Gismonti: Nordeste é o guardião da miscigenação brasileira
Ícone da música brasileira se apresenta em Olinda, durante o Mimo, e conversou com o LeiaJá
Aos 66 anos, Egberto Gismonti é uma sumidade na música brasileira. Qualidades como o virtusismo, as pesquisas sonoras e experimentações, a simplicidade e a sensibilidade musical fizeram do multi-instrumentista um músico respeitado no mundo. A admiração ao seu talento rendeu muitos convites e possibilidades de gravar, criar trilhas sonoras para cinema e teatro, e espalhar suas notas por muitos ouvidos em vários países. São 68 discos, mais de 30 trilhas para filmes e peças teatrais, além de algumas músiocas clássicas do instrumental brasileiro, a exemplo de Dança das cabeças e Palhaço.
Íntimo do Mimo - evento no qual se apresentou em praticamente todas as edições - Gismonti conversou por telefone com o LeiaJá sobre sua relação o festival, a musicalidade nordestina, a importância da obra de Dom Helder Câmara e a importância do Nordeste para a identidade e a cultura brasileiras. Egberto Gismonti se apresenta no próximo sábado (6) na Igreja da Sé, em Olinda, acompanhado do violoncelista Jaques Morelenbaum, às 20h30.
Você tocou em praticamente todas as edições que o Mimo já realizou. De onde vem essa proximidade com o festival?
Da amizade que eu tenho pela Lu (Araújo, idealizadora do Mimo), que é de muitos e muitos anos. É alguém - à parte o fato de ser a produtora e a pessoa que é - com quem eu tenho uma enorme amizade. E como a ideia da Lu é muito abrangente, a favor do Brasil, da pedagogia de música, da possibilidade de música pra todo mundo ouvir, eu vou apoiar sempre. Por essa razão participei de quase todas as edições do Mimo, sempre com imensa alegria. Este ano eu estou muito feliz porque volto a Olinda, onde já estive tantas vezes, para fazer na Igreja da Sé uma apresentação de piano que vai ter um convidado, o Jaquinho (o violoncelista Jaques Morelenbaum), meu amigo, então vai ser uma coisa muito íntima e eu tenho a impressão que vai ser muito bonito. Por conta da Mimo, eu acabei descobrindo e aprendendo muito com os escritos e livros de Dom Helder Câmara, sempre faço visitações ao Centro Dom Helder Câmara, possibilitanto uma leitura muito intensa dos escritos dele, de forma que o Mimo não só me deu a alegria de ver mais um festival importante desses no Brasil, como também me fez encontrar coisas às quais o Brasil precisa ficar mais atento como Dom Helder, por exemplo. E por um acaso um dos maiores amigos que eu tenho mora no Recife, que é o Naná Vasconcelos. Eu tenho uma lembrança deste lugar que é uma maravilha na minha vida. Isso quer dizer que para mim ir ao Recife e a Olinda é sempre voltar para casa, uma casa que eu não tinha mas adotei.
Para além desta relação pessoal com o festival, como você localiza o Mimo no panorama dos festivais de música no Brasil, especialmente da música mais voltada à fruição?
O Mimo propõe músicas de uma forma absolutamente democrática, cabe de tudo. O princípio do Mimo já é pró o que nós brasileiros somos: miscigenados, formados por uma montoeira de raças e não paramos ainda de evoluir por conta disso. Acho que o Mimo é o grande festival que nós temos no Brasil, aquele que melhor nos apresenta quem somos. Por consequência, que liberdade devemos procurar através daquilo que nós somos. Como dizia Darcy Ribeiro, nós não temos medo de culturas estrangeiras porque nossas elas sempre foram. O Mimo é um pouco isso, é um festival que mistura alhos com bugalhos. Porque me diga que brasileiro não tem em sua raiz de família, do que seja, algum parente que não tenha vindo ou da África, ou da Europa, ou da Ásia, ou de qualquer outro lugar deste mundo afora. Nós somos misturados e o Mimo de certa forma acabou representando um passo lindo de reverência à miscigenação brasileira. A minha devoção ao Mimo está muito voltada a isso, o quanto ele é plural e corajoso.
A música nordestina tem presença marcante na sua obra. São muitas referências e inspirações relacionadas a essa musicalidade. Como você encontra esta sonoridade nordestina e como você se relaciona com os ritmos de Pernambuco?
Como eu já gravei disco demais, são 68 discos, a melhor resposta é o que eu já gravei. Eu me relaciono e demonstro isso tocando e através de tantos discos gravados. O Nordeste brasileiro é o grande guardião da miscigenação brasileira. De forma que é no Nordeste que não só a música brasileira recebe influências do Brasil inteiro, como é também no Nordeste que a língua brasileira se difere da língua portuguesa de Portugal, através dos repentistas e cantadores, que para não perder as rimas inventam palavras que os grandes poetas do Brasil todo e a Academia Brasileira de Letras admitem como padrão e verbetes da língua. Ou seja, nossa língua brasileira evolui por conta dos repentistas e isso tudo cabe no Nordeste, que é a grande referência da atitude e do ser miscigenado que nós somos. É lindo esse negócio. Pegue o frevo mais veloz, mais encrencado que você possa ouvir (cantarola uma melodia), e quando vai olhar isso vem da música barroca no século 17, filtrado pela música russa de Stravinsky, Béla Bartók, etc., e que chega no Nordeste e vira uma dança popular que enlouquece todo mundo. O Brasil é assim, o Nordeste é assim, e é por isso que somos quem somos, porque o Brasil sem Nordeste viraria sei lá o quê. Não é que a música nordestina me influencia, o que me influencia é Brennand fazendo as esculturas dele, é Ariano Suassuna escrevendo, é João Cabral de Melo Neto, isso é o que me influencia, é essa coragem que tem da contradição. O Nordeste me parece o grande espaço brasileiro que gosta de perguntas muito mais do que respostas, e isso me atrai desde sempre.
Há no Brasil um distanciamento do brasileiro comum desta cultura pujante, criativa, o Brasil real e o que o brasileiro ‘médio’ está ouvindo no seu rádio, no seu tocador de música, no rádio e na televisão. O que você acha ser necessário para romper a barreira desta industrialização sonora que padroniza tudo e fazer com que essa música criativa, inventiva, possa chegar ao brasileiro e ser valorizada?
O meu ponto de vista é muito mais otimista do que o seu. Para mostrá-lo, vou contar uma pequena história que eu acho que vai responder melhor: eu passei uma boa temporada em companhia de alguns índios do Alto e do Baixo Xingu, e durante muito tempo eu convivi com (o cacique) Raoni e com (o pajé) Sapaim. E curiosamente eu dizia para os sertanistas que lá estavam: ‘Eu tenho perguntado muitas vezes para Raoni e Sapaim sobre a natureza, o que é a natureza, e eles nunca me responderam’. Um destes sertanistas, o grande Olímpio (Serra), me deu uma resposta que eu uso agora e digo que é muito otimista: “Egberto, não adianta você perguntar a eles sobre a natureza, eles não vão ter nada pra dizer porque não gostam de falar deles próprios”. Isso transferido para o brasileiro médio que tem pouco acesso, eu diria que a maioria entende por osmose o cinema, a literatura, a música, a pintura brasileiras, se ele tem ou não mais acesso, independe dele porque o brasileiro médio não costuma participar de produções de eventos, ele simplesmente usa e desusa. Eu acho que muito mais do que pensar numa produção específica para o brasileiro médio, a gente devia pensar que nós todos merecemos. E por esta razão, se começarmos a valorizar as verdadeiras fontes - e uma delas é o Mimo - nós já estaremos num lucro danado. Eu sou muito positivista em relação a isso, até por que eu faço uma música que deveria ser na prática uma música que deveria ser impossível de ser consumida, e nesses meus 40 anos (de carreira) fiz sessenta e tantos discos, 30 filmes, 25 balés, trinta e tantos peças de teatro no mundo inteiro. Eu não posso acreditar que exista dificuldades, posso acreditar sim que nós brasileiros somos abundantes e cada um de nós tem que receber uma informação de que nós temos o direito de ser exatamente o que somos. Então vamos comemorar o Mimo, vamos para a rua dançar frevo para a festa ser completa.