Crônica: Uma noite, infelizmente, comum no nosso futebol
Era uma noite promissora. Vindo do Rio de Janeiro, o carioca, torcedor do Flamengo, tinha se programado para conhecer o famoso estádio do Arruda. Mesmo com a chuva que já caía na capital pernambucana, ele não desanimou. A dificuldade para encontrar um táxi era grande devido à uma greve surpresa de motoristas de ônibus, mas ele não desanimou.
Já eram 18h30 quando finalmente conseguiu um transporte. O taxista, tricolor doente, também queria ir para o jogo, então a corrida era perfeita para os dois. O carioca suspirou aliviado. Parecia que as coisas estavam melhorando. Com o trânsito provocado pela chuva, a corrida não saiu por menos de 40 reais, mas o que importava era chegar no Arruda a tempo de ver o jogo.
Ele sabia que não seria um jogão. Santa Cruz e ABC não é bem o tipo de jogo de que se espera um primor de técnica, mas ia conhecer o estádio e se entreter com um jogo que tinha o ingresso barato. Pagou 10 reais para entrar e acabou entrando com o taxista tricolor, que também só tinha dinheiro para este setor – atrás do gol da Rua das Moças – onde conseguiram um lugar coberto, longe de chuva e com visão privilegiada do campo. Ótimo. Estava feito o programa.
Por volta dos 27 minutos o ABC fez um gol e um barulho estranho veio de cima do setor onde estava ele e o seu amigo taxista. Era a torcida do time potiguar. Estranhamente colocada no anel superior, exatamente acima dos tricolores que haviam pagado o ingresso mais barato para o jogo. Animada e sem controle – havia 3 policiais “vigiando” a torcida visitante – os fãs do ABC jogaram algum pedaço de ferro ou madeira que fez um estrondo e provocou um princípio de correria na arquibancada.
Parecia ruim, mas houve um lado positivo. O carioca e o taxista tricolor foram beneficiados pelo incidente e conseguiram passar para a arquibancada central do estádio – que antes do jogo era vendida pelo triplo do preço que pagaram. Um segurança do Santa Cruz foi o autor da benevolência de abrir o portão para que alguns mudassem de lugar.
A partir daí a tranquilidade reinou. Tirando o refrigerante desconhecido que foi “obrigado” a experimentar – não haviam os tradicionais para vender – pela bagatela de 5 reais e o salsichão frio que comeu, tudo estava bem. Lugar legal, sem chuva, com o taxista e alguns outros tricolores para conversar enquanto assistiam um jogo de baixo nível técnico. Mas ok, tinha pagado 10 e estava vendo o jogo em um local que custava 30. Os que pagaram 30 não estavam tão satisfeitos assim.
Terminada a pelada, que acabou mesmo 1 a 0 para o ABC, era a hora de ir para o hotel. Não teria que brigar por um táxi porque seu amigo taxista tricolor já tinha combinado a volta pelo mesmo preço. Tentou sair pelo mesmo portão que entrou. Mas o, antes benevolente, segurança não quis abrir. Tinham então que dar a volta no estádio para sairem por outra porta.
Já na saída, próximo ao ginásio do "Arrudinha", o carioca e o taxista tricolor se depararam com um tumulto. Sem saber muito o que fazer, ficaram esperando e não puderam ir em direção ao táxi, que estava estacionado em uma paralela da Rua das Moças, há poucos metros de onde eles haviam entrado. Como não conseguiram sair pelo mesmo local, estavam do outro lado.
Começou então um corre-corre grande, vindo em direção à eles. O taxista tricolor, valente, ficou estático esperando que tudo não passasse de um exagero de quem corria. Já o carioca sumiu no meio dos que corriam.
O taxista tricolor ficou. E a história continua com ele.
Já com raiva porque havia perdido uma corrida de 40 reais, o taxista tricolor resolveu ir de encontro ao foco da confusão. Seu carro estava do outro lado da bagaceira. Sabia que corria algum risco, mas tinha que pegar o carro o quanto antes, para recuperar o prejuízo de ter perdido o cliente certo. Nada havia de lhe acontecer. Não com ele. Um cidadão de bem, com dois filhos para criar e muito anos de vida pela frente.
Ao passar pelo meio da confusão, o taxista tricolor percebeu que estava numa enrascada. Ouviu barulhos de tiro, mas imaginou que eram balas de borracha da polícia. Infelizmente já estava acostumado com a situação, afinal, em todos os protestos e reintegrações de posse ocorridos recentemente, a prática da polícia era esta.
Estava errado. Ao passar ao lado de um policial, recebeu o recado de que os tiros não partiam da polícia. Deitou-se no chão e esperou o tiroteio passar. Aos poucos, a zuada foi parando, mas começou o “barulho”. Levantado do chão, o taxista tricolor foi interrogado pela polícia como se tivesse participado de algum crime, sendo obrigado a ficar detido enquanto não conseguia provar que apenas procurava seu carro.
Para completar, desorientado e nervoso após o ocorrido, não achou seu táxi nos 30 minutos seguintes, debaixo de chuva. Felizmente, sobreviveram ao jogo de futebol, que eles e mais 5 mil pessoas escolheram como programa na noite de uma sexta-feira chuvosa no Recife.