Este assunto foi tratado com a perspicácia e a competência habituais de Fernando Antonio Gonçalves no artigo Mulheres do III Reich (20.06.14), inspirado na obra de Wendy Lower, Mulheres do Nazismo, consultora do Memorial do Holocausto. A estarrecedora narrativa consumiu 425 páginas, complementada por mais 170 que contém 399 fontes de pesquisa e 25 ilustrações. Certamente, não caberia voltar àmatéria. No entanto, o que ficou remoendo o meu juízo e me encorajou a tratar da matéria foi o próprio Fernando que conclui o artigo assim: “As memórias jamais deverão ser resvaladas para o baúdo esquecimento. Pois, assim procedendo, proporcionam o surgimento de novas ideologias que menosprezam a dignidade dos seres humanos”.
O final do artigo mexeu em sentimentos humanitários e, naturalmente, me fez sentir o calor do sangue da ascendência e da descendência judia.
De outra parte, a revelação dos algozes nazifascista recaiu sobre um personagem, a mulher, atéentão, praticamente ignorado pelos horrores da crueldade, do massacre e do autêntico genocídio praticado pelos nazistas. Intrigante! A mulher, mãe, a quem a perpetuação da espécie deve a vida dividida no paraíso uterino; a quem a sobrevivência do ser desprotegidoénutrida pelo leite e aconchego do seio materno, enfim, a mulher que, por força da dominação preconceituosa do homem, sempre desempenhou um papel secundário na vida social, assumiu a tarefa de cúmplice e perpetradoras da extinção dos “inimigos”do Reich (500 mil envolvidas).
De fato, no primeiro momento, o texto intriga; em seguida, espanta; por fim, a leitura do livro faz compreender os acontecimentos: o veneno ideológico inoculado na formação da sociedade alemã, tendo como pilares a superioridade da raça ariana (definindo os inimigos a serem eliminados) e na doutrina do “espaço vital”(o lebensraum, a base do expansionismo imperialista e totalitário), geraram monstros que, na corajosa e insuperável visão de Hannah Arendt, agiam sob a serena ”banalidade do mal”, amparada pela “lei de Ninguém”que se tornou “responsabilidade de ninguém”no tribunal pós-guerra.
Em relação às mulheres, três crenças foram inoculadas em doses maciças: (a) aceitar irrestritamente a superioridade masculina; (b) “emancipar a mulher da emancipação feminina”contraditando a suposta igualdade de gênero pregada pelo bolchevismo inimigo figadal do movimento nazista; (c) procriar na maior escala possível a descendência alemã(mães com mais de quatro filhos eram agraciadas com a Cruz de Honra e, no gracejo sádico do Fuhrer, a mãe de seis filhos era mais importante do que um advogado).
Formada com esta carga doutrinária, a mulher nazista tinha o seu destino traçado: testemunha, cúmplice e assassina, sejam como parteiras, enfermeiras, burocratas, sejam como diligentes assessoras dos maridos. Ainda que com ânsia de vômitos, sinto-me no dever de registrar, pelo menos três personagens de episódios asquerosos: Liesel Wilhaus (Janoska, Polônia) praticava tiro ao alvo matando os judeus que passavam pelo seu quintal; Johanna Altvaver (Ucrânia) atraia crianças judias com doce e atirava na boca das vítimas com sua pistola de prata; Vera Wohlauf, grávida, acompanhou o marido num dos guetos poloneses para assistir ao massacre e se divertia chicoteando os judeus.
Infelizmente, os tribunais de desnazificação foram, no mínimo, benevolentes com as genocidas que, doutrinadas para matar seres inferiores, inimigos de uma “causa nobre”, obedeciam, como ocorre, atéhoje, a ordem interior de eliminar o outro, mandamento primeiro dos ódios inabaláveis. De fora para dentro, a consciência, jácontaminada, estava legitimada pelo poder político. Como de costume, alegavam que "não sabiam de nada" ou "cumpriam ordens".
No entanto, em meio àlouca disseminação do mal, luzem estrelas do bem e da compaixão, em gestos raros de bondade e em palavras proferidas de inconformismo, medo, desamparo, como atesta a carta de Annette Schucking (Novogorod-Volynsk–Ucrânia, 5 de junho de 1941): “Ah. mamãe, o mundo éum enorme matadouro”.