O crítico mais severo deve ser também o mais zeloso, aquele que calibra melhor sua balança, que observa com lentes mais agudas. Hoje, sexta-feira-nada-santa, em que começa a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, seria importante testemunharmos mais do que matérias de divulgação ou pesadas acusações. O que torna um evento literário algo melhor ou pior?
Impressiona que ainda existam aqueles que condenam as bienais, feiras, festas, festivais e afins, simplesmente por serem “produtos de mercado”, por não exercerem aquele papel da arte, de vigília crítica quanto a tudo que “engessa as mentes”. Ou, ainda, espanta que tantos façam parte de um grupo parecido, daqueles que veem nesses eventos a experiência limite, mais explícita, mais “baixa”, da convivência entre arte e mercado.
1. Não raramente, tais discussões caem numa quase divertida confusão: os eventos, que são lugares para trabalhar temas como leitura e literatura (seja com quais ferramentas e objetivos), são cobrados a partir daquilo que geralmente temos como papel da obra de arte. Fosse em praças públicas ou em recintos monárquicos, o local de recitação ou debate nunca assumiu as demandas do poeta, até porque estas são subjetivas e não se devem aprisionadas entre colunas e tijolos, tampouco constrangidas pela plateia do momento. Jovens autores que atiram livros nas ruas do Recife Antigo não podem ter seus escritos medidos por essa provocadora “heresia”.
2. Pedalando um bocadinho nessa confusão, esquecendo que alhos não são bugalhos, as manifestações artísticas nunca foram olhares externos. A literatura contemporânea não está fora da lógica de mercado, assim como os poetas gregos não estavam desligados da dinâmica social de suas cidades. Nem mesmo aquelas consciências que foram queimadas em fogueiras na Idade Média se acreditavam fora do seu meio. O espírito contestador do artista, em maior ou menor grau (para cairmos também no perigo da gradação), move-se dentro do universo que ele pesa, não é um satélite orbitando por fora. Ele não se quer além, mas sim Além do contexto. A arte não é invasora, não é ameaça alheia, sua natureza é a insurgência, a rebelião, é de dentro que ela protesta contra o sono crítico.
3. Vamos ingenuamente crer em outra fábula, que antes da cultura de massa a arte era superior (porque, por exemplo, junto com a dúzia de poetas alemães dos séculos XVIII e XIX que citamos como “grandes”, viveram milhares de escritores considerados medíocres; cada cem anos de qualquer sociedade não conseguiram destacar mais que umas duas ou três dezenas de artistas). Adotando essa crença romântica, desprovida de rigor analítico, preferiríamos um mundo com pouquíssimos e privilegiados leitores de uma literatura superior, ou ficamos mesmo com nossa Era Industrial, com milhões de leitores e incontáveis autores (de obras menores, medianas e algumas vezes excepcionais)? Se existe, verdadeiramente, um preço alto a pagar pela quase-democratização da informação, não estamos dispostos a comprar o risco?
4. OK. Esquecendo que evento literário não é obra artística, cobrando que ele assuma o papel de rebelião contra o sono crítico de nossa “cultura de massas”, será mesmo que é um produto mais mercadológico que outros, mais explícito, mais baixo, menos reflexivo? O que é mais mercado, uma bienal onde o autor vai autografar seus livros e participar de debates, ou veículos como o Programa do Jô (bancado por bancos, lojas, cervejas etc.). Será menos mercado aquele banner em tamanho natural na entrada da livraria, ou aquela crítica escrita no jornal impresso, feita com pressa, cheia de clichês, texto publicado entre propagandas de motel e rodízio de carnes? Não estamos aqui na coluna Redor da Prosa condenando qualquer desses meios, apenas questionando essa “hierarquia mercadológica”.
Cabe sempre ao autor decidir seguir a corrente, simplesmente, ou buscar rupturas enquanto navega na tradição. É dele a resolução de incorporar-se, sem grandes ressalvas, ou aproveitar o que há de melhor no mercado (a maior difusão) e, ao mesmo tempo, provocar olhares críticos sobre a cultura, até sobre sua própria obra.
Como lembra Umberto Eco, no ainda essencial e discutível Apocalípticos e integrados, “o silêncio não é protesto, é cumplicidade; o mesmo ocorrendo com a recusa ao compromisso”. E mais: a indústria editorial se distingue de outras, “nela se acham inseridos homens de cultura, para os quais o fim primeiro (nos melhores casos) não é produção de um livro para vender, mas sim a produção de valores para cuja difusão o livro surge como o instrumento mais cômodo”.
Esse homem de cultura possui mais liberdade de movimento, mais oportunidades de se manifestar sobre tais questões, em um programa de TV, com roteiro planejado (sem ele) e editado? Ou será ao ser citado em críticas – muitas vezes viciadas, inócuas, estranguladas por propagandas, “massificadas” como poucos produtos da indústria cultural? Não terá ele mais autonomia em evento literário, encontrando leitores, trocando ideias com eles, proferindo suas convicções, debatendo? Ali é possível até a crítica contundente ao próprio evento. Não creio que seja tão fácil detonar o Jô Soares sem ser cortado na edição, ou atacar os vícios dos críticos de um jornal dentro do próprio jornal.
Que a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco possa oferecer mais reflexões do que essas manifestações de amargurados e claques. Mais que essas críticas raivosas, espumantes, e também mais do que os discursos laudatórios, chatos elogios de sempre. Cobremos nossas próprias consciências, sobretudo, para que sejam edificadas com não menos criticidade do que exigimos dos produtores culturais e meios de comunicação.