Justiça nega indenizar mãe de jovem morto pelo Exército
Diego Ferreira, de 25 anos, foi assassinado a um quarteirão de casa durante a intervenção federal no Rio em 2018
Natália Viana - Agência Pública
Diego Augusto Roger Ferreira, de 25 anos, estava saindo de um posto de gasolina dirigindo uma moto a um quarteirão de sua casa, na noite do dia 12 de maio de 2018, quando foi morto pelo soldado Vinícius de Almeida Castro, do 15º Regimento de Cavalaria Mecanizado. Enquanto fazia sentinela diante da entrada da Vila Militar, o soldado e outro militar deram ordem para ele parar, mas Diego seguiu com sua moto a aproximadamente 40 quilômetros por hora. O tiro entrou na parte superior do tórax esquerdo e se alojou na região lombar. Morreu antes de ser atendido pelo Samu, que demorou cerca de dez minutos para chegar.
Como revelou a Agência Pública, o Inquérito Policial Militar, uma investigação feita pelo próprio Exército, determinou que o soldado teria agido em legítima defesa. Segundo os militares que deram depoimento – a família não foi ouvida – Diego teria tentado atropelar os soldados fortemente armados, mesmo que ele estivesse desarmado, de chinelos, e a 700 metros da sua casa. O inquérito foi arquivado na Justiça Militar e o soldado e seus comandantes nunca foram investigados.
O episódio ocorreu durante a Intervenção Federal no Rio de Janeiro em 2018, cujo interventor era o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro.
Agora, a Justiça Federal isenta novamente o Exército pela morte de Diego. Um processo indenizatório ajuizado pela Defensoria Pública da União pedindo indenização para os avós e a mãe de Diego foi julgado improcedente pelo juiz Marcelo Leonardo Tavares, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
“Não estamos falando, agora, em punição, estamos falando em reparação”, diz o defensor público Thales Arcoverde Treiger. “A sentença nega a reparação à família pela morte do Diego através das mãos do Estado. A violência, a morte dos ‘matáveis de sempre’, é uma política de Estado”. A Defensoria Pública vai recorrer.
A família pedia R$ 300 mil de indenização, mais uma pensão vitalícia em nome de Ana Claudia Roger Marcelina, mãe de Diego, e dos avós Vera Lúcia e José Luiz. “O garoto ajudava a gente, mesmo ele camelô era um garoto trabalhador, tanto que quando foi o velório lá foi milhares de gentes, todo mundo aqui da área ficou sentido”, disse o avô à Pública no ano do assassinato.
“Meu neto não era vagabundo, não. Eles podiam mandar ele parar. Vai que de repente ele não escutou, não sei como foi a situação. Mas mesmo assim, eles não têm esse direito de balear ninguém, não. Têm não”, repete.
Para o juiz, o soldado “agiu sob a égide de excludente de ilicitude de legítima defesa”. O local, na sua visão, era “perigoso”. Ele ainda ressalta que o soldado estava nervoso e chorando depois do ocorrido, e que teve “exíguo tempo” para reagir. “Desconsiderarmos essa circunstância seria verdadeira covardia com uma pessoa que teve um segundo para o que fazer na iminência de ser atropelada por uma motocicleta que trafegava a quase 40 km/h”.
Para o juiz, Diego estaria tentando atropelar o soldado para fugir do crime de interceptação, uma vez que a moto, emprestada, era roubada.
Ele diz que Diego agiu “com a finalidade de assegurar a execução e a impunidade do crime de receptação” e avançou sobre o soldado Vinícius “com a nítida intenção de atropelá-lo e fugir do local”. Diz, ainda, que o uso da pistola era o “único meio” que o soldado dispunha, e que fez o uso da força “moderadamente, já que efetuou apenas um disparo”.
A visão do que ocorreu não poderia ser mais diferente. Para o defensor público Thales Treiger “fica uma sensação de que não adianta nem a imagem”.
Ele analisou os vídeos descritos pelo juiz e diz que não houve intenção de atropelar o soldado – o que não faria sentido, ainda, por se tratar de uma localidade muito próxima da casa de Diego. Na sua visão Diego assustou-se por estar de chinelos e sem o documento da moto.
“Diego claramente está buscando fugir. Ele não busca matar ninguém. A própria perícia do Exército fala que ele estava na velocidade de uma bicicleta. Ao ler a sentença vemos que as nossas alegações não são analisadas da forma como seria adequada”, lamenta.
Outras indenizações
Não seria a primeira vez que a União teria que pagar uma indenização a uma vítima de militares do Exército. Em agosto de 2018, a Justiça Federal do Rio de Janeiro deu ganho de causa a Vitor Santiago, morador da Maré que ficou paraplégico após receber tiros de fuzil de soldados do Exército durante a Operação GLO de Ocupação do Complexo da Maré, em 2014. Desde então, Vitor se locomove em cadeira de rodas.
O juiz deu ganho de causa a Vitor e um valor de R$ 950 mil de indenização – R$ 550 mil por danos estéticos e R$ 400 mil por dano moral, além de ajuda mensal e R$ 50 mil de indenização para sua família. Também condenou a União a pagar uma casa adaptada no valor da sua, já que a perícia considerou impossível adaptá-la perfeitamente.
Na Justiça Militar, assim como no caso de Diego, o dano a Vitor nunca foi punido. O tribunal militar determinou que o soldado que atirou nele agiu por “legítima defesa imaginária” e absolveu-o.
Vitor e Diego são dois dos 35 civis mortos pelas Forças Armadas em uma década, segundo levantamento da Agência Pública reunidos no livro Dano Colateral da Editora Objetiva. As investigações são feitas pelos próprios militares, que na maioria das vezes têm como testemunhas apenas os soldados. Raramente a família da vítima é ouvida. De seu lado, os soldados invariavelmente afirmam que houve atentado à sua vida e que agiram em legítima defesa — usando sempre, em todas as comunicações oficiais, o curioso termo “injusta agressão”.
Para Treiger, a decisão de não dar indenização à família de Diego apenas segue um padrão que isenta militares do Exército de crimes que eles cometem – o que é ainda mais grave em um contexto de tentativa de golpe de Estado em que houve envolvimento de membros das Forças Armadas.
“A decisão por si só reforça a impunidade não apenas de militares, mas de agentes de segurança porque na medida do racismo institucional e estrutural em que vivemos, há uma ordem consentida de que casos assim se resolvem não pela lógica da segurança, pela lógica de assegurar a vida das pessoas, mas pela lógica da violência e da morte”, diz o defensor.