Mestre Meia-noite, uma alma que dança

Confira entrevista com o criador do Daruê Malungo Gilson José de Santana, que é o homenageado da 12ª Mostra Brasileira de de Dança

por Felipe Mendes qua, 05/08/2015 - 10:10
Libia Florentino/LeiaJáImagens 'Eu ainda tenho uma missão a cumprir. Dizer que eu vou vencer a vida? Vou estar mentindo pra mim mesmo.' Libia Florentino/LeiaJáImagens

Uma alma que dança. O corpo esguio de Gilson José de Santana, o Mestre Meia-noite, é o veículo de uma expressão que vai além do movimento: traz consigo uma ancestralidade, a conexão entre cultura popular, criatividade, improviso, religiosidade e força. A sua experiência inclui a ida a vários países, participação em diversos espetáculos de grupos como o Balé Popular do Recife, o Boi Castanho, de Antônio Nóbrega, além das aulas de Ariano Suassuna. Meia-noite atua como dançarino, músico, ator, capoeirista e professor.

De fala calma, Meia-noite é um dos responsáveis por criar e manter o Daruê Malungo, no bairro de Chão de Estrelas, na área norte do Recife. Uma casa que acolhe crianças e jovens para transmitir a eles a música, a dança, a cultura brasileira, principalmente a fincada nas raízes negras. O trabalho de 28 anos toma forma visível nas apresentações do grupo de dança afro Daruê Malungo, mas tem repercussões muito mais profundas na comunidade, nas crianças e jovens envolvidos, na cultura popular recifense. Para estes jovens, Gilson é o Mestre Chau, mais um dos apelidos que tem.

Gilson, Chau, ou Meia-noite é o homenageado da 12ª edição da Mostra Brasileira de Dança, que começa nesta quarta (5), com abertura no Teatro de Santa Isabel, às 20h. Você pode conferir este e muitos outros eventos na Agenda LeiaJá.

Apesar da homenagem, não há nenhuma apresentação prevista na grade da mostra para o Mestre Meia-noite, ou para o Daruê Malungo. Não há, também, oficina, debate, encontro, mesa redonda ou palestra com o homenageado. Uma chance perdida para que Gilson Santana pudesse compartilhar seu conhecimento, experiência e lições de vida que tantos jovens e crianças já assimilaram.



Quando você entendeu o que era dançar?

Quando eu conheci minha mãe. Eu rodava dentro de uma bolsa d’água de um lado para o outro e ela era obrigada a, nas tetas da vaca, tirar o leite para dar o sustento para os filhos. Aí eu entendi o que era dança.

E quando isso virou uma atividade?

Quando eu entendi que não era único. E precisava fazer parcerias, como um capoeirista que precisa do outro para jogar capoeira. Mas eu conseguia jogar sozinho e mostrar que tava jogando, e fiquei conhecido por essa coisa diferenciada de ser um capoeirista que joga sozinho mostrando que joga com dez capoeiristas. O que eu fiz foi dar vazão às artes: a arte da interpretação, a da ‘falação’ e a da ‘olhação’.

De onde surgiu a ideia de pegar toda essa criançada e oferecer a elas um novo horizonte? Como foi criado o Daruê Malungo?

Eu pensei que o que eu queria mesmo é dançar. E pra fazer o que quero eu estava indo de encontro à minha família. Minha família era de vaqueiro, do interior, meu pai era vaqueiro. E eu resolvi fazer uma coisa que eu gosto. Meu pai tinha um terreno e disse que ia me dar para morar: ‘Você não quer fazer o que gosta? Vou te dar um terreno pra morar, assim você não fica aí morando pelas esquinas, você vai ter uma casa pra morar’, disse. E a casa virou o Daruê Malungo. E já são 28 anos.

O Daruê Malungo não é simplesmente um local para as crianças aprenderem a dançar. O que tem de mais profundo nessa iniciativa?

O Daruê é uma casa onde as pessoas podem – como se fosse uma cacimba – beber água. Com Meia-noite ou sem Meia-noite. A função do Daruê é ser um ponto de partida que fica entre um rio (o Beberibe) e um canal (do Arruda). Fui eu que criei isso? Não. A divina espiritualidade é que criou, nos colocou em caminhos.

Existe um momento em que você tem a sensação de missão cumprida, de saber que está fazendo o certo?

Eu ainda não fiz. Ainda vou fazer. Se eu disser a você o que vou fazer amanhã, não sei. Eu ainda tenho uma missão a cumprir. Dizer que eu vou vencer a vida? Vou estar mentindo pra mim mesmo.

A questão da educação parece ser algo que perpassa toda sua atuação, a transmissão de um legado. Que lugar tem na sua vida esse aspecto da educação?

Nós nunca vamos deixar de sermos crianças. Como eu posso falar de uma criança e de um adulto? Eu posso falar da criança, do adulto não posso falar. Porque um adulto só quer a minha orientação, a criança quer meu saber. O adulto está sempre focado nas incertezas, ele quer segurança. Que educação vamos dar às nossas crianças? Eu sinto uma satisfação de estar com eles construindo. Aqueles que não querem construir eu sinto muito. Os outros eu vou cuidar deles. E como você transfere isso para uma criança? A reminiscência da continuidade de um país, que é a nova civilização que vem. Eu estou dando aula e atendendo à quarta geração.

Aqui nós temos crianças de 7 anos cuidando de crianças de 2 anos, porque a mãe tem que sair para trabalhar; o pai deixou, ‘pegou o beco’, e continua isso, apesar de todos esses projetos envolvendo crianças.

E não posso participar de certos projetos porque eles têm a ver com uma educação formal. Eu tenho uma escola que não foi aceita pelo MEC pela metodologia. Porque a gente usa a metodologia do aqui e do agora: vamos construir esse instrumento, para quê? O Estado não aceita. Como vamos nos orgulhar do Recife se nos tiram daqui pra mostrar lá fora e o povo do recife não conhece?

O que é dançar para você?

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