Tópicos | Bourbon Street

Os corais gospel são os primeiros que o público ouve assim que passa pelos portões do hipódromo de New Orleans, no Sul dos EUA. É uma grande tenda, para duas mil pessoas, e talvez, não por acaso, erguida ao lado da entrada do festival. Existe ali algo mais que um show. Como se estivessem em uma igreja do Harlem, em Nova York, os negros se levantam, repetem louvores e chegam a chorar diante de uma força que sai de mil vozes. A fé que os jovens protestantes colocam naquilo que cantam para salvar almas não está só na música religiosa.

Ela aparece por sete dias de outras formas, sob outras crenças, e em doze palcos que abrigam mais de 600 apresentações de um legado cultural que ajudou a reerguer uma cidade dos escombros.

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New Orleans, quase dez anos depois do furacão Katrina, apaga os rastros do trauma com um festival de música e gastronomia que leva para a cidade algo como US$ 300 milhões por ano. Sua 45ª edição terminou hoje, depois de anunciar que seguirá com o mesmo patrocinador (Shell) por mais cinco anos. O Brasil foi o país homenageado da temporada, mas com problemas de divulgação e atrações, em geral, pouco representativas. A boa notícia é que, de 16 a 24 de agosto, o Bourbon Street, de São Paulo, fará seu festival anual com cinco das atrações que passaram pelo New Orleans Jazz Festival com clamor das plateias.

Quatro jamais foram ao País: o pianista Allen Toussaint, adorado como um totem pelos norte-americanos; o grupo Brass-a-Holics, uma explosiva brass band de funk, rock e soul; e as cantoras Mia Borders e Germaine Bassil. "Estou feliz em ir. Os músicos que tocam por lá só falam coisas boas do seu país", disse Tussaint ao empresário Edgard Radesca, dono do Bourbon, depois de se apresentar em um dos palcos principais. O quinto, que já assinou contrato, é Walter Wolfman Washington, que esteve no Brasil uma vez.

Wolfman é uma demonstração de força de New Orleans, um bluesman de voz rouca e fraseados rústicos que ouviu muito os guitarristas de Marvin Gaye e James Brown para criar sua identidade no início dos anos 70. O festival o colocou duas vezes no palco em dias e formações diferentes. No segundo, ao lado do tecladista Joe Krown, tentava esconder o esgotamento físico da temporada de noites como atração principal viradas no bairro noturno Frenchman Quarter usando óculos escuros.

A invariável qualidade dos artistas que tocam ao mesmo tempo é um mérito e um drama. Qualquer tenda terá uma atração com algo de excepcional a qualquer hora, entre 11h e 19h (quando todos os shows terminam em sincronia perfeita). O Acura e o Samsung são os maiores, mais pop, dos grandes patrocinadores. No primeiro, Bruce Springsteen fez um show levemente fora do seu habitual no sábado, com um paredão de sopros e solos de sax e trombone, como se quisesse criar sua própria brass band. As origens de seu rock and roll, mostrava, estavam todas ali. A cidade entendeu que era com ela e vibrou no maior show do festival, com 2h45 de duração.

A angústia é perceber que a felicidade em New Orleans tem preço. Quando ainda havia mais de uma hora para Bruce terminar, Johnny Winter subiu ao palco vizinho, a Tenda Blues. Dar as costas para Bruce Springsteen não é fácil, mas ignorar o tornado do Texas pode ser pior. Johnny Winter é uma incógnita. De saúde debilitada pelo uso contínuo e prolongado de drogas até os anos 90, ninguém nunca sabe se ele vai mesmo aparecer. Mas lá estava a lenda, arqueado, com a pele grudada aos ossos e as tatuagens do braço desbotadas, seguindo para seu posto em passos trêmulos, espremendo os olhos para se acertar a cadeira em que passaria todo o show. Seus dedos mais lentos batem na trave em alguns solos, mas provocam o mesmo incêndio dos anos de jam session em que ele tinha Jimi Hendrix como baixista. A plateia desobedece as normas da tenda e deixa seus lugares para aplaudi-lo de pé.

A angústia vira aflição quando a mesma faixa de horário tinha, na sexta, o southern rock do Alabama Shakes, a cantora Chaca Khan, o jazzista Pharoa Sanders e o soulman Charles Bradley & His Extraordinaires. O repórter tenta todos ao mesmo tempo, programando ainda uma passada para ver Charles Bradley. Mas Bradley entra em erupção assim que é recebido pelo público. Ele se atira ao chão, rodopia como James Brown e busca no peito um agudo assustador. O homem que parece sentir o passado de morador de rua em cada canção pode mudar tudo em segundos, com um rhythm and blues de salvar os piores dias. Sua fé é a mesma dos garotos do gospel e seu poder de conversão é imediato. Não há como sair da frente de Bradley até que ele cante a última nota.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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