Trabalhadoras domésticas: a linha de frente invisível

Série de reportagens do LeiaJá analisa os impactos sofridos pela categoria no período de crise sanitária oriunda da Covid-19, da perda em massa de emprego à piora das condições de trabalho

por Marília Parente qui, 17/12/2020 - 08:00

Dezesseis de março de 2020. Com hipertensão, obesidade, diabetes e infecção urinária, a empregada doméstica Cleonice Gonçalves, aos 63 anos, não teve direito a folga nem quando seus patrões regressaram da Itália com sintomas de Covid-19. Pela última vez, ela repetiu o único caminho que a pobreza lhe permitira nos últimos dez anos: os 120 km que separavam sua casa, na pequena Miguel Pereira, do bairro do Leblon, que ostenta o metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro, cruzados em dois ônibus e um trem. Daquela vez, contudo, o esforço para comparecer ao trabalho seria inútil. Diante de uma persistente falta de ar, Cleonice precisou voltar para casa às pressas. Um dia depois, ela se tornaria a primeira brasileira a morrer de Covid-19, em um hospital público de sua cidade. O caso escancarou a maneira como a pandemia da doença agudizou as vulnerabilidades das trabalhadoras domésticas no Brasil. Em uma série de reportagens, o LeiaJá analisa os impactos sofridos pela categoria no período de crise sanitária, da perda em massa de emprego à piora das condições de trabalho.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), exemplificam o impacto da pandemia do novo coronavírus para a categoria. Comparando os números do segundo trimestre de 2019 com aqueles que correspondem ao mesmo período de 2020, quando os efeitos da crise começaram a ser sentidos no Brasil, é possível observar que o Brasil perdeu 1,54 milhão de postos de trabalho doméstico, o equivalente a 24,63% do total do ano passado. Se antes o número de vagas ocupadas era de 6.254.000, depois passou a ser de 4.714.000.

No segundo trimestre deste ano, o Brasil perdeu 1,54 milhão de postos de trabalho doméstico, na comparação com o mesmo período de 2019. (Júlio Gomes/LeiaJá)

Mesmo na comparação com o primeiro trimestre, os meses de abril, maio e junho de 2020, totalizaram 1.257.000 (21,05%) empregos domésticos perdidos. Apenas no Estado de Pernambuco, por exemplo, que responde por 3,22% das trabalhadoras domésticas do Brasil (antes da pandemia, a porcentagem era de 3,69%), a comparação relativa ao segundo trimestre de 2019 com o de 2020 revela a perda de 26,21% dos postos de trabalho, o que corresponde a 54 mil trabalhadores desempregados.

O fundador e presidente da empresa Doméstica Legal e da ONG Doméstica Legal, Mario Avelino, destaca que o emprego doméstico é mais vulnerável ao desemprego porque está na ponta da linha de produção. “Foram mais de 700 mil empresas fechadas e outras 900 mil paralisadas, algumas até agora. Se sou funcionário de uma empresa e perco meu emprego, minha primeira providência é dispensar a empregada doméstica. As pessoas perderam renda e precisaram cortar custos”, comenta.

História de lutas

De acordo com o estudo "Os desafios do passado no Trabalho Doméstico do Século XXI", publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no ano de 2018, 63% dos brasileiros que exerciam o ofício no Brasil eram mulheres negras e apenas 1% dos postos de trabalho na área são ocupados por homens.

A socióloga e fundadora do SOS Corpo, Betânia Ávila, destaca que os recortes de gênero e raça da profissão denunciam sua origem, ligada à escravidão e à divisão sexual do trabalho, que delega às mulheres a sobrecarga de atividades ligadas ao lar. “É uma função cheia de marcas do Brasil Colônia e de sua violência, da qual somos tributários. Desde as trabalhadoras escravas na casa dos patrões, violentadas, estupradas e engravidadas, um processo que faz parte da formação social brasileira. O período de pandemia e confinamento pelo qual estamos passando, agudiza tudo isso e cria, inclusive, novas formas de perversidade”, coloca.

Em 1936, foi fundada a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do Brasil, em Santos, no interior de São Paulo. (Acervo/Fenatrad)

Tão antigas quanto as opressões sofridas pelas trabalhadoras domésticas são as lutas por elas encampadas. Ainda em 1936, a sindicalista e militante negra Laudelina de Campos Melo fundou a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do Brasil, em Santos, no litoral de São Paulo. A instituição chegou a ser fechada pelo Estado Novo, voltando a funcionar em 1946. A professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Elisabete Pinto chama atenção para o fato de que, àquela época, Laudelina já discutia feminismo, ainda que não se intitulasse feminista. “Ela conseguia, de sua forma, fazer a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Quando se fala de empregadas domésticas, mulheres negras e brancas, empregadas e patroas, estamos falando de uma relação de gênero, que expressa a desigualdade entre as mulheres. Ela conseguiu perceber isso”, explica.

Filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Laudelina também se tornaria responsável pelo surgimento do sindicato das domésticas de Campinas, em 1961, o que a solidificou como uma referência nacional na militância pelos direitos dessas trabalhadoras e figura central na conquista dos direitos à Carteira de Trabalho, às férias anuais remuneradas de 20 dias e à Previdência Social, através da Lei n 5.859 de 1972, em plena ditadura militar, que já eram usufruídos por outras categorias desde os anos 1930. As conquistas, contudo, só foram asseguradas pela Constituição de 1988, que, por um detalhe, manteve a segregação jurídica entre domésticas e demais trabalhadores.

Procuradora do MPT Débora Tito lembra que constituição de 1988 exclui as trabalhadoras domésticas em seu parágrafo único (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

“A gente tem uma constituição estudada no mundo todo, considerada uma constituição cidadã, mas que em seu artigo sétimo elenca uma série de dispositivos dos quais exclui as trabalhadoras domésticas, no seu parágrafo único”, comenta a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco Débora Tito.

Assim, a constituição concedeu à categoria repouso semanal remunerado (preferencialmente aos domingos), décimo terceiro salário, salário mínimo, aviso prévio e licença para gestantes, mas deixava de fora direitos como seguro-desemprego, remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), jornada de trabalho máxima de oito horas e seguro contra acidentes de trabalho. Essas últimas conquistas só foram alcançadas pela categoria com a aprovação da PEC 66/2012, conhecida como PEC das Domésticas, que daria, por fim, origem à Lei Complementar 150/2015.

Luísa Batista, presidente da Fenatrad, pontua que a Lei Complementar 150 não trouxe a tão sonhada igualdade para a categoria. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

Luísa Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), pontua, contudo, que a luta pelos direitos da categoria está longe de acabar. “A gente sabe que a Lei Complementar 150 não trouxe a tão sonhada igualdade. Para outras categorias, o Seguro Desemprego é concedido em cinco parcelas no valor que o trabalhador teria direito. No nosso caso, a gente faz rescisão de contrato, mas a trabalhadora só tem direito a três parcelas no valor de um salário mínimo”, exemplifica.

Vulnerabilidades

Em junho de 2020, o Ipea e a ONU Mulheres publicaram uma nota técnica a respeito das "Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil". O texto destaca que, além dos recortes raciais e de gênero, a categoria é marcada pela precariedade trabalhista. Os dados do primeiro trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2020 mostram que apenas 28% dos(as) trabalhadores(as) domésticos(as) do País possuíam carteira de trabalho assinada. Como em 1995, essa porcentagem era de 18%, é possível afirmar que a formalização da categoria cresceu apenas 10 pontos percentuais em 25 anos.

De acordo com a especialista em políticas públicas e gestão governamental lotada na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais da Ipea, Carolina Torkaski, que assinou a nota  técnica ao lado de Luana Pinheiro e Marcia Vasconcelos, a desproteção social da categoria é primeira de três vulnerabilidades específicas da categoria mapeadas durante a pandemia do novo coronavírus. “Há inclusive um movimento de redução da quantidade de mensalistas e aumento das diaristas, que tem que buscar essa proteção social individualmente. Delas, 9% possuem carteira assinada e 24% contribuem com a previdência. O que esses números nos dizem é que, durante a pandemia, apenas nove em cada 100 domésticas tiveram acesso ao Seguro Desemprego e apenas 24 em cada 100 diaristas têm acesso ao auxílio doença por causa do risco de contaminação pela Covid-19. São mais expostas à contaminação e têm menos proteção, seja no campo do emprego, seja no campo do auxílio doença”, explica.

Torkaski lembra que mesmo as mensalistas, as quais correspondem a 56,5% das trabalhadoras domésticas, só têm carteira de trabalho assinada em 43% dos casos. “Ou seja, mulheres que trabalham três ou mais dias no mesmo domicílio e não possuem CLT. Isso quer dizer que essas trabalhadoras convivem, no período da Covid-19, com medo e incerteza: ou elas correm o risco de contaminação ou perdem o emprego. É uma escolha muito dura”, reforça.

Um segundo tipo de vulnerabilidade está associado à própria natureza do trabalho realizado. “É um ofício que se dá dentro de domicílio, as domésticas, muitas vezes, manipulam corpos ou fluidos corporais que são dos empregadores, então o risco de contaminação é alto. Além disso, há uma sobrecarga das tarefas de cuidados dentro das casas das pessoas, já que muitos serviços não voltaram, como escolas e creches. Por fim, não existe fiscalização no local de trabalho, nas residências, verificando a existência de abusos”, completa Torkaski.

Por fim, o Ipea pontua o aumento da violação sistemática de direitos humanos durante a crise sanitária. “A Fenatrad, os sindicatos e a imprensa têm mostrado relatos de trabalhadoras que enfrentam jornadas exaustivas, acúmulo de funções e até restrições de liberdade e mobilidade. Com os hospitais sobrecarregados, questões menos graves de saúde estão sendo tratadas em casa, então a casa das pessoas se tornou uma linha de frente, constituída pelas domésticas, no enfrentamento da pandemia”, conclui Torkaski.

Recomendações

Durante a pandemia, MPT, Ipea e ONU Mulheres elencaram um conjunto de recomendações para proteger as trabalhadoras domésticas durante a pandemia do novo coronavírus. Confira as recomendações: 

1- Maior envolvimento dos homens no trabalho reprodutivo;

2- Quarentena remunerada para as domésticas;

3- Empregadores devem fornecer EPI's, como máscara, luvas e álcool em gel 70%, bem como arcar com os custos do deslocamento para o local de trabalho, utilizando outros meio “que não o transporte coletivo”;

4- Empregadores devem garantir a dispensa das trabalhadoras em caso de suspeita ou confirmação de covid-19;

5- Com base nas manifestações da Fenatrad e no entendimento da Procuradoria-Geral da República, recomenda-se que os governos estaduais revoguem os decretos e as leis que instituem a totalidade do trabalho doméstico como uma atividade essencial;

6- Auxílio emergencial de R$ 600 pelo período que durar a pandemia;

7- Prioridade às domésticas na testagem para a covid-19;

8-Discutir medidas para tratar de eventuais transtornos mentais relacionados ao aumento da ansiedade e quadros depressivos, criados tanto pela exposição da categoria e de seus familiares ao vírus quanto pela perda de renda;

9- Retomar a discussão sobre os incentivos à formalização do trabalho doméstico remunerado. A formalização viabiliza o acesso ao seguro-desemprego e a outros benefícios conectados com as políticas de proteção social e alivia o efeito negativo ocasionado por crises socioeconômicas.

Na próxima quinta-feira (24), o LeiaJá dará continuidade à série de reportagens. A segunda matéria retrata o drama de uma trabalhadora desempregada.

Domésticas: a linha de frente invisível

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