Junho de 2013: Os movimentos que mudaram o Brasil

Há dez anos, diversos grupos não centralizados foram às ruas para reivindicar direitos e transparência do poder público. Saiba quais foram as principais consequências dos atos ocorridos em junho de 2013 no cenário político no Brasil, e em Pernambuco

por Rachel Andrade qua, 14/06/2023 - 16:50
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil Manifestantes ocupam o Congresso Nacional em junho de 2013 Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O dia 6 de junho de 2013 ficou marcado na história do Brasil como o início de uma série de manifestações populares reivindicando mais direitos para a população, transparência, além de protestos contra a corrupção. O primeiro ato foi realizado em São Paulo, ainda como uma passeata local, organizada, principalmente, pelo Movimento Passe Livre (MPL), reclamando o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus em todo o estado. No entanto, a caminhada, até então pacífica, se tornou cenário de conflitos entre a população e a polícia, tornando o momento em um estopim de levantes populares realizados em todo o país nas semanas seguintes.

De acordo com o cientista político Victor Barbosa, as jornadas de junho não podem ser analisadas apenas a partir daquele período, devendo ser observado o contexto que já existia no mundo. “As manifestações de junho de 2013 não surgiram repentinamente, em um vácuo. Houve um contexto interno e externo favorável ao surgimento desses protestos. Podemos citar a Primavera Árabe no Oriente Médio e no Norte da África, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos da América e os Indignados na Espanha, entre outros. Portanto, naquela época, havia um clima propício à mobilização social”, explica ao LeiaJá.

Apesar do clima de revolta pelo aumento das passagens, que tomou conta daquela época, o doutorando em Ciências Políticas analisa que o acúmulo de cobranças transformou esse acontecimento em uma gota d’água. “As condições de vida da população, como saúde, educação, transporte e moradia, também desempenharam um papel importante”, observa.

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Não eram apenas 20 centavos

“O gigante acordou” era o mote que se espalhou por todo o território, marcando protestos nas capitais para o dia 20 de junho. No Recife, mais de 52 mil pessoas foram às ruas naquele dia 20, pedindo paz, direitos, o fim da corrupção, entre outras reivindicações. Uma dessas pessoas era Pedro Josephi, advogado e militante de movimentos estudantis desde a época da faculdade.

Pedro foi presidente do Diretório Acadêmico de Direito da Universidade Católica, onde fez sua graduação, e também ocupou o cargo de secretário-geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Nessa época, ainda em 2012, os grupos em que participava pensaram em abrir as pautas para a sociedade em geral, não apenas centradas nas demandas dos estudantes. “Na nossa gestão, em 2012, nós começamos a inserir o DCE junto com os movimentos na cidade, de discussão do direito urbano, direito à cidade, direito ao transporte”, explica Josephi ao LeiaJá.

A ideia era unir as demandas,de modo a fortalecer os movimentos. O Movimento Passe Livre, segundo Josephi, já tinha aliados e representantes no Recife, mas ainda eram realizadas atividades de forma sazonal, sem muita visibilidade, como em São Paulo, por exemplo. O advogado relatou que, diante do cenário existente na capital pernambucana, onde o poder de decisão estava concentrado nas empresas e em seus empresários, sem uma voz da sociedade civil, foi criada a frente única dos transportes públicos. “Era uma composição de vários outros movimentos. Então foi uma ideia que nós tivemos para poder ampliar a discussão, sair [do eixo] só dos estudantes, e poder pautar a sociedade”, lembra o advogado.

Para além dos transportes

As pautas levantadas por Pedro Josephi naquela época, e até hoje, em sua atuação como membro conselheiro do Conselho Superior de Transporte Metropolitano, representando a sociedade civil, certamente não se resumem apenas à questão do transporte público. Os movimentos nas ruas trouxeram à tona uma infinidade de demandas, vindas de grupos distintos, como o movimento Estudantes Pela Liberdade (EPL). Um dos membros ativos no grupo em 2013, Mano Ferreira, contou ao LeiaJá como as pautas liberais foram levadas às ruas, abordando outras demandas do poder público. “O sentimento geral de quem foi pra rua em junho de 2013 era de uma revolta contra o sistema político, contra a forma como o sistema político vinha funcionando no Brasil”, relata.

Em 2013 o Brasil sediou a Copa das Confederações e as capitais estavam se preparando para receber a Copa do Mundo de 2014, com estádios novos, reformas e construção de estruturas urbanas para a grande demanda de turistas que estariam no país. Mano explicou que um dos argumentos mais utilizados naquela época foi justamente a inversão dos valores e das prioridades nos gastos de verba pública. Estava tendo a inauguração de vários estádios que foram construídos para a Copa, todos muito caros, sem que houvesse a inauguração de muitas dos equipamentos de infraestrutura urbana que tinham sido prometidos como legado da copa nas diversas cidades, de tal modo que um dos cartazes muito presentes é que o país, a população, queria um SUS no selo FIFA. Um padrão FIFA de qualidade, queria educação no padrão FIFA de qualidade, queria transporte no padrão FIFA de qualidade”, compartilha Ferreira.

“Aqueles investimentos bilionários que foram feitos pra copa era um símbolo de uma inversão de prioridade do sistema político, de uma decisão de gastar o dinheiro público de uma forma irracional em coisas que não deveriam ser prioridade, enquanto os serviços essenciais, que são fundamentais para a dignidade como saúde, educação, transporte não tinham a mesma energia, não tinham a mesma atenção, não tinham a mesma qualidade”, complementa.

Manifestante com rosto coberto. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Violência do Estado

Um dos marcos das manifestações dessa época, apesar dos pedidos por paz e atos pacíficos, foi a resposta violenta por parte do poder público, como forma de reprimir os grupos organizados e retomar a ordem da população. No meio de manifestantes, grupos de vândalos, chamados na época de “black blocks”, foram identificados por depredar o patrimônio público. Um dos riscos que Pedro Josephi correu naquele período foi ter sido confundido com um integrante, e chegou a ser acusado de vandalismo. O caso ocorreu no mês de agosto, no dia em que um ônibus foi queimado na área central do Recife. 

“Quando começou o confronto, que o [Batalhão de] Choque estava lá sem permitir que nós passássemos. A gente até tentou conversar com alguns vereadores na época. Como não foi possível, só tinham dois, e disseram que não iam nos receber ali, a câmera estava toda fechada, começou um confronto, e eu e as outras lideranças saímos e fomos para a sede do sindicato dos professores, que é ali próximo. Depois a gente ouviu no rádio que houve queima de ônibus, e por a gente ser a liderança do protesto, eles nos imputaram a isso, ‘você foi o responsável pelo protesto da organização então os atos danosos, você é o responsável’”, relata Josephi. O grupo não chegou a ir a julgamento pois o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) pediu a dissolução do caso por falta de elemento material.

Para Mano Ferreira, o sentimento de revolta se chocou com o aumento dos índices de violência e confronto físico da polícia com os manifestantes, sem haver critérios claros em relação aos alvos do poder público. “A forma do estado brasileiro reagir a isso foi com violência, descendo o cacete, então ao mesmo tempo há uma revolta do ponto de vista do conteúdo das decisões do setor público, e uma revolta em função da forma, ou seja, há uma uma reflexão, um questionamento, uma revolta tanto contra o modelo das políticas públicas, as prioridades de política pública e a incapacidade de entregar, mas também a forma desconectada, a relação assimétrica entre o estado e a sociedade. A forma como o estado se coloca de cima para baixo, impondo a violência, sendo incapaz de ouvir a população, sendo um sistema fechado basicamente”, complementa.

Conflitos entre manifestantes e polícia. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

2013 em diante

A partir dos protestos de junho, o cenário político no Brasil tomou um rumo diferente, havendo um levante da direita e extrema-direita no país, impeachment presidencial em 2016, entre outros desdobramentos na sociedade. É o que observa Victor Barbosa:

“O legado deixado pelas jornadas de junho é tão diverso quanto às questões levantadas durante as manifestações. Embora não haja consenso entre os acadêmicos, é possível observar uma correlação entre as Jornadas de Junho, a queda brusca da popularidade de Dilma Rousseff, o movimento pró-impeachment e o surgimento de uma nova direita, exemplificada pelo MBL. Esses acontecimentos impulsionaram ainda mais o cenário político em Pernambuco e no restante do país para a direita”, observa.

Pedro Josephi observa que, apesar dos conflitos políticos, houve ganhos para a população devido aos trabalhos realizados pelas lideranças dos movimentos. “O grande saldo, o grande salto político que nós acreditamos, foi pautar a cidade, pautar o direito ao transporte junto com o direito da cidade. E que esse tema inclusive continua sendo uma necessidade”, analisa.

Para o advogado e militante, a pauta do transporte se mescla com diversos outros direitos da população, que foram conquistados com o passar do tempo, mas que ainda há um caminho a ser trilhado.

No mesmo tom, Mano Ferreira observa que as passeatas de junho de 2013 deram à população um poder que perdurou ao longo da década. “Acho que junho de 2013 teve também um papel de fazer com que uma geração de pessoas de diversos aspectos políticos fosse pra rua assim. Então acho que romperam um tabu pra muita gente. Então teve esse sentimento catártico de que as coisas estavam mudando e que a rua não era monopólio de um grupo”, finaliza,

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