O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?

Especialista responde dúvidas e afirmações de candidatos sobre assunto

por Lorena Barros sab, 06/07/2019 - 20:21

Debate sobre cotas gerou polêmica e protestos de alunos da rede particular brasileira

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Polêmico nas redes sociais, o debate sobre cotas universitárias costuma render comentários extremos na internet. Diante do mundo virtual, local no qual opiniões podem ser confundidas com fatos, é importante saber distinguir os mitos e verdades sobre as políticas inclusivas dentro de universidades. 

Perguntamos aos seguidores do Vai Cair no Enem, página do Instagram com mais de 350 mil seguidores, a opinião deles sobre as cotas nas universidades. Em cerca de 250 comentários, selecionamos aqueles que mais se repetiram ou causaram polêmica para serem respondidos pelo professor Ocimar Munhoz, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

O docente é especialista na área de educação e já realizou pesquisas envolvendo igualdade de resultados dentro do ensino e desigualdade no sistema educacional brasileiro. Confira o currículo Lattes do profissional clicando aqui.

A seguir, veja perguntas, afirmações e respostas selecionadas pelo LeiaJa.com

“Pessoas mais capacitadas para curso ficam de fora porque tem muito mais vagas para diversas cotas do que para ampla concorrência”

Sim. Pessoas capacitadas ficam de fora, mas isso é um fator sem ligação com as cotas. Segundo o professor, o conceito de “pessoas capacitadas” precisa ser redefinido na situação apontada por este internauta. “O que acontece com os processos seletivos em geral? Com cota ou sem cota, você ordena os respondentes com base no desempenho que a gente tem em provas. Nós temos muitas vezes a seleção de indivíduos com resultados muito próximos, mas que não entram quando eu faço a seleção até uma determinada posição”, afirma Ocimar. 

Um exemplo pode ser dado para elucidar a mente de quem ainda tem dúvida: “Vamos admitir que haja uma pontuação desejável [para entrar em uma universidade]. Todo mundo que esteja acima dessa pontuação desejável entra? Não. São aceitos os primeiros. Na lista de espera, com exceções, tem muita gente ‘capacitada’. Por que elas não são selecionadas? Porque não tem vagas para elas”, lembra. Até mesmo dentro das cotas, há quem fique do lado de fora. “Pensa comigo: se eu tenho dez vagas para negros, vai ter o negro que ficou em 11ª posição. Ele também ficou de fora porque ele é o 11º e só seriam chamados 10”, explica. 

Em alguns casos, o candidato autoidentificado como negro e classificado no vestibular pode ter uma pontuação menor em relação à de um candidato na lista de espera da ampla concorrência. A “desigualdade” apontada por alguns é encarada como forma de reparação pelo especialista. “As cotas justamente apareceram para atenuar injustiças e uma delas é essa: reconhece-se que uma população composta por indivíduos negros tem as piores condições para se preparar”, lembra o docente. No caso da raça, o reconhecimento da desigualdade, por sua vez, pode ser embasado em dados. Segundo levantamento de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 78,5% da população pobre do Brasil se declara negra. 

“Cotas não ensinam ninguém a ler nem a escrever”

É verdade. A frase acima foi creditada ao deputado federal Kim Kataguiri, do partido Democratas. Apesar de ser correta, ela demonstra pouca intimidade do parlamentar com a educação, afinal, aprender a ler e escrever não é tarefa da universidade. “As cotas não foram feitas para isso. Não sei por que alguém falou isso. Embora ler e escrever se possa aprender fora da escola, em geral, ensinar a ler e escrever é uma tarefa da escolarização”, lembra o professor da USP. 

“A cota para cor ou etnia é uma forma de racismo, pois trata negros como ‘inferiores’ e que não conseguem chegar no mesmo estágio de uma pessoa ‘branca’ sem ajuda” 

Os candidatos precisam entender que, segundo especialistas na área de educação, a cota não é racismo. Ela é um atenuante para desigualdades sociais e só foi implementada quando constatou-se que candidatos que se autoidentificavam como negros, pardos ou indígenas tinham menor representação após o processo seletivo. “Ao que se deve isso? Porque nasceram assim e já são naturalmente inferiores? Não. Considera-se que processos sociais fazem com que essa população tivesse uma subrepresentação. As cotas fazem esse ajuste. Não é racismo, não é uma questão de inferiores, é uma questão de tentar atenuar uma desigualdade”, conta.

“Cotas são injustas porque não sabemos os critérios que eles usam para definir quem é pardo ou não”

A cota pode até ser imprecisa, mas não é injusta. O critério utilizado no Brasil hoje é a autoidentificação. “Quando falo que ela pode ser imprecisa, é porque pode ter oportunismo. Alguém que nunca se identificou como um negro vai lá e se identifica, ou como um pardo ou indígena. Por isso que em muitos lugares há uma comissão para se apurar isso”, lembra o professor. Você pode conferir como funciona uma comissão de verificação de cotas clicando aqui. 

Para pensar em critérios de definição de raça é importante também lembrar da diferença entre o fenótipo (representado pelas características físicas do indivíduo) e o genótipo (representado pelas características genéticas do indivíduo). “No Brasil, sentir preconceito é mais uma coisa de fenótipo. Ou seja, uma pessoa que tem a pele mais negra tende a estar exposta a situações de racismo mais do que quem tem a pele branca”, lembra Ocimar. 

Quando alguém com descendência negra, mas tom de pele claro, se sente prejudicado por uma comissão julgadora de fenótipos, podemos considerar a cota como imprecisa. “É bom lembrar que os estudos nos quais se basearam as cotas foram feitos em um momento que não tinha nenhuma cota em questão. Agora, como tem vagas que estão sendo distribuídas, podem aparecer oportunistas”, aponta o professor. A autoidentificação realizada nas universidades, na maioria das vezes, é feita com o preenchimento de um formulário. 

“Cotas não são necessárias pois todas as pessoas são iguais”

“Iguais em quê? Nós estamos falando de desempenho escolar. De onde vem o desempenho escolar? Vem das condições que as pessoas tiveram antes para exibir um desempenho”, conta Munhoz. O docente lembra que podemos listar três fatores essenciais para determinar o desempenho escolar de um aluno: a escola na qual estudou, o esforço que aquele aluno fez para apreender o conteúdo e as condições socioeconômicas nas quais ele está inserido.

Encarando esses fatores, é possível perceber que a igualdade, no que se diz respeito à educação, não existe. “As pessoas são iguais genericamente como seres humanos, mas as cotas não discutem isso. Elas discutem a diferença de desempenho. Descobriu-se que dependendo da cor da pele você tem acesso a escolas piores, a condições sociais piores, portanto, seu esforço, mesmo que gigantesco, pode não ser suficiente para ter um bom desempenho”, lembra o professor. Para ajudar a compreender, exemplificaremos: imagine duas pessoas disputando uma corrida. Uma de tênis em uma pista de material emborrachado e outra descalça na areia. Nas mesmas condições, mas com os materiais diferentes, qual delas chegará primeiro?

“A adoção de medidas dessa natureza é necessária como uma forma de combate à desigualdade tão significativa em nosso País”

Sim. A adoção dessas medidas é necessária para combater a desigualdade, mas qual é o conceito de desigualdade? “Ninguém escolhe antes de nascer onde vai nascer. Onde nós nascemos e as condições em que vivemos pesam no desenvolvimento dos nossos esforços. Isso cria o que nós chamamos de desigualdade, uma diferença no nosso desempenho que está associada a uma condição que pode ser de sexo, pode ser de raça, de cor ou de condições econômicas”, detalha Ocimar. Diante da desigualdade, é errado afirmar que alguém vai mal na escola porque “nasceu assim”.

“As cotas hoje em dia estão tornando a solução do problema escola pública/privada muito mais tardias, servindo apenas como paliativo”

Para responder a essa pergunta, é necessário ir por partes. Quando falamos de escolas de ensino médio, segundo o docente, apenas 12% das matrículas são privadas. Todo o resto (88%) é feito nas escolas públicas. “O que acontece é que essa imensa maioria de alunos em geral estuda em condições mais precárias do que as privadas, não bastando a condição da família. O ideal seria que essas diferenças não existissem e que talvez nem fosse necessárias escolas privadas”, lembra o professor. Enquanto não houver essa igualdade, porém, as cotas podem ser consideradas um “paliativo pela justiça”. 

“A curto prazo, as cotas não mudaram nada. O negro e pardo e entraram nas universidades, mas continuam sendo discriminados da mesma forma” 

Falso. As cotas mudaram o cenário da educação superior no Brasil. Principalmente, dentro das universidades públicas. “Isso acontece mais ainda naqueles cursos que em quase toda a sua existência não tinham a presença de estudantes negros, pardos ou indígenas”, lembra. A discriminação no País pode continuar, mas enquanto a igualdade não for garantida na educação básica as cotas continuarão a fazer o seu trabalho paliativo. 

Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:

1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior

2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas

3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior

4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas

5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas

6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo

7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios

8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico

9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular

11 - Como seria um mundo sem cotas? 

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