Mestre Zé Negão, expressão viva e atuante da cultura

Mestre Zé Negão é expressão viva e atuante da cultura popular

por Paula Brasileiro sex, 09/08/2019 - 10:20
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens O Mestre Zé Negão tem 69 anos de resistência e cultura popular Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

A vida não era fácil no município de Goiana, Mata Norte de Pernambuco, quando José Manoel dos Santos nasceu, no ano de 1950. E continuou difícil enquanto o garoto crescia em meio ao trabalho pesado do corte da cana na Usina Maravilha. Para aliviar as agruras da existência, ele ia 'espiar' os cocos, maracatus e cirandas que aconteciam na região. Mal sabia ele que ali estava se formando um mestre Griô, hoje um dos mais importantes da cultura popular pernambucana e o único a levar adiante a tradição do coco de senzala, variação do ritmo oriunda dos negros escravizados. 

Foi vendo, ouvindo e observando, "de mutuca", como conta, que o mestre aprendeu sobre cultura popular. Naquele tempo, admirar era tudo quanto lhe cabia: "Porque os velhos, eles são fechados para os jovens. No lugar que tinha dois velhos conversando um jovem não chegava no meio não, só se ele chamasse. Eu ficava de mutuca, tudo eu me admirava, agora, não me envolvia não, porque o menino pra se envolver em qualquer coisa, só se um velho levasse", relembra. 

E foi através de alguém mais velho que Zé Negão subiu ao palco para cantar pela primeira vez. Sua Tia Armira o levou para uma festa em Ponta de Pedra e lá ele fez sua estreia, cantando seis cocos. Da plateia, veio uma reclamação misturada com conselho de um emissor um tanto duvidoso. Um homem que, segundo o mestre, estava visivelmente embriagado, desaprovou o repertório escolhido pelo coquista, feito com "coisas dos outros" e deixou o recado: "Se aprume, meu fio, você tem veneno". 

Zé Negão, então, se 'aprumou'. Mas até chegar ao patamar de mestre passou por muitos bocados. A princípio, para desenvolver sua própria arte: "Comecei a fazer meus coquinhos, mas mesmo assim era aquela dificuldade. Se você não tem um instrumento, um ponto de referência, aí tudo que vai fazer é dificuldade". Ele deixou sua cidade natal e veio para a capital, Recife, trabalhar na indústria. Ele passou 13 anos se dedicando ao trabalho na fábrica de tecido Cotonifício Capibaribe S.A. enquanto o fazer artístico ficou adormecido. Ele criou sua família, perdeu a visão por conta dos produtos químicos usados no então ofício (o mestre tem hoje apenas 10% do olho esquerdo), e quando deixou a fábrica retomou sua real vocação: “Voltei senão eu ia ficar louco”. 

Foi em meados da década de 1980 que Zé Negão deixou a indústria têxtil em direção  à mudança de vida. Primeiro no endereço: o mestre e sua família mudaram-se para Camaragibe em busca de novos ares que pudessem melhorar a saúde de um dos filhos. Lá ele começou a desenvolver diversos trabalhos em prol da comunidade. Ao lado de sua esposa, Mestra Fátima, construiu um posto de saúde, uma escola e, com o projeto Zé Negão, passou a ministrar aulas de  percussão, dança, corte e costura, entre outras atividades. 

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A dedicação à comunidade ganhou outro tom em 2006, quando passou a integrar o Laboratório de Intervenção Artística (Laia), como coordenador e articulador comunitário. Em 2014, fundou em sua própria casa, localizada no bairro de João Paulo II, periferia de Camaragibe, o Espaço Museal Canto das Memórias Mestre Zé Negão, um lugar dedicado à difusão e preservação de seus saberes e que guarda todo o seu acervo, com instrumentos, livros e fotografias. 

O trabalho do mestre é mantido com o dinheiro que consegue arrecadar com cachês, projetos e prêmios como os estaduais Ariano Suassuna e Ayrton de Almeida, e o nacional Culturas Populares, recebidos em 2018. No entanto, é o instinto de resistência que o mantém firme no enfrentamento às dificuldades para continuar na ativa: "Hoje existe uma situação financeira para o artista no Brasil. Quem trabalha com cultura no Brasil toma ‘nó de cana de boca de jumento’ pra poder sobreviver".

No entanto, além da vivacidade e disposição, admiráveis para um senhor de 69 anos, o mestre encontra nos seus pupilos a esperança para o futuro. Ele é acompanhado pelos músicos da Laia, dois deles, Marcone e Patrícia, olham bem de perto pelo o mestre, desde o cuidado em lembrá-lo de tomar água à parte de produção, até o pedido de 'bença' ao encontrá-lo. Ele retribui dividindo o que tem de mais valioso, sua experiência na cultura e na vida: "O meu desejo é que eles tenham muitos anos de vida. Eu posso ir até amanhã, eles vão dar seguimento, já que eu não consegui fazer do meu sangue".

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Sambada da Laia

Também é criação do Mestre Zé Negão a Sambada da Laia, evento que reúne admiradores do coco em Camaragibe há 13 anos. "Essa sambada foi uma loucura que a gente fez", brinca o mestre ao relembrar da primeira edição da festa que aconteceu para marcar a despedida de solteiro de um conhecido.

Deu tão certo que a sambada passou a acontecer uma vez por mês reunindo mestres e mestras do coco e um público cada vez maior. Atualmente, são realizadas seis festas por ano em um novo modelo que procura celebrar os grandes coquistas pernambucanos em seus meses de aniversários.

Em agosto, é a vez de celebrar o próprio Mestre Zé Negão. Filho do "mês do vento", que no próximo sábado (10) comemora seus 69 anos ao lado dos amigos, da esposa, a Mestra Fátima, e de outros mestres como Galo Preto, Juarez, Ulisses e os grupos Chinelo no Chão e Coco Kpoerê, entre outros convidados.

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