PL que proíbe linguagem neutra seria inconstitucional

A afirmação foi feita pelas vereadoras Aline Mariano (PP), Liana Cirne (PT) e Cida Pedrosa (PCdoB)

qua, 24/05/2023 - 16:34
Câmara do Recife A vereadora do Recife Aline Mariano Câmara do Recife

O debate sobre o projeto de lei nº 206/2020, do vereador Fred Ferreira (PSC), que dispõe sobre a vedação do uso de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa no âmbito do Recife, aprovado nesta terça-feira (23), na Câmara Municipal do Recife, gerou muita polêmica não só pelo tema, mas também por sua validade. As vereadoras Aline Mariano (PP), Liana Cirne (PT) e Cida Pedrosa (PCdoB) destacaram que o projeto de lei seria inconstitucional.

De acordo com Aline Mariano– que declarou voto pela abstenção – a matéria seria inconstitucional, já que a prerrogativa de legislar sobre regras gramaticais é do Congresso Nacional. O uso de novas variedades de flexão de gênero e número no português são geralmente defendidas por apoiadores de uso da chamada linguagem neutra, que buscam introduzir no vocabulário palavras como “todes” como variação possível de “todos” e “todas”, para demarcar a neutralidade de gênero no português.

O projeto de lei nº 206/2020 busca proibir a novidade em escolas públicas municipais e em escolas privadas do Recife, prevendo punições que vão da advertência à suspensão do alvará de funcionamento. Editais de concursos da administração municipal e os demais estabelecimentos públicos municipais provedores de ensino, informação e cultura também são alvos da proposta de proibição.

Em seu pronunciamento, Aline Mariano frisou a necessidade de as unidades de ensino seguirem a norma do Acordo Ortográfico de 1990, mas refletiu que isso não afeta a liberdade de expressão popular. “Só pode se ensinar nas escolas o que foi determinado. São o que chamamos de regras gramaticais. O popular e polêmico ‘todes’ pode ser considerado um neologismo linguístico”, disse.

“Todos nós sabemos que o verbo ‘sofrer’ sofreu variações que estão fora das regras gramaticais. A nossa saudosa Marília Mendonça adotou a ‘sofrência’. Oficialmente, ‘sofrência’ não existe na língua portuguesa, mas se admite na comunicação entre pessoas, porque se tornou uma expressão popular, que todos nós temos o direito de proferir. É a liberdade de expressão pura”.

Para a vereadora, não cabe à Câmara do Recife se debruçar sobre a questão. “Querer proibir o uso de ‘todes’ é querer cercear a liberdade de quem quer falar. Mas querer incluir ‘todes’ nas regras gramaticais é uma discussão que cabe ao MEC [Ministério da Educação], aos linguistas, aos professores de português, à comunidade LGBTQIA+ e, especialmente, ao Congresso Nacional. Entendemos que não temos competência para legislar sobre essa matéria”. Segundo Aline Mariano, a aprovação do projeto não significa que ela terá efeitos práticos.

“Vai sair amanhã nos jornais quem votou contra e a favor de algo que não existe, porque esse projeto já nasce morto. Ele já era para ter sido barrado na Comissão de Legislação e Justiça e não foi. É regimental. Passou o prazo”, disse. “Hoje, votamos uma matéria que nada adiantaria. Se votarmos pela proibição e o MEC, junto com o Congresso Nacional, decidirem pela mudança da língua, não adianta a gente barrar aqui. Isso não vai para a frente e a Câmara do Recife pode ser ridicularizada por algo que estamos votando e que não existe na prática”.

Quem também fez críticas ao projeto foi Liana Cirne. “Nós não temos competência legislativa para discutir diretrizes e bases da educação. Todo mundo aqui sabe disso. Essa competência é privativa da União. Então por que esse projeto foi proposto? Para debater ideologia de gênero. Eu respeito, vereador Fred, que o senhor queira debater ideologia de gênero, defender os seus ideais e dar voz ao pensamento dos seus eleitores. Porém, esse projeto de lei não faz isso. Esse projeto de lei quer se imiscuir em uma discussão sobre gramática da língua portuguesa e, para isso, existe o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 2009”.

Já Cida Pedrosa, destacou que além de inconstitucional, a matéria também seria um projeto de poder autoritário. “O que está em jogo aqui não é a defesa da língua portuguesa, mas sim um projeto de poder autoritário, que não respeita a inclusão e a diversidade. Um projeto que não quer aceitar que as pessoas sejam diferentes e falem como quiserem”, disse, na reunião plenária realizada pela Câmara Municipal do Recife, na manhã desta terça-feira (23).

Cida Pedrosa disse que, além de vereadora e advogada, também é poeta. “E quem vai falar aqui é a poeta. Tenho um livro cujo título é Solo para Vialejo, e que ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano e o de Melhor Livro de Poesia. Nele, eu crio várias palavras. A língua é um elemento vivo e se modifica a partir das construções sociais. O projeto de lei em discussão é inconstitucional. Cada um se expressa como quiser”, afirmou.

A vereadora frisou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou contra uma lei como o mesmo teor da que estava sendo debatida, no estado de Rondônia. “O entendimento do Supremo é que só quem pode legislar sobre essa matéria é a União. Nós aqui não podemos discutir esse assunto”. Para a vereadora, a língua sempre foi utilizada como objeto de poder e de subjulgamento. “A língua não está apartada do poder da maioria. Ela sempre foi usada pelos mais fortes contra os que são enfraquecidos”.

Cida Pedrosa deu como exemplo a palavra mulata, que foi criada no século 17. “A mulher negra foi compara a uma mula”. Da mesma forma, ela disse que a palavra denegrir foi uma palavra “que queria dizer que aquilo que é ruim tem relação com o negro”. Nesse ponto, ela afirmou que o nome dessa tentativa de proibição da linguagem neutra “é um projeto de poder de subjulgamento. Quando queremos proibir o direito de as pessoas se tratarem como quiser é exercício de poder e de subjulgamento das pessoas”.

*Da Câmara do Recife 

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