Máscaras, silêncios & outras coisas bestas

Cristiano Ramos, | qui, 22/10/2015 - 15:42
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“O que é essa música que se dilui e se distancia? Só a despedida é verdadeira, só agora inicia o longo desaprendimento de si. Antes que a vagarosa criança volte a experimentar, um a um, os seus rubores; uma a uma, imperiosamente, as suas hesitações”.

 Giorgio Agamben, em Profanações

Lá nos meados de 2009, à procura de fitas para uma Olivetti Lettera que daria de presente ao ator Marcos Macena, topei com outro admirado amigo, o escritor Gilvan Lemos, que brincou: “Quando vejo você naquele programa de televisão, penso como seria bom ter sua idade, sua memória e metade do seu jeito desenrolado”! Ao que devolvi sincero, quase sem pensar, como se trato redigido há tempos: “Troco na hora por um terço do seu talento, da sua saúde e do seu sossego”. Esse negócio nunca foi concretizado, e Gilvan partiu em agosto último, deixando-me com a lembrança constante de outra frase sua:

– A pessoa fica martelando coisas bestas, porque tem outras que nem dá pra martelar... Que a gente só engole, antes que nos engulam.

Eis que, nesta crônica pensada em convento e madrugada baianos, compartilho mais sobre minha vida pessoal do que jamais permitira! São coisas que não pude engolir, que cansei de martelar, que talvez devam mesmo é me mastigar e depois cuspir fora – seja lá onde, quando e de que jeito.

Durante passagem pela Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira), ouvi de gentilíssima produtora que os pernambucanos são muito bons em vestir e trabalhar suas máscaras. Não se tratava de crítica, até porque ela defende que todas as pessoas são – e precisam ser – um tanto mascaradas. Sua tese é que meus conterrâneos desenvolvem tão bem suas personagens que, ao tentarem se distinguir ou se desfazer das mesmas, ninguém acredita que seja possível ou saudável.

Como adverte Agamben, essa tentativa de retirar a máscara pode ser revelação de caráter (e não necessariamente bom caráter), a smorfia impressa no rosto do Eu quando tentamos nos esquivar daquilo “que em nós não nos pertence”. É plausível que, como versou Dante Milano, só a terra e suas derradeiras garras nos rasguem as máscaras. Ainda assim, é o que tentarei fazer, enquanto me lanço no ventre invisível da baleia que me seguiu até o Recife, borrifando-me serenos antigos e bastante adiados.

Quando menino, fui um tímido quase doentio, esquisito além das esquisitices que as pessoas estão dispostas a relevar em crianças, além de profundamente desinteressado por quase tudo que me vendiam como importante. Boa parte da família suspeitava (e não escondia) que esse temperamento daria em fracassos (para mim) e sofrimento (para meus pais); então, quando passei a concordar com eles, investi as forças guardadas, caçadas e roubadas para criar personagem mais viável, uma garatuja que parecesse menos incompatível com as páginas do mundo que eu necessitasse rascunhar e virar.

25 anos depois, cumpri muito além do planejado, e paguei preço assustadoramente mais alto do que estimara! Tornei-me atleta, aluno popular, estudante de jornalismo, apresentador de rádio e TV, mediador e anfitrião de eventos os mais diversos, coadjuvante ou mesmo protagonista em polêmicas e lutas bem mais nobres do que eu. No Recife e redondezas, transformei-me em figura pública razoavelmente conhecida (digamos assim: fui famoso por mais que os 15 minutos prometidos pelo vampiro da Pensilvânia, embora muito menos do que qualquer prefeito ou dançarina de banda brega consegue).

Até tragédia familiar e consequente busca de justiça findaram por requisitar essa nesguinha de popularidade. Provavelmente, não fosse pelos espaços e contatos conquistados sob a máscara de desenvolto jornalista e crítico literário, meu irmão sumiria nas cruéis estatísticas que trazem mais de cinco brasileiros assassinados diariamente pelas forças de “segurança” do País.

Ao mesmo tempo, lá pela metade desse caminho, algo começou a crescer e me doer. Porque disfarce estava vencido, a cola se desmanchava, convertia-se em toxinas cada dia mais ofensivas. A máscara mantinha quase todo esmalte exterior, enquanto seu avesso provocava reações ora discretas, ora já constrangedoras: passava mal e praticamente me dopava antes de ir à emissora de TV; sentia cólicas terríveis ao fingir contentamento em certos compromissos sociais; redobrei piadas e tagarelice, na esperança de que não notassem meu desconcerto; aproveitei doenças menores para justificar faltas causadas pelas enfermidades verdadeiramente sentidas etc.

Nem era preciso martelar muito, diagnóstico dos mais simples: ainda que eu não tivesse fracassado, ainda que meus pais carregassem certo orgulho pelo exitoso personagem, sentir-se bem era negócio que só dava ar da graça entre livros, pessoas amadas ou alunos (isto quando a politicagem ficava da porta da sala de aula para fora).

Os sintomas ganhavam força no mesmo ritmo em que me convencia do único tratamento possível: praticamente abandonar vida pública e deixar que somente os escritos saiam da caverna, assumir quase nada além da literatura e da docência, viver para família e uns doze amigos queridos, dedicar-me a casa e aos limites geográficos em que resto confortável – ou seja, não mais que meia dúzia de quarteirões em qualquer direção, a partir da mulher que amo e das duas felinas que mandam em nós dois!

Contudo, é preciso dar crédito às contingências: vivi monasticamente esse infindável 2015, morei praticamente anônimo e invisível em quarto/claustro de Campinas (ou melhor, no verde e silencioso quintal da Unicamp). Esse exílio calhou de ser exame final antes da terapia! O bicho do mato experimentou toca alheia e, enfim, não sobrou dúvida de que melhor era retornar ao próprio ninho; não àquele recente – largo, esmaltado e até vistoso –, mas ao anterior, de barro antigo e muito silêncio.

Torcida é para que as pessoas, gatas, livros e sustentos não me rejeitem pelos cômodos modestos (e personalíssimos) que tentarei manter sobre os alicerces da quietude, com a argamassa pouca que colher da timidez, e com os ossos que sobreviveram aos contorcionismos e à máscara vencida.

Máscara a quem serei sempre grato! Mesmo que, ao fim deste parágrafo, vocês me flagrem a abandonando sem maiores cerimônias, sem lágrima ou culpa; nada me preocupando se, longe de mim, ela amanhecerá em pétalas ou restará em cinzas (dispersas ou reunidas) que nenhuma palma ou página reconheça – afinal, sejam quais forem os disfarces, paredes ou fontes, algum dia partilharemos (vocês e eu) a incomensurável fortuna de uma dessas duas coisas bestas; flor e poeira.

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