Após o cancelamento oficial do Carnaval 2022 em Olinda, anunciado na última quarta (5) pelo prefeito da cidade Professor Lupércio, bem como a suspensão da festa no Recife, divulgada no mesmo dia, uma polêmica em torno da Folia de Momo deste ano instaurou-se na internet. A comercialização de diversos camarotes e festas privadas, que prometem - aos que podem pagar - a garantia de carnavalizar no período, tem gerado críticas quanto à elitização do evento e aos riscos inerentes ao modelo.
A folia aberta, na rua, tornou-se um dos grandes trunfos dos Carnavais brasileiros. Em Pernambuco, Recife e Olinda despontam como dois dos destinos mais procurados por foliões de todo o mundo, ávidos pela brincadeira chamada com muito orgulho por muitos de “democrática”.
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Em Olinda, por exemplo, 3,6 milhões de pessoas brincaram no último Carnaval, em 2020, pelas ladeiras históricas da cidade, fato exaltado pelo próprio prefeito, Professor Lupércio, na ocasião do anúncio do cancelamento da folia este ano. “Sabemos muito bem que o Carnaval de Olinda, sem desmerecer nenhum município, e sem qualquer soberba, mas todos sabem que passam por aqui mais de 80 países, é um Carnaval conhecido mundialmente, que gera emprego direto e indireto. Circulam por aqui mais de quatro milhões de pessoas, é um dos mais democráticos até porque com dinheiro ou sem dinheiro aqui se brinca”, disse em entrevista coletiva à imprensa.
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No entanto, ao que tudo indica, apenas os foliões com dinheiro terão a possibilidade de brincar em 2022. O cenário epidemiológico atual que, além da pandemia do coronavírus ainda conta com uma epidemia de influenza, impossibilita a realização de um evento do porte do Carnaval de rua. Porém, as festas privadas continuam liberadas para públicos de até 7.500 pessoas - com apresentação de esquema vacinal completo e/ou testagem negativa para Covid-19 - o que tem gerado desconforto e críticas da população.
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‘Carnaval de rico’
Os Carnavais privados sempre existiram, nos grandes bailes realizados em clubes e nos camarotes que promovem a festa para grupos seletos. Esses últimos, sob o argumento de oferecerem uma “experiência” ao folião, promovem benesses como spa, customização de fantasias, cabelo e maquiagem e praça de alimentação, além de shows com artistas badalados da música brasileira e internacional, não necessariamente de cunho carnavalesco. A diferenciação no estilo de festa e nos serviços prestados costumam gerar críticas e, naturalmente, um separatismo entre o ‘folião comum’ e o ‘folião gourmet’.
Os camarotes oferecem boates, lounges e outros serviços que prometem uma "experiênci" ao folião. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens/Arquivo
Segundo o cientista social, antropólogo e presidente do Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco, Cássio Raniere, esses espaços geram uma “‘fetichização’ da cultura do consumo amplamente difundida” em nossa sociedade” que por sua natureza é “sustentada pela desigualdade que marcadamente se apresenta nas diferenças reproduzidas em torno do gênero, da classe e da cor da pele”, disse em entrevista exclusiva ao LeiaJá.
O antropólogo complementa: “Os camarotes, que tendem a reunir uma parcela menor da população, são espaços de distinção social que reproduzem os aspectos da desigualdade, por onde o poder se materializa, através do consumo e, claro, em desfrutar do conforto e privilégios destinados aos poucos que podem pagar. Evidente que existem diversos tipos de camarotes, com públicos e serviços diversos, contudo, a adesão é de uma maioria com renda familiar acima da média, sendo comum a população, com menor potencial de compra, acessar estes espaços, através da antecipação do ‘sonho’ oferecida pelas operadoras de crédito”.
Cássio Raniere Ribeiro da Silva é Cientista Social, Antropólogo e Presidente do Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco. Foto: Cortesia
Sendo assim, apesar do Carnaval de rua ser entendido como grande trunfo da folia brasileira, os espaços exclusivos ainda causam certo fascínio e se mantêm quase inabaláveis a despeito das críticas e opiniões divergentes. A ‘camarotização’ do Carnaval, sobretudo no Recife e em Olinda, vem sendo motivo de polêmica há muitos anos, porém, os camarotes continuam lotando a cada ciclo carnavalesco, o que parece que se repetirá em 2022, a despeito dos riscos epidemiológicos vigentes.
Cássio frisa o cenário. “Agora, mesmo com as novas variantes da SARS-CoV-2 em circulação, a H3N2 e as duplas infecções, o carnaval se anuncia ainda mais ‘camarotizado’, puxado pela iniciativa privada, que vem oferecendo uma cartela de shows e benefícios desde o ano passado. Com a desvalorização do real, a alta da inflação e o desemprego, os serviços culturais tenderam a ficar mais caros e o consumo reduzido a uma parcela da sociedade que não sentiu ou pouco sentiu o impacto econômico que estamos passando”.
Esse movimento, mais uma vez, tem gerado muitas críticas nas redes sociais e a folia de 2022 tem sido apontada como “carnaval de rico”. A preocupação com o desvirtuamento da gênese da festa e a impossibilidade dos menos abastados brincarem parece ainda mais gritante do que em anos anteriores. No entanto, para o antropólogo, a alta camarotização deste ciclo carnavalesco não impedirá sua vivência aos menos afortunados “Provavelmente, a população, acostumada à folia nas ruas, não vai deixar de realizar suas comemorações, seja em casa, na praia ou nos bairros em que reside, em grande medida alavancadas pela ideia de segurança trazida pela vacinação”.
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Além disso, Cássio também acredita que esta passagem não deve imprimir marcas permanentes na cultura do Carnaval como a conhecemos. “ Ao analisar bem a história do carnaval, veremos que os bailes realizados em clubes nunca deixaram de acontecer em detrimento da festa de rua, pelo contrário, passaram por modificações, ao longo do tempo, num movimento comum à própria feitura da folia. Este ano teremos um carnaval atípico, mas retornaremos às ruas aos milhões, imbuídos do melhor sentimento carnavalesco, tão logo estejamos em condições sanitárias que assegurem a proteção do nosso bem maior – a preservação da vida. Certamente, os gestores culturais, os trabalhadores da cultura e as lideranças das agremiações carnavalescas deverão se reunir para projetar o carnaval pós-pandêmico, de modo que todos os anseios sejam atendidos e pactuados coletivamente”.
E os riscos?
Para além da discussão quanto à pertinência e legitimidade da ‘camarotização’ do Carnaval, o ano de 2022 traz outro elemento que contribui para a complexidade das discussões: o risco epidemiológico. Apesar da chegada da vacina contra a Covid-19, os números da pandemia ainda são preocupantes. Na primeira semana de janeiro, Pernambuco contabilizou 647.427 casos confirmados de Covid-19. Como se não fosse suficiente, o surto de Influenza A H3N2 corroborou com o aumento do índice de doenças respiratórias e consequente alta de solicitações de leitos de UTI, sem contar os casos de coinfecção que sobrecarregou a rede de leitos. O Governo do Estado já estuda uma possível volta de medidas restritivas.
Mas, apesar dos números alarmantes, a última atualização do Pacto de Convivência com Covid-19 no estado permite a realização de eventos fechados com público de até 7,5 mil pessoas ou 80% da capacidade do local. A partir disso, as vendas para os camarotes do Carnaval vêm acontecendo desde 2021. Os especialistas em saúde veem o movimento com preocupação.
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De acordo com a infectologista pediátrica e docente do curso médico da UNINASSAU e Universidade de Pernambuco (UPE) Alexsandra Costa, a realização de eventos de tal porte no atual cenário epidemiológico é arriscada e nem mesmo a exigência de comprovação de vacinação e testagem negativa garante a segurança de seus frequentadores. “A exigência de cartão de vacina ou mesmo a testagem de pessoas que vão entrar nesses eventos não vai garantir que não vai haver contaminação. “A gente sabe que existe uma porcentagem do teste que vai passar, que são os falsos negativos, e a gente sabe que vão ter pessoas que vão estar assintomáticos, vacinadas com todas as doses, com reforço, mas que podem naquele momento estar portadoras do SARS-CoV e contaminar outras pessoas, especialmente as que são do grupo de risco. Por ser portador de um esquema completo vacinal ou um teste negativo pra Covid-19 não afasta o risco de contaminação”.
Reprodução/Twitter
A infectologista frisa ainda que a epidemia de influenza é outro fator a ser considerado dentro do atual cenário. “A gente tem agora duas situações, além da pandemia que estamos vivenciando há quase dois anos a gente tem um surto em um período que não é esperado de gripe, que isso também é um reflexo da pandemia E agente vem acompanhando paciente infectados pelos dois agentes, então, não é prudente liberar eventos para um quantitativo desse de pessoas”.
De acordo com a Dra. Alexsandra, em Pernambuco, cerca de meio milhão de pessoas ainda não tomaram a segunda dose da vacina contra a Covid, tampouco o reforço. Ela explica que a quantidade de não vacinados corrobora com a aparição de mutações do vírus e a preocupação é que elas surjam cada vez mais perigosas aumentando a gravidade da doença e consequente mortalidade. Sendo assim, é imprescindível que as pessoas sejam completamente vacinadas. “Preciso incentivar cada vez mais o esquema vacinal, o início da vacinação para aqueles que não iniciaram, completar o esquema vacinal para aqueles que ainda não completaram. De fato, nós não temos nenhuma condição epidemiológica atual de liberar um Carnaval, de liberar eventos de mais de mil pessoas por conta dessa dificuldade que a gente tá tendo ainda de levar mais adiante a vacinação contra a Covid-19”.