Ah, se eu soubesse escrever! Sei que não sei. Ainda assim, escrevo teimosamente quando não resisto à vontade de falar sobre a boniteza.
E quanta boniteza eu vi em Maria Bethânia, falando, cantando, dançando, encantando, sofrendo, gostando, sentindo “Cartas de amor”, como se fosse o sol desvirginando a madrugada de milhares de pessoas na noite chuvosa de 19 de abril no palco do teatro, pernambucanamente batizado, Guararapes.
Se eu soubesse escrever, usaria a palavra apropriada para definir o êxtase do “estado de poesia” em que vive Bethânia. “Em estado de poesia”, a gente vê o que não existe ou, como diz Manoel de Barros, “transvê e quem buscar a verdade só vai encontrar beleza”. Quem é, pois, capaz de sondar o mistério de uma criatura que no palco revoga o sistema métrico, a lei de gravidade e a contagem do tempo? Ela não se mede; não pesa; não tem idade. Tem o tamanho da transcendência. Não caminha, levita como se pisasse em nuvens. E não passa. Fica para sempre agarrada na gente com o grude da palavra sentida e com a brisa da voz desencarnada.
Se eu soubesse escrever usaria a palavra exata para dizer que Bethânia tem a majestade das rainhas, a doçura das santas e o mistério das feiticeiras.
A majestade de todas as rainhas. Rainha dos contos de fada? De coroa, manto , cetro e rosto de boneca. Rainha de verdade? A inquilina dos castelos monumentais, senhora e vítima do vapor maligno das cortes. Ou Rainha do Maracatu? Negra imponente se movendo na batida mágica e insuperável de outro Rei, forte no tambor e meigo no nome e na vida, melhor, na vida do nome: Naná (Vasconcelos). Bethânia é uma espécie de Rainha-Mãe que se confunde e se funde na força da Mãe-Natureza. Em estado bruto ou na mais refinada expressão do ser humano: o esplendor da arte.
A doçura das santas e mistérios das feiticeiras. Como é isso? Que mistura é essa? Bethânia é mistura pura e nasceu com um defeito que é o do amar por inteiro. Mística. Mítica. Mistério. No oásis de Bethânia, tem Jesus, Maria, José e a companhia de todos os pajés. Não anda só. A armadura de Oxum guarda o corpo; gira o mundo no raio de Iansã; corta os céus com a tocha da fogueira de João Menino; reza com as três Marias; dorme na forja de Ogum; mergulha no corpo vivo de Xangô.
E neste oásis, a lágrima de Bethânia rega o capim que alimenta a vida e refaz nascentes. Nele, diz Bethânia, com a força dos sentimentos de quem canta e interpreta na simbiose da vibração: “Vivo de cara pro vento, na chuva. E quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de Ghandi cruzam meu peito: sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”. Quem há de mexer com esta haste fina? Quem há de mexer com quem não anda só, com quem caminha com a proteção dos bons espíritos e o cerco afetivo da multidão que adora vê-la, “cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”?
Pois bem, durante e depois do show fica evidente que ela é que mexe com a gente. Existem momentos de arrebatamento: é pura paixão; existem momentos de acolhimento, de aconchego: é pura ternura; existem momentos que não passam porque servem de luz para perceber e clarear os caminhos da existência.
Em troca do ingresso, recebi uma valiosa “Carta de amor”, escrita, declamada e cantada por ela; em duas horas, vi uma plateia eletrizada com o mais leve trejeito, o mais breve aceno e exultar diante do mais despretensioso requebro que, nela, tem a carga explosiva da sensualidade.
Tudo aconteceu no palco da simplicidade. Bethânia é o palco e qualquer palco perde relevância diante de Bethânia. E, para coroar a boniteza, manda um lindo recado de firmeza para os amores que estremecem com “Barulho” (Roque Ferreira): “Porque só beijo quem amo/Só abraço quem gosto/Só me dou por paixão/Eu só sei amar direito/Nasci com esse defeito/No coração”.