Adoção em PE: Um processo judicial, psicológico e afetivo

Na semana em que é comemorado o Dia Nacional da Adoção, o LeiaJá convidou especialistas para falarem sobre os desafios do Judiciário e das famílias que buscam a realização de um sonho

por Kauana Portugal qua, 26/05/2021 - 09:24

A semana do Dia Nacional da Adoção, celebrado em 25 de maio, faz um chamado à reflexão e ao combate ao preconceito sobre o ato de adotar. A data, que foi instituída em 2002, busca ampliar o debate sobre o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar. De acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, existem 4.260 crianças e adolescentes disponíveis para a adoção no país, enquanto outras 32.863 pessoas aguardam o dia em que serão considerados seus tutores legais, ou melhor: pais e mães.

Mesmo em Pernambuco, estado que ocupou a sexta colocação entre as unidades federativas com maior número de crianças e adolescentes adotados em 2020, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os desafios ainda são muitos. A idade das crianças, por exemplo, permanece se estabelecendo como um gargalo nos processos de adoção.

Quando a idade torna-se um obstáculo

Replicando um cenário que se repete nacionalmente, o estado tem 148 inscritos para serem adotados, destes, 69,5% têm mais de 9 anos, o que equivale a 103 meninos e meninas. No entanto, só 9,9%, ou seja, 67 dos 970 inseridos no Sistema Nacional de Adoção (SNA), aceitariam adotar crianças e adolescentes desta faixa etária. Segundo a juíza e secretária executiva da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco (CEJA-PE), Hélia Viegas, um dos caminhos para a superação deste entrave é o Projeto Família, criado para promover a busca ativa.

“Há menos de dez anos, por exemplo, a grande maioria dos pretendentes se habilitavam somente para a adoção de crianças saudáveis, em regra, brancas, e com idade abaixo de seis anos. Graças a divulgação de projetos de busca ativa nas redes sociais, como o Projeto Família, que foi pioneiro no Brasil, e nos cursos de formação de pretendentes à adoção oferecidos pelas Varas da Infância e Juventude e também pelas reuniões mensais oferecidas pelos Grupos de Apoio à Adoção (Os GAAs), as pessoas interessadas a adotar passaram a ter mais familiaridade com o universo da adoção e com o público infanto-juvenil disponível para ser adotado”, explicou a juíza.

O Projeto Família, citado por Hélia Viegas, viabiliza a busca ativa de crianças e adolescentes sem pretendentes no Sistema Nacional de Adoção (SNA). Desde 2014, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), através de resolução, estabeleceu o prazo de 30 dias para que os juízes, a partir da inserção da criança e/ou adolescente no sistema, concluam a busca de pretendentes à adoção. Caso não consiga, o magistrado encaminha a documentação necessária para a CEJA-PE realizar a busca ativa de adotantes.

Com essa proposta, a partir de 2016, a Comissão instalou o serviço Busca Ativa no site do Tribunal, que contém lista das crianças e dos adolescentes incluídos no projeto e que, portanto, já são considerados possíveis adoções tardias. A Comissão também possui um perfil no Instagram e no Facebook para a divulgação da mesma listagem do Busca Ativa. 

“As crianças e adolescentes que são colocadas para adoção vêm de um contexto familiar desestruturado e, em regra, sofreram violações de naturezas diversas (negligência, violência psíquica e/ou física). A família adotiva é o caminho para garantir a essas crianças e adolescentes um ambiente familiar saudável e que lhes permitirá um desenvolvimento físico e emocional equilibrado”, complementa Viegas, destacando a importância da adoção para crianças e adolescentes de todas as faixas etárias.

A escolha do/a adotante

Segundo a secretária executiva da CEJA-PE, o principal elemento motivador para se filiar pela adoção, ou seja, tornar-se pai ou mãe, com o entendimento e maturidade para enfrentar os desafios impostos pela realidade, é o amor. O afeto pode significar a resiliência frente aos processos impostos pelo Judiciário, que buscam garantir a idoneidade do/a adotante e proteger as crianças e adolescentes de espaços insalubres.

“Na fase da habilitação para adoção (quando a pessoa ou casal interessado em adotar ingressa com o pedido de habilitação para adotar), haverá uma avaliação (entrevista, visita à residência), feita por equipe em regra, formada por psicólogo(a), assistente social e pedagogo(a), que avaliará a motivação e condições emocionais e financeiras para adotar”, explica a juíza. “Depois disso, já com o período de adoção iniciado, haverá o estágio de convivência, em que essa equipe interdisciplinar da Justiça verificará também a motivação para aquela adoção”, continua Hélia Viegas.

Entre requisitos para que a adoção aconteça, a idade é um fator decisivo. É preciso ter faixa etária mínima de 18 anos, e diferença de 16 anos entre a idade do adotante e o adotado. No caso de casais, será levada em consideração a idade do cônjuge mais velho. Quanto aos documentos, que estão previstos no artigo 197-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), faz-se necessário apresentar um atestado de sanidade física e mental para prosseguir com a adoção.

“A orientação sexual é uma questão irrelevante no processo. Embora não prevista expressamente na legislação, já foi superada por nossa jurisprudência. O que é importante, do ponto de vista do requisito subjetivo, é o preparo emocional para adotar, ou seja, a motivação genuína, juntamente com o equilíbrio emocional para que a filiação ocorra”, finaliza.

Rede de apoio

Além de estar munido de toda a documentação exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), também é determinado ao processo de adoção em Pernambuco que o interessado em tornar-se pai ou mãe faça o curso de pretendente à adoção. Um detalhe importante, como reitera a juíza Hélia Viegas, é que no Recife, pela 2° Vara da Infância e da Juventude da Capital, também é exigido o comprovante de participação em, pelo menos, quatro encontros em Grupos de Apoio à Adoção (GAAs).

Segundo a magistrada, “o curso preparatório é essencial para o amadurecimento da proposta de filiação pela adoção, conhecimento do universo da adoção e do perfil disponível para ser adotado em nosso país”. Atento à nova realidade da pandemia, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) segue realizando, desde julho do ano passado, os cursos de preparação para a adoção no formato de Ensino à Distância (EAD). Para participar do curso, os pretendentes interessados devem procurar a vara de suas comarcas e solicitar a sua inscrição na formação. 

Para Tatiana Valério, fundadora e voluntária do Grupo de Estudo e Apoio à Adoção do Vale do Ipojuca (GEADIP), que existe desde 2008, os GAAs são espaços fundamentais para que “a palavra adoção seja naturalizada e preconceitos sejam quebrados, dando lugar a uma nova cultura de adoção”. De acordo com ela, as trocas de experiências que acontecem nos Grupos de Apoio são essenciais no processo de adaptação da família: tanto para os filhos quanto para os pais.

“Houve uma época em que a adoção era vista como uma filiação de menor valia e sem garantias de direitos para os filhos e filhas por adoção. Mas graças ao trabalho de muitos militantes e famílias adotivas, esse instituto evoluiu e hoje a adoção é uma forma autêntica e legal de filiação e parentalidade”, destaca Tatiana. A ativista também ressaltou que o período pandêmico uniu os Grupos de Apoio à Adoção do estado, promovendo também uma maior aproximação do TJPE e da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco (CEJA-PE).

Ansiedade e idealizações

A atuação de profissionais de psicologia nas equipes do Judiciário tem relação com a necessidade de garantir que o processo de adoção se dará de maneira assertiva para ambas as partes, adotante e adotado. É nesta perspectiva que a psicóloga Aline Santana, especialista em adoção, classifica a filiação como “um processo não apenas judicial, mas também psicológico e afetivo”.

Aline Santana destaca os impactos da ansiedade e alerta para os perigos de idealizações exacerbadas no processo de adoção. “A ansiedade de quem pretende adotar pode fazer com que a pessoa pare de olhar com uma lente consciente para o que é realmente o processo. E é um processo de filiação, é uma maneira de formar uma família, mas também existem particularidades que precisam ser olhadas com responsabilidade”, orienta. 

“Essa criança que vai chegar não vai corresponder muitas vezes a esse 'ideal'. E se a pessoa está tomada pela ansiedade, ela vai ignorar esses fatos. O que acontece, na maior parte dos casos, é que o filho ou a filha não vem de acordo com essas projeções que estão muito distantes do mundo real. Todo mundo cria expectativas, mas eu costumo dizer que esse sentimento precisa estar o mais próximo do real possível”, continua.

Sobre a vinculação afetiva, a psicóloga observa que a presença do medo nesta etapa é bastante comum, ressaltando, sobretudo, que não existe fórmula mágica, mas sim o exercício constante da paciência e disposição para que os laços se aprofundem. “Eu não diria que o medo da vinculação é fruto da desinformação, mas posso assegurar que a crença de que o afeto virá de maneira rápida e instantânea, sim”, complementa.

Família completa

Após dar entrada no processo de adoção no TJPE, apresentando os documentos solicitados e após realizar o curso de pretendentes à adoção, a vara tem um prazo legal de até 120 dias (podendo ser excepcionalmente prorrogado por mais 120 dias) para sentença do juízo determinando a habilitação ou não do adotante no Sistema Nacional de Acolhimento (SNA). Na chamada “fila de adoção”, quando a pessoa já é considerada apta para o processo, será levada em consideração a regra cronológica de inscrição no cadastro nacional (SNA), além de outros critérios que abrangem a disponibilidade de crianças ou adolescentes nos perfis traçados pelos futuros pais ou mães.

Para Éden Figueiredo, de 54 anos, o final feliz aparece em uma foto da família completa. O cirurgião dentista é também diretor do GEAD Recife e coordenador do GAFA, ambos Grupos de Apoio à Adoção, e define-se como “pai por adoção” de dois meninos.  “Enquanto um casal homoafetivo, desde o momento da decisão de ampliar a família, nós só traçamos a adoção como uma possível via de chegada aos nossos dois filhos. Como sempre agimos de acordo com o que nos foi permitido juridicamente, não tivemos medos, porque sabíamos dos nossos direitos e desde o início participamos de grupos de apoio à adoção”, conta Éden.

O cirurgião dentista Éden Figueiredo, o marido, e os dois filhos                              Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

O processo que resultou no aumento da família durou, de acordo com o dentista, dois anos e meio. “Pernambuco, com ênfase no Recife, pode ser encarada como uma vitrine de excelência. Da Vara da Infância e Juventude até os grupos de apoio, todos foram parceiros no processo, que foi de 1 ano para a entrada no SNA (Sistema Nacional de Acolhimento), e mais 1 ano e meio à espera dos nossos filhos”, destaca. Eden também citou o acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos durante o período de convivência com as crianças.

Quando perguntado sobre a sensação de conhecer os filhos, o pai dos meninos relembra o “coração acelerado”, em um dia que classifica como “indescrítivel”. Sobre o processo de vinculação, Eden é categórico: “É preciso estar presente, disponibilizando tempo, empatia, equidade, respeito, confiança e dedicação. Somos uma família como qualquer outra, a adoção foi ‘só’ uma via da chegada de nossos filhos”.

Para saber mais sobre a adoção, acesse o site da Coordenadoria da Infância e Juventude.

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