Governo ignora manifesto pró-eleição
A expectativa dos autores do movimento 'Eleições serão respeitadas' é de que a pressão social tenha os mesmos efeitos da carta em prol da vacinação, também assinada por nomes de destaque do PIB nacional
O governo Jair Bolsonaro e seus aliados do Centrão fizeram vista grossa ao manifesto de empresários e personalidades em defesa da urna eletrônica e da realização de eleições em 2022.
A expectativa dos autores do movimento "Eleições serão respeitadas" é de que a pressão social tenha os mesmos efeitos da carta em prol da vacinação, também assinada por nomes de destaque do PIB nacional. Lançado em março, o documento fez o Congresso cobrar, e o governo agir, fechando os maiores contratos para compra de vacinas contra a Covid-19.
Assim como a "carta dos 500", como ficou conhecido o texto pró-vacina, o manifesto em defesa da democracia surgiu em solidariedade ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, após ataques proferidos por Bolsonaro e apoiadores.
A leitura dos organizadores é de que o movimento mostrou coesão e combateu a ideia de que há tolerância da elite nacional com arroubos autoritários. O texto curto e direto foi repassado a grandes empresários de diversos setores, como varejistas, seguradoras e bancos, além de intelectuais de renome, contemplando posições políticas divergentes.
A intenção era indicar um "basta" à escalada antidemocrática de Bolsonaro. Para os organizadores, a sociedade civil se mostrou atenta a expedientes estranhos aos marcos constitucionais. Eles avaliam que a tentativa de implantar a votação com cédulas de papel não passa de um pretexto para tumultuar a eleição de 2022.
Houve a preocupação de evitar entrar em discussões sobre o impeachment de Bolsonaro porque, entre os signatários iniciais, existem posições divergentes em relação à necessidade de abertura do processo contra o presidente.
Horas depois da publicação do manifesto nos jornais, porém, Bolsonaro voltou a dar declarações contra a urna eletrônica, insistindo na pressão pelo voto impresso, fez novas ameaças de desrespeitar a Constituição e atacou os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que, além de presidir o TSE, integra o Supremo Tribunal Federal. Foi Barroso que pediu, e Moraes acolheu, notícia-crime contra Bolsonaro, investigado agora no inquérito das fake news.
"A hora dele (Moraes) vai chegar porque está jogando fora das quatro linhas da Constituição há muito tempo. Não pretendo sair das quatro linhas para questionar essas autoridades, mas acredito que o momento está chegando", disse Bolsonaro, na quinta-feira, em entrevista à Rádio 93 FM, emissora gospel do Rio. O grupo por trás do movimento interpretou as declarações como de alguém que "está acuado e reage com mais agressividade." Ontem, não foi diferente. Em viagem a Joinville (SC), Bolsonaro se referiu a Barroso como "filho da p...".
Reações. A principal reação institucional foi do Judiciário. Na quinta, o presidente do Supremo, Luiz Fux, cancelou uma reunião entre as cúpulas dos Poderes. Fux disse que alertou Bolsonaro sobre os "limites da liberdade de expressão", e afirmou que o respeito é "inegociável" e um pressuposto para o diálogo. "Sua Excelência (Bolsonaro) mantém a divulgação de interpretações equivocadas de decisões do plenário, bem como insiste em colocar sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro", disse.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), um dos principais destinatários do manifesto, disse anteontem não ter tomado conhecimento do texto. "Não vi", afirmou ao Estadão. No dia seguinte, anunciou que vai levar para o plenário da Câmara a discussão sobre o voto impresso mesmo após o projeto ter sido derrotado em comissão especial. Na ocasião, Progressistas, Republicanos, PSL, PTB e Podemos, partidos do Centrão, orientaram os deputados pela aprovação.
Na quarta-feira, Lira havia defendido a auditagem "mais transparente", em discurso alinhado a Bolsonaro, e afirmou que o Congresso deveria analisar o tema porque uma "grande parcela da população coloca dúvidas" sobre o resultado da eleição apurada eletronicamente. Os sinais de alinhamento de Lira ao Palácio do Planalto na pauta têm sido criticados no setor empresarial, com o qual ele construiu forte canal de interlocução desde que se elegeu para comandar a Câmara.
Já o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), destacou a relevância do movimento, que, na sua avaliação, influenciará os rumos do debate no Congresso. "É uma manifestação importante, demonstra que setores muito relevantes do empresariado nacional reagem a essas iniciativas de natureza golpista. É extremamente simbólico e influencia a decisão da comissão", disse Ramos.
Apesar do foco na Câmara, o movimento "Eleição se Respeita" quis mandar um sinal direto ao Senado. Os organizadores avaliam que o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, tem maior poder para impedir o avanço da pauta.
'Deterioração da democracia é ameaça grave'
A retórica adotada pelo presidente Jair Bolsonaro contra instituições e contra o sistema eleitoral invoca uma ameaça real para a democracia do País. A avaliação é do ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman, um dos signatários do manifesto "Eleições serão respeitadas", que reuniu empresários, banqueiros, economistas, diplomatas e juristas em oposição às ameaças do chefe do Executivo.
"Não tem como fazer vista grossa para quem ameaça o processo democrático. A gente viu isso acontecendo nos Estados Unidos, mas as instituições seguraram o tranco. Outros países tiveram menos sorte: vimos uma deterioração da democracia na Hungria, na Polônia, na Turquia. Isso não é um espantalho, é uma ameaça real e presente", disse Schwartsman, em entrevista ao Estadão/Broadcast.
Para o economista, a escalada das declarações de Bolsonaro mostra um aumento do risco de ruptura institucional no País. "Dizer que só vai ter eleição com o voto auditável, esse discurso de só pode ser do meu jeito, deixa muito claro que Bolsonaro tem um risco considerável de perder a eleição e está indo na esteira do (ex-presidente dos Estados Unidos Donald) Trump, de desqualificar o processo eleitoral", disse Schwartsman. "Não é só uma questão da retórica presidencial."