O passado presente e a dor do afastamento pela hanseníase

Série de reportagens conta histórias de famílias partidas, afastadas do convívio muitas vezes no dia do parto. A falta de um abraço de despedida e reencontros que nunca aconteceram

por Eduarda Esteves sex, 31/05/2019 - 17:20

Quatro crianças internas no Asilo-Colônia Aimorés em Bauru, São Paulo. Foto: Arquivo Pessoal/Jaime Prado

A série de reportagens ‘O passado presente e a dor do afastamento pela hanseníase', produzida pelo LeiaJá, conta histórias de famílias partidas, afastadas do convívio muitas vezes no dia do parto. Danos irreversíveis, sofrimento do passado que ainda abala o presente, a falta de um abraço de despedida e de reencontros que nunca aconteceram.

No começo do século XX, a então chamada ‘lepra’ passou a integrar a lista das “doenças de notificação compulsória”. Em 1920, com o surgimento do Departamento Nacional de Saúde Pública, criou-se uma legislação específica que determinou a internação compulsória de todas as pessoas diagnosticadas, em consonância com o cenário internacional.

Com os pais e mães internados, muitas crianças foram afastadas do convívio familiar.  De acordo com uma lei, os enfermos tinham de viver isolados nos chamados hospitais colônias e os filhos desses pacientes eram encaminhados aos educandários, preventórios ou a algum familiar que estivesse disposto a cuidar da criança.

Não há dados oficiais sobre o número de crianças que foram afastadas de seus pais devido à hanseníase. O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) estima que, em 60 anos, 40 mil filhos tenham sido separados dos pais em todo o Brasil.

Crianças afastadas dos pais. Foto: Jaime Prado

Adolescentes no Educandário Santa Terezinha. Foto: Jaime Prado

Devido à precariedade dos registros, aos longos períodos de internação e às constantes transferências entre instituições de abrigo, muitas crianças nunca mais encontraram os pais. O Morhan também calcula que uma média de 14 mil crianças, hoje com mais de 50 anos, estejam vivas.

O repórter cinematográfico Jaime Prado, 66, possui um dos maiores arquivos de fotografia dos hospitais-colônia de São Paulo. Ajudou a unir novamente ao menos sete famílias, que se reencontraram muitos anos depois. “Foi assim, 46, 48, 54, 56, 59, 64 e 73 anos de separação de famílias que consegui unir novamente com as minhas fotos sem usar nenhum dinheiro público, apenas doação de amigos e o meu trabalho voluntário”, relatou.

Encontros e reencontros marcaram a vida de Jaime. O último deles foi através de uma publicação no Facebook. “Um homem me ligou e disse que se viu em uma das fotografias que publiquei. Ele saiu da colônia bebezinho e foi pro Educandário Santa Terezinha. Navegando pela internet, observou a foto de uma criança em um cesto e descobriu meu número. Me ligou chorando e dizendo que era ele”, disse Jaime, ao se emocionar pela sua trajetória na causa da hanseníase.

Jaime relembra que conheceu pela primeira vez o Asilo Colônia Aimorés, atual Instituto Lauro Souza Lima, em Bauru, São Paulo, após entrar clandestinamente no local para conhecer um outro mundo, em 1967. Sabia da história de primos que tinham sido arrancados dos pais por causa do internamento. "Eu vinha da roça, semianalfabeto e com pouco dinheiro. Tinha três perguntas sem respostas. Queria entender os motivos de separarem os filhos, porque os isolavam e em que contexto isso se dava. Era o mundo dos excluídos da sociedade. Eles carregavam o preconceito e o estigma de uma doença dos tempos bíblicos", explicou o fotógrafo.

Em 1976 conseguiu um emprego lá, como operador de caldeira, e foi conhecendo um pouco mais da realidade dos enfermos, criando vínculos e colecionando histórias. Decidiu montar um estúdio de comunicação por ter mais aproximação com a área. Conviveu por anos com os hansenianos e viu mães e pais morrerem sem ao menos um abraço dos filhos. Cartas com pedidos de informações, mensagens-viagens e muita solidariedade resumem o trabalho de Jaime, que apesar de hoje ser aposentado, ainda continua com seu trabalho ajudando muitas famílias a se encontrarem. “Meu medo é que essa história se acabe quando todos morrerem e ninguém saiba que esse crime aconteceu no Brasil, por isso converso sobre o assunto e divulgo”, revelou.

Hanseníase, uma das enfermidades mais estigmatizadas da história

Arte: João de Lima

Arte: João de Lima 

Desde 1976, o Ministério da Saúde substituiu o termo ‘lepra’ por hanseníase nos atendimentos de serviços de saúde e nas campanhas de divulgação sobre a doença (televisão, rádio e distribuição de materiais educativos), visando minimizar o preconceito e as atitudes de discriminação. A regra da segregação também foi revogada no mesmo ano, mas o isolamento continuou ocorrendo por pelo menos mais dez anos.

Com a aprovação da lei nº 11.520, em setembro de 2007, as pessoas que foram atingidas pela hanseníase e compulsoriamente internadas em colônias hospitalares no Brasil podem solicitar uma pensão mensal do Estado. Atualmente, o Morhan luta para que o governo federal também pague uma indenização pela separação forçada da família e pelos traumas sofridos na infância. Esse dinheiro seria de direitos dos filhos, por terem sido tão afetados como os pais.

Neste especial, o LeiaJá retrata histórias de filhos e pais que por anos tiveram suas memórias presas, por medo de falar do passado e serem ainda mais estigmatizados.

Ao mergulhar nesse universo pouco conhecido, encontramos histórias de abusos sexuais, espancamento e tortura nos orfanatos, a dor da distância da família e pessoas que não tiveram tempo de conhecer quem lhes deu à luz. Um capítulo triste nas páginas da história do Brasil.

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"





"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe





"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"





"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso







"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"



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