“Seu Waldir, eu trago dentro do peito um coração apaixonado batendo pelo senhor. O senhor tem que dar um jeito”. Os versos da música ‘Seu Waldir’, lançada no primeiro disco do então iniciante Ave Sangria, fizeram barulho de verdade. O ano era 1974 e o país vivia em pleno regime de ditadura militar. A música libertária, despudorada e com leves tons de deboche da banda pernambucana não agradou aos ouvidos dos censores da época e foi proibida pouco tempo após o lançamento. A censura caiu como uma bomba de desânimo nos membros do grupo: Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Rafael (guitarra), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão), e eles acabaram parando antes mesmo de começar pra valer.
Porém, não esperava a história que várias décadas após a interrupção forçada, o Ave Sangria teria um resgate tão triunfal. Por que não dizer, absoluto. Já em outro milênio e em outro século, um outro público descobriu o rock psicodélico do grupo e resolveu tirá-lo do ostracismo. Em 2008, Almir de Oliveira, baixista do grupo, descobriu uma comunidade em sua homenagem no extinto (também quase voltando) Orkut e se admirou com tamanha repercussão dos fãs. A partir dali, novos ventos sopraram e deu-se início a uma verdadeira revoada.
##RECOMENDA##Em entrevista exclusiva ao LeiaJá, Almir credita aos mais jovens a retomada do Ave Sangria, alegando que as explicações para tal movimento são mais "existenciais do que racionais”. “Esse grupo no Orkut tinha mais de 900 jovens, alguém pirateou o disco e compartilharam isso. Até que entrei no grupo e foi uma alegria deles. Dessa história aí veio a juventude se interessando cada vez mais, descobrindo o Ave Sangria, até que em 2014 através do grupo Anjo Gabriel, teve um projeto e nós voltamos a um mesmo palco 40 anos depois para fazer o mesmo show. A partir daí, foram os jovens que nos trouxeram ao palco”. A admiração do músico é tanta que vira até verso: “Eu falo desde 2015: naquela época (anos 1970) nós éramos jovens, os mais velhos encarceraram nossa obra musical, agora nós somos velhos e os mais jovens nos tiraram do encarceramento musical”.
Marco Polo, vocalista da banda, concorda com a teoria existencialista que explica esse apelo da juventude com sua obra. “As letras da psicodelia são muito enigmáticas, isso é bom porque estimula muito a imaginação e o jovem tem a imaginação muito desenfreada. A nossa atitude é de rebeldia, eles se identificam, e foram os jovens os responsáveis por nossa volta. A gente tava num exílio e foi a partir da internet que os jovens começaram a descobrir e começaram a propagar isso, foi uma corrente”. Tudo isso, é claro, sem esquecer do talento e da qualidade da produção desses músicos.”Isso contribui pra tornar a mensagem com qualidade suficiente pra perdurar”, completa o cantor.
Por coincidência, ou não, o retorno do grupo se deu em um momento um tanto semelhante com aquele que os colocou à margem. Os músicos sentem isso como ninguém e veem no seu trabalho uma função que transcende à arte. “Hoje a gente tá, infelizmente, com coisas semelhantes e de certa forma piores. Essa coisa da censura, esse ambiente de intolerância, é muito preocupante. Eu pensava, quando tinha 20 anos de idade, que isso já estaria resolvido na era de aquário, mas ainda há muita resistência pra que cada pessoa seja ela própria”, lamenta Almir.
O amigo Marco complementa. “Naquela época, a ditadura estava instaurada e aqui o camarada quer instaurar a ditadura com um golpe. Mas, o clima repressivo de conservadorismo é o mesmo, sempre esteve entranhado na alma do brasileiro que nunca teve oportunidade de aflorar. Acho que o Ave Sangria está predestinado a chegar em momentos difíceis. Em um momento desnecessário, a gente chega com uma palavra necessária.É uma missão que a gente não escolheu mas tem que aceitar. É quase uma fatalidade”.
Poema de Almir, sob o pseudônimo de Almir Olir Brëjas, sobre os tempos atuais. Enviado pelo autor para esta reportagem.
Jovens embaixo e em cima do palco
Após recobrar o fôlego e tirar a poeira, o Ave Sangria brindou os novos e antigos fãs com o álbum ‘Vendavais’, o segundo de sua carreira, lançado em 2019 com ajuda de um financiamento coletivo. Com alguns dos membros já falecidos, e com a repentina partida do guitarrista Paulo Rafael, dois anos após o lançamento, Marco e Almir uniram-se a músicos de uma geração mais nova. Os acompanham no palco, hoje, Juliano Holanda, Gilú Amaral, Júnior do Jarro e Breno Lira.
O apoio dos novatos, porém velhos conhecidos do público e dos próprios músicos, acabou por trazer uma nova energia e uma sintonia inédita para a banda. "É muito estimulante porque o jovem é cheio de energia, tem sido muito harmônico e energético. São músicos de primeira qualidade porque, embora eu não seja grande coisa, pra tocar comigo tem que ser de primeira linha. (risos) Esse pessoal todo tem trabalhos autorais, mas eles dizem: ‘Quando subo no palco, eu sou Ave Sangria’, eles vestem a camisa e a alma”, diz Marco.
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Já Almir, conta que conheceu Holanda “novinho, de berço”, e Breno Lira, adolescente. O carinho por eles e pelos demais é tão grande quanto a admiração por seus talentos e entrega. “Quando eles estão tocando com a gente, o espírito deles é de músico da banda, eles são Ave Sangria também”. Possivelmente com eles, os remanescentes da formação original devem sair em turnê em breve para dar continuidade à divulgação do álbum ‘Vendavais’, interrompida pela pandemia do coronavírus em 2020.
Teatro do Parque
Toda essa energia e vontade de tocar música de qualidade poderá ser vista pelo público ao vivo, neste domingo (22), em um show que o Ave Sangria realiza no Teatro do Parque. Não à toa, um lugar especial para o grupo. “O coração tá feliz e com expectativa porque a gente tá voltando ao Teatro do Parque. Na última vez que o Ave Sangria tocou lá, ainda éramos Tamarineira Village, foi em 16 de fevereiro de 1973. E agora estamos voltando ao Parque. tem um significado muito grande esse espaço. Ele e o Teatro de Santa Isabel, são teatros que marcaram e marcam a vida musical e artística da gente, eu tenho um carinho muito grande por esse teatro, pela cidade e pelo público”, diz Almir.
No show, uma mescla de músicas dos dois álbuns da banda em uma noite que promete muita psicodelia, rock in roll e emoção. Quase um ano após o falecimento de Paulo Rafael, vítima de um câncer, sua arte será homenageada no palco, bem como as dos demais integrantes já falecidos. Como explica Almir. “Os músicos do Ave Sangria que não estão aqui (Israel, Agrício, Ivinho e Paulo), eles estarão sempre conosco, na nossa música, no nosso coração, no nosso sentimento e na nossa alma. Homenagear é agradecer. A minha gratidão é por eles terem lutado comigo e com Marco Polo pra gente construir o que o Ave sangria é”.
Serviço
Ave Sangria no Teatro do Parque
Domingo (22) - 18h
R$ 35 (meia-entrada) e R$ 70 (inteira), à venda pelo Sympla
Fotos: Divulgação