tem estrutura para oferecer esse tipo de educação é a elite. Não é todo brasileiro. Na realidade brasileira, as crianças ainda vão para a escola até para ter direito a uma merenda".

Regulamentação 

No dia 18 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base que regulariza a prática de homeschooling. A proposta, que será encaminhada ao Senado Federal, determina que as atividades pedagógicas sejam periodicamente registradas pelos pais ou responsáveis. Os estudantes, pelo texto da proposta, devem estar matriculados em instituição de ensino credenciadas, que devem acompanhar a frequência nas atividades. O texto também ressalta que os alunos serão avaliados, anualmente, pelo Ministério da Educação (MEC) sobre conteúdos apontados na BNCC. 

Para Suellen Alencar a regulamentação da prática assegura o direito a família se responsabilizar pela educação dos filhos. "A regulamentação representa apenas uma segurança para as famílias que praticam homeschooling poder continuar executando esse trabalho livremente. Acredito que o homeschooling não é para todos os pais, e a escola é muito bem vinda como esse apoio. Promover a regularidade pode dar segurança a aqueles pais que por muito tempo desejam praticar o homeschooling, e não o fazem pelo medo", expõe. 

Everton da Silva classifica a possível regulamentação como uma vitória para as novas gerações e deve despertar a atenção de mais pessoas para a prática. "A modalidade fora do Brasil já é uma realidade. Eu acredito que é uma conquista muito importante e as pessoas vão poder se aprofundar na questão, analisar melhor". 

Já a professora da UFPE argumenta que a regulamentação traz desvantagens. "Vai faltar aquele espaço que é primordial para as crianças, que é o espaço de socialização, as dinâmicas e as interações. Ela [escola] é um espaço de preparação para o mundo público, ela nem é a casa da criança nem o espaço propriamente público. A escola reflete as relações sociais e ela é um espaço social importantíssimo", expõe.

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