Charles, um sobrevivente de ataque de tubarão no Recife

O formando em Direito perdeu as duas mãos, em 1999, enquanto surfava na Praia de Boa Viagem. Sua história inspira outros sobreviventes que buscam o recomeço

por Taciana Carvalho dom, 10/06/2018 - 10:34
Júlio Gomes/LeiaJáImagens Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Avistei Charles Heitor Barbosa ainda distante, vindo ao meu encontro com passos lentos no calçadão da Praia de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, em frente ao Edifício Acaiaca, um dos principais pontos de encontro dos banhistas que frequentam a região. Foi exatamente nesse local, no dia 1 de maio de 1999, que ele aos 21 anos foi atacado por um tubarão enquanto surfava. Durante entrevista ao LeiaJa.com, Charles falou da sua história de superação, declarou com convicção e tristeza que mais vítimas vão surgir por omissão do Estado e ainda disse acreditar que pode existir um equilíbrio entre o ser humano e o meio ambiente.  

Ele contou com detalhes o que aconteceu. Era por volta das 14h de um sábado. O surfista não imaginava que a última onda que pretendia pegar naquela tarde mudaria sua vida. Charles teria que aprender a recomeçar a vida ao perder as duas mãos na tentativa de se defender do animal. Expôs que, no dia citado, tinha ido à praia pela manhã, não com o intuito de surfar, o que era permitido à época, e, sim, para conversar com os colegas. “Fiquei com o pessoal na areia olhando as ondas”, recordou. No entanto, posteriormente, foi o convite do amigo “em pegar uma onda” que o fez entrar no mar. 

“Foi nessa hora que aconteceu. Eu estava sentado esperando uma onda, foi quando eu tive o pressentimento que alguma coisa estava subindo em minha direção. Vi a água muito trêmula como se alguma coisa grande estivesse vindo. Aí quando eu pensei que era um tubarão, já tinha sido tarde, não deu tempo. Eu, na tentativa de sair do ataque, tive que reagir, aí foi quando ele pegou as duas mãos, foi muito rápido, mas eu lutei para escapar do ataque, mas ali mesmo já sabia que tinha perdido as mãos”, contou, sentado na areia com o olhar atento ao mar como se recordasse os mínimos detalhes. 

Seis dias depois do ataque, tamanha a repercussão gerada, um decreto passou a proibir a prática do esporte na área e placas sobre o cuidado com tubarão passaram a ser colocadas. Antes, o aviso era só pedindo aos banhistas não ultrapassar os limites dos arrecifes. 

Embed:

Uma nova chance para a vida

A amputação das duas mãos aconteceu assim que Charles chegou ao Hospital da Restauração, no Recife. Como o tubarão também atacou a perna, os médicos ficaram preocupados com o ferimento e o risco de uma infecção, mas tudo ocorreu bem. Foram mais de dois meses internados até ser transferido para um hospital particular, o SOS Mão. 

Os médicos chegaram a cogitar um implante de mão humana. Charles seria a primeira pessoa no Brasil e a 16º no mundo a fazer a cirurgia que, naquele tempo, era inédita, mas acabou recusando pelo risco de rejeição e por causa da medicação que teria que tomar pelo resto da vida. 

O surfista teria que recomeçar, apesar de se sentir perdido. “Voltei para a casa e fiquei pensando como seria a minha vida, porque querendo ou não eu fiquei dependendo dos outros para uma série de coisas até as básicas, mas eu não aceitava porque sempre trabalhei desde pequeno, sempre procurei as coisas por mim mesmo e fiquei pensando bastante. Eu acho que a vida continua, eu não parei, eu dei um tempo quando fui atacado, mas eu não parei e comecei a correr atrás das coisas”, afirmou. 

E a vida seguiu. Entre tantas iniciativas, Charles abriu um depósito de água e gás, trabalhou em empresas e, há cerca de 10 anos, fundou a Associação das Vítimas de Tubarão (Avituba), com o intuito de ajudar os sobreviventes desde o apoio psicológico até jurídico. Neste ano, Charles termina o curso de direito, mas já pensa ir além: uma nova graduação, sendo psicologia ou engenharia ambiental. Também está trabalhando em um projeto de caráter informativo e preventivo sobre ataques de tubarão no litoral do Recife, mas precisa de patrocinador. “É um projeto sério, que vai dar certo, e que envolve toda a população do Recife e o turismo”, disse, sem revelar detalhes. 

Charles contou que, após o ocorrido, seus amigos chegaram a se juntar na tentativa de comprar uma prótese, mas pelo valor foi inviável e acabou não dando certo. No entanto, a ideia continuou em sua cabeça. Ele começou a fazer muitas pesquisas sobre a prótese e percebeu que seria a melhor opção para o seu caso. 

Após impetrar uma ação judicial, no qual ganhou em todas as instâncias, viria mais uma vitória com uma liminar em 2012: Charles foi a primeira pessoa do Nordeste, vítima de um ataque de tubarão, a conseguir uma prótese escocesa e biônica, que capta os comandos do cérebro, o que exige treinamento. O valor da moderna prótese é "salgado": R$ 650 mil reais. “Tem que ter muito treino, não é uma coisa muito fácil como pensei que era só colocar e encaixar”, contou. 

Um problema a ser enfrentado para continuar utilizando a prótese é o valor da manutenção, que requer investimento. “A garantia que o Estado deu foi de um ano e mais dois anos de garantia estendida, mas acabou e o custo da manutenção é muito caro, até porque precisa ir para Porto Alegre e ficar hospedado duas semanas para ver qual o problema que a prótese está apresentando. Entrei com um recurso, mas não sei qual vai ser o entendimento do magistrado”, explicou. 

Uma tragédia anunciada

Em um momento de críticas e desabafo, Charles falou que o Estado precisa parar de ser omisso. Para ele, a tendência é uma tragédia anunciada. Garantiu que, desde 1999, quando sobreviveu ao ataque, vem alertando para que casos iguais não voltassem a acontecer, mas sem êxito. “Se fosse para o Estado tomar algum tipo de posição, alguma medida, já poderia ter tomado. Infelizmente, vão ter novos ataques e agora é só esperar para ver qual vai ser a próxima vítima. Sinceramente, a culpa também é do Estado”, enfatizou com convicção. 

“Eu não sei qual vai ser a posição do Estado depois desse ataque desse menino que perdeu a vida de forma precoce e que eu tanto lamento, se eles vão investir, se vão colocar boias, telas ou redes, mas eu acho que dificilmente vão tomar alguma providência. A única providência que eu vi que o Estado ia tomar é que os salva-vidas iriam ficar uma hora a mais nas praias. Então, isso quer que é uma coisa que não tem um prazo para ter solução”, disse. 

Após registrar dois ataques de tubarão em menos de dois meses, o Governo de Pernambuco estuda fazer interdições em praias. Proposta por pesquisadores, a medida prevê maior controle de acesso de banhistas e bloqueios temporários em trechos da orla nas horas em que a probabilidade de ataques é maior, como em fase de maré alta e água turva ou em áreas de mar aberto. O Ministério Público Estadual (MP-PE) também prepara ação para obrigar o governo a adotar uma série de recomendações de segurança.

Na opinião de Charles Nascimento, fechar a praia não é uma opção. Ele acredita que é necessário um equilíbrio entre o ser humano e o meio ambiente. “Não adianta você querer só ver o lado dos tubarões porque é o habitat deles, tudo bem, respeito que é o habitat natural do tubarão, mas a gente não pode proibir o ser humano de pelo menos tomar um banho, se for olhar só por esse lado, então vamos proibir todo mundo de vir à praia, eu penso em um equilíbrio. Dá para o ser humano e o animal conviverem”. 

Ele falou que o Estado pode investir em alguma tecnologia a ser implantada, citando uma que ele diz ser fabricada no Recife: uma boia eletromagnética que impede a aproximação do tubarão. “A boia é, com certeza, o método melhor para ser implantando na Costa”. 

Apesar de não condenar quem entra no mar, ele alerta para que todos tenham o máximo de cuidado na hora de tomar banho, evitando o mar aberto e escolher locais com arrecifes. “Tenham muito cuidad,o porque está perigoso demais tomar banho na praia, tem que obedecer as placas, observar as sinalizações e cuidado ao entrar na água".

Ver Charles no mar de Boa Viagem, atualmente, é coisa rara. Ainda praticante do surf, ele se desloca até a Praia de Maracaípe, no município de Ipojuca, Litoral Sul de Pernambuco. “Entro mais quando o mar está muito seco, dou uma volta por cima dos arrecifes, dou um mergulho na área onde tem arrecifes, mas para tomar banho aleatoriamente do nada eu não me arrisco não”, finalizou.  

Praia de Boa Viagem

A praia de Boa Viagem é um dos cenários mais procurados, principalmente, nos finais de semana por pessoas de vários bairros do Recife. Quem olha o verde do mar atrelado a um local de aparente calmaria, por vezes, é levado a um banho. Muitos esquecem o que pode existir no mar atraído pela bela paisagem. 

Em frente ao Acaiaca, por exemplo, é comum passar despercebido por duas placas grandes. A primeira delas é clara ao avisa sobre o perigo: “Área sujeita a ataque de tubarão, evite o banho de mar”. A placa intimadora ressalta para que seja evitado o banho em áreas de mar aberto, no período de maré alta, ao amanhecer e ao cair da tarde, na foz dos rios, em áreas profundas, turvas, caso você esteha sozinho, alcoolizado, com sangramento ou com objetos brilhantes. 

Chama a atenção, desta vez, no dia da entrevista com Charles, um fat em uma grande parte da extensão da orla: nenhum banhista dentro do mar, o que confirmava que muitos ainda estavam assustados com a morte do jovem de 18 anos, após ter sido mordido por um tubarão na Praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, no dia 3 de junho. Em um raro momento, um cidadão com uma criança arriscou a dar um raso mergulho.

A segunda placa, ao lado da primeira, estava tapada por guarda-sóis, mas ainda assim era possível ver a informação de que era proibida a prática de surf e esportes náuticos, além de destavar características do mar: “águas rasas, correntes fortes e objetos submersos”. Não para por aí. A placa ainda pede para que seja mantida supervisão constante sobre crianças, bem como é importante se manter com água ao nível da cintura. As frases “Não superestime sua capacidade de nadar e não mergulhe de cabeça” finalizam a série de recados. 

COMENTÁRIOS dos leitores