Aborto: direito da mulher ou crime contra a vida?
Muitos dos que são contra a descriminalização apontam que nenhum argumento pode justificar o aborto. Já os que defendem a medida, apontam que o aborto definido como crime viola uma série de direitos fundamentais das mulheres
Previsto no Código Penal como crime contra a vida humana desde 1984, o aborto induzido é considerado crime no Brasil. A legislação prevê pena de detenção de um a três anos para a gestante que provoca o aborto e reclusão de um a quatro anos para quem faz o aborto com o consentimento da mulher grávida. A prática só não é crime quando representa risco de vida à gestante e quando decorre de estupro.
Mas a resolução gera controvérsia, dúvidas e muitos debates. Nas últimas semanas, com as audiências públicas convocadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir descriminalização da interrupção da gravidez em até 12 semanas de gestação, o tema voltou a gerar polêmica. Muitos dos que são contra a descriminalização apontam que nenhum argumento pode justificar o aborto. Já os que defendem a medida, apontam que o aborto definido como crime viola uma série de direitos fundamentais das mulheres.
A Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, realizada pelo Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília, aponta que 20% das mulheres terão feito ao menos um aborto ilegal ao longo da vida - o que pode significar que uma em cada cinco mulheres aos 40 terá passado pelo procedimento abortivo ao menos uma vez. Antropóloga, professora do Departamento de Direito da Universidade de Brasília e coordenadora da ONG Anis - Instituto de Bioética, a pesquisadora Débora Diniz defende a descriminalização do aborto e tem sofrido retaliações por conta disso. “O ódio não será maior que a democracia, tenho segurança disso”, afirma.
Para a pesquisadora, a criminalização é inconstitucional. “Viola uma série de direitos fundamentais das mulheres, como a vida digna, a cidadania, a saúde, a igualdade, a viver livre de tortura. Além disso, a criminalização não é eficaz para diminuir o número de abortos, o que leva a concluir que sequer é um meio legítimo a atingir aquilo que se pretende. Não protege a vida pré-natal e maltrata gravemente as mulheres”, explica. Na contramão, sacerdotes, arcebispos e bispos diocesanos de várias regiões do Brasil emitiram uma carta defendendo que o aborto fere o valor da vida humana.
"Não existem quaisquer argumentos – sejam jurídicos, políticos, econômicos, médicos, sociológicos, etc – que justifiquem a descriminalização do aborto. Pretendem convencer que este crime hediondo, sempre praticado com violência e tortura, e que, em 100% das vezes, mata inocentes e indefesos em procedimentos sempre inseguros, insalubres e letais para tais vítimas, pode ser transmutado em algo 'seguro para saúde' das mulheres que o praticam", diz o texto. Débora discorda. “Se queremos proteger a vida, precisamos acolher e atender às necessidades de saúde das mulheres, e assim inclusive diminuir as taxas de aborto no médio e longo prazo”, afirma a pesquisadora.
Justiça, direitos e impasses
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 pede ao STF a legalização do aborto. O projeto foi enviado ao supremo em março de 2017 pelo Anis e pelo PSOL. As audiências aconteceram no dias 3 e 6 de agosto deste ano e diversos atores sociais mostraram diferentes pontos de vista sobre o tema. Apesar disso, uma decisão de fato sobre a descriminalização pode levar anos para acontecer. “Se descriminalizado, nenhuma mulher será obrigada a abortar, apenas se garantirá que toda e qualquer mulher seja amparada em suas decisões reprodutivas, não ameaçada pelo Estado. A criminalização, em lugar nenhum do mundo, impede que as mulheres abortem, apenas as empurra à clandestinidade e aos graves efeitos em sua vida e saúde”, reflete Débora Diniz.
Já os sacerdotes, arcebispos e bispos diocesanos veem de outra maneira. “O valor da vida humana em todas as suas fases naturais - da concepção ao final- não é algo sujeito a questões quantitativas - relacionadas a índices elevados em pesquisas de opinião, votos de uma maioria ou muitos argumentos jurídicos-, e sim uma qualidade intrínseca, própria da natureza deste Bem supremo, que nada, em tempo algum, pode mudar”, argumentam. “O tema envolve paixões morais que muitas vezes desviam o debate daquilo que realmente deveria ser levado em consideração - o que a lei de fato provoca. Sem dúvida há importantes dissensos morais no tema, que devem ser acomodados em uma perspectiva democrática do dissenso razoável”, contrapõe a pesquisadora.
Com o ponto de vista contrário à descriminalização do aborto e às audiências realizadas pelo STF, a Igreja pediu o crescimento de grupos que "promovam a conscientização de tais processos de manipulação". "Dizer que a criminalização do aborto não é eficaz para evitar que as mulheres matem seus filhos ainda dentro de seus ventres não é argumento para chancelar a morte, nem para que o Direito Penal deixe de proteger o maior bem da vida, que é a vida", diz o texto.
Débora Diniz argumenta que a não criminalização da interrupção da gravidez vai, justamente, proteger a vida. “A descriminalização garantirá que mulheres não sejam presas ou mortas por não poderem, naquele momento, seguir adiante com uma gravidez. Trata-se apenas disso. Mulheres serão acolhidas em serviços de saúde e será possível entender melhor onde a política de prevenção falhou, se essa mulher sofre violência, se não tem acesso aos métodos contraceptivos, se não consegue negociá-los com seu parceiro, se os utiliza incorretamente. Assim será possível não só evitar que essa mulher faça um novo aborto, mas também corrigir a política para garantir que outras não precisem do primeiro. É uma medida de proteção à saúde e à vida”, explica.