'Tenho ódio de ver pessoas se aglomerando', diz enfermeira
O relaxamento das estratégias restritivas para conter a pandemia - que vem resultando em mais casos e mortes pela Covid-19 no Brasil
Enfermeira na Policlínica de Florianópolis, Adriane Sônia Martins, de 41 anos, usava seu conhecimento sobre a Covid-19 para proteger os parentes. Militante das medidas de prevenção, não imaginava que veria o problema atingir sua família. Em outubro, ela e o marido, Antônio Martins Filho, se contaminaram. Adriane teve sintomas, mas se recuperou em casa. Ele foi para o hospital e não resistiu.
O relaxamento das estratégias restritivas para conter a pandemia - que vem resultando em mais casos e mortes pela Covid-19 no Brasil - expôs quem tinha conseguido se cuidar nos primeiros meses de pandemia. De Norte a Sul do País, familiares de vítimas relatam angústia.
Com 43 anos, Martins Filho era motorista do Departamento de Trânsito da prefeitura de Florianópolis, sem comorbidades e "jogava os 90 minutos" de futebol toda semana. Por medo do vírus, tinha se afastado do esporte. Lavava todas as compras do supermercado e era visto pelos amigos como medroso.
Ao ser contaminado, desenvolveu hipoxemia silenciosa, sem sintomas nem falta de ar. "Agravou de um dia para o outro, com febre. Na tomografia, o resultado deu 50% do pulmão comprometido sem ele sentir nada. No dia seguinte, a saturação começou a cair", diz Adriane.
"Foi a pior notícia da minha vida, eu tinha muita esperança na recuperação dele. Pelos meus conhecimentos, sabia que poderia ficar com sequelas, mas tudo parecia reversível", conta a viúva.
"Trabalhei tanto pela conscientização e tive essa grande perda na minha vida." Martins Filho passou 17 dias entubado na UTI do Hospital Baía Sul, na capital catarinense, lutando contra a infecção que sufocou o pulmão e os planos da família.
Ainda afastada do trabalho, a enfermeira diz que não sabe como vai ser a volta às atividades. "Tenho ódio de olhar as pessoas nas ruas se aglomerando e pena dos meus colegas, que estão esgotados. Eu sempre escutei muitas piadinhas de pacientes, tipo: 'essa doença é coisa para derrubar o governo'; 'é coisa da mídia lixo'. Isso já me deixava muito triste."
Na família Carvalho, em Belo Horizonte, a esperança de que seria possível vencer o novo coronavírus durou só algumas horas. "O médico ligava toda noite para dar notícias. Um dia disse: 'o quadro é favorável'. Na madrugada do dia seguinte: 'ele não resistiu'". O professor e administrador público João Victor Teodoro Carvalho, de 22 anos, relata assim os últimos momentos do pai, o consultor de material de construção José Márcio de Carvalho, de 58 anos.
Dos quatro integrantes da família, pai, filho e mãe - a dona de casa Bernadete Júnia, de 56 anos - ficaram doentes no início de dezembro.
Na segunda semana de sintomas, o pai apresentou febre alta e palpitação. José Márcio, que era diabético e tinha sobrepeso, já tinha ido ao hospital, mas resolveu consultar o médico de novo. "Na segunda vez, já mediram a saturação e viram que estava baixa. O levaram para o oxigênio, depois para o CTI, mas na madrugada do dia 27 teve parada cardiorrespiratória e morreu. É uma doença traiçoeira", lamenta João Victor.
Em Manaus, 17 dias separaram a morte do casal Miguel da Silva Peixoto, de 74 anos, aposentado, e Rose Arcângela Silva, de 59, funcionária pública federal. "Nossa família foi totalmente destruída", diz Anne Gabrielly, a filha mais velha.
Quando todos em casa tiveram febre, dor de cabeça e cansaço, a família recorreu a um kit comumente receitado no Amazonas durante a crise sanitária, com vitaminas, inalação, ivermectina e azitromicina. Essas medicações não têm eficácia cientificamente comprovada para a Covid-19. Os filhos tiveram sintomas leves, mas Rose acordou mal em 3 de setembro, quando foi levada ao hospital e imediatamente internada, já com 70% dos pulmões comprometidos. Hipertenso e diabético, Miguel teve piora e morreu logo depois.