Os mil dias do Governo Bolsonaro e a volta ao Centrão

Com a carreira política no maior bloco do Congresso, Bolsonaro foi eleito escondendo o passado, mas a incapacidade de governança nesses mil dias o obrigou a se curvar mais uma vez ao Centrão

ter, 28/09/2021 - 13:16
Valter Campanato/Agência Brasil Bolsonaro recebeu a faixa de Temer e precisou chamar o antecessor em 2021 para pacificar a crise com o STF Valter Campanato/Agência Brasil

Nas redes sociais, orgulho de mil dias de um Governo "sério, honesto e trabalhador". Na vida do brasileiro, desemprego, inflação, combustíveis caros, volta de impostos federais, contas atrasadas e vulnerabilidade alimentar. A comemoração da gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deixa a população incrédula sobre a própria realidade. Ao LeiaJá, cientistas políticos analisaram a trajetória que desaguou na instabilidade democrática, coroada com um discurso controverso na ONU, enquanto a CPI da Covid revela graves indícios de corrupção e crimes de responsabilidade contra o presidente.

Sem sucesso até para apoiar as próprias pautas, claramente a estratégia do Boslonaro é responsabilizar terceiros para que não seja apontado como incapaz. "A narrativa sempre é achar outros culpados para o insucesso. O governo trabalha para criar fatos e tentar tumultuar o debate. Poucas coisas são feitas para solucionar problemas", avaliou o cientista político Caio Santos.

Sustentado por informações falsas disparadas em massa por sua bolha de apoiadores, veículos financiados - e por robôs, como a investiga a CPI das Fake News -, para Santos, o legado deixado pelo presidente é de que "é possível se sustentar no cargo com dinheiro e um percentual de apoiadores radicalizados". 

O cientista político Jorge Oliveira Gomes foi além e acrescentou que a herança da atual gestão é do desmonte estrutural de órgãos de controle e regulamentação, principalmente os destinados à Educação, Saúde e Meio Ambiente. "Estamos lidando com o pior governo da história em termos de amadorismo e falta de credibilidade", classificou.

Reformas

Para Gomes, a única conquista dos mil dias no Planalto foi a Reforma da Previdência que, na verdade, deve ser colocada na conta do ex-presidente da Câmara dos Deputdos, Rodrigo Maia. "Foi muito mais uma vitória do Parlamento do que do Executivo. Bolsonaro nunca foi fã da proposta do próprio Governo e chegou a declarar que não se importava com a Reforma. Não moveu uma palha para que passasse", considerou.

O marco que mudou o cálculo das aposentadorias era considerado necessário pelo aumento da expectativa de vida do brasileiro e um desejo de seus antecessores. Por isso foi aprovada com contribuições das alas da direita e da esquerda. "Entretanto, a legitimidade da Reforma se tornou questionável por conta da manutenção de privilégios para militares e atores políticos em geral", destacou o estudioso.

A carência dos benefícios aparentes, descritos por governistas no lucro da venda de estatais e extinção de instituições, somada à desarmonia com os demais Poderes afastaram até mesmo seus apoiadores, o que expôs a crise de governabilidade no Parlamento. Eleito como um outsider da 'nova política', ainda em campanha, Bolsonaro buscou se distanciar das quase três décadas integrado ao Centrão, período em que macaqueou por partidos acusados de corrupção. 

Sem partido

Sem casa desde que saiu do PSL reclamando de não ter o controle os recursos do Fundo Eleitoral, de acordo com Santos, "as pessoas esqueceram, mas Bolsonaro fracassou em abrir o próprio partido", quando não conseguiu recolher assinaturas suficientes para fundar o Aliança Brasil, mesmo oferecendo camisas em troca da participação popular. Pela sua sobrevida, começou a distribuir emendas e cargos ao Congresso, constituindo uma agenda de trocas ministeriais e rendição a um dos seus principais eixos na candidatura.

"Governos fracos são o paraíso do Centrão. Algumas pautas são boas para essa direita tradicional e, por isso, há mais afinco e velocidade em aprovar certas propostas", explicou o cientista. A metodologia do ‘toma lá, dá cá’ funcionou nas eleições das Casas Legislativas que elegeram seus candidatos, mas para o Voto Impresso, a tática não surtiu mesmo efeito.

A mais nova ambição é colocar seu ministro "terrivelmente evangélico" no Supremo Tribunal Federal (STF). Após promover o ministro Kassio Nunes Marques, o nome da vez é André Mendonça, escolhido para o lugar do ex-ministro Sergio Moro na Justiça e Segurança Pública, e atual Advogado-geral da União (AGU). "A questão de Mendonça é um recado: 'tudo tem que ser negociado e tem que haver ganho para a base do governo no Congresso passar'", comentou Santos.

A situação “constrangedora” é mais um episódio da "infidelidade de Bolsonaro do que de uma suposta falta de comendo", complementou Gomes. No plenário, a rejeição ao AGU é quase unânime. Para limpar a imagem, o próprio Mendonça tenta validar sua candidatura fazendo campanha corpo a corpo e deixa de lado sua doutrina como pastor presbiteriano para se aproximar de representantes da esquerda. A movimentação teria irritado Bolsonaro que, para o cientista, abandonou o ministro.

"Mendonça se porta como um moribundo, mendigando apoios de gabinete em gabinete, e fazendo promessas em Brasília. Foi completamente esquecido por Bolsonaro e só tem algum respaldo na ala evangélica", analisou Gomes.

Em mil dias com acúmulo de pedidos de impeachment engavetados, flerte com posições nazistas e milicianos cariocas acusados de assassinar a ex-vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), também recaem nas costas o presidente o escândalo do esquema de rachadinhas de assessores orquestrado pelo seu núcleo familiar. Como resposta, o mandatário nega todas as acusações e vem impondo sigilos em seus documentos. Quando pode, endossa seu próprio discurso agressivo para reaproximar seus adeptos, que cada vez mais abandonam o projeto de reeleição, como mostram pesquisas de intenção de voto.

Desgaste da imagem no exterior 

O Brasil deixou de ser referência mundial em imunização e, no exterior, perdeu o brilho da tradição diplomática. A ideologia de extrema-direita distanciou o país do rol de lideranças democráticas e o jogou na prateleira composta por regimes como Hungria, Turquia e Arábia Saudita.

 "A linha é de ser um 'pária internacional' pois ele quer essa imagem, não para o Brasil, mas para seus projetos pessoais", afirmou Santos, que comparou à metodologia de domínio do ex-presidente Donald Trump. Ele compreende que o norte-americano enxerga o Poder como “detalhe” e tem como plano "ser sempre uma liderança política, ter apoiadores e pessoas dispostas a tudo por você”, relacionou. Para Santos, “o discurso de Bolsonaro foi feito [apenas] para isso: alisar seu público", alertou.

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