Tópicos | Maria Lúcia Gomes dos Prazeres

Cravado no coração do centro do Recife, no Bairro de Santo Antônio, o Pátio de São Pedro é um espaço de energia incomum. Situado nas proximidades do Pátio do Carmo - onde foi exposta a cabeça do líder negro Zumbi dos Palmares, após sua morte -, e da casa de Badia - neta de africanos considerada símbolo da cultura negra na capital pernambucana -, no Pátio do Terço; o lugar costumava servir de palco para diversas atividades da cultura negra, no início do século 19. Ali aconteciam quermesses, feiras e apresentações musicais além de ter acolhido uma casa de candomblé dedicada à orixá Oyá, ou Iansã como também é conhecida. 

Essa energia continua sendo semeada através de um evento que começou um tanto descompromissado e acabou transformando a vida cultural da cidade bem como a de seus atores sociais. A Terça Negra vem agitando as noites do Pátio de São Pedro, bem no início da semana, dando espaço para grupos da cultura negra que fazem maracatu, afoxé, samba, samba reggae, hip hop e até manguebeat. Resistindo às mais diversas limitações e dificuldades ao longo das duas últimas décadas, a festa ganhou proporções inimagináveis e hoje figura como um movimento de identificação e valorização do povo negro, com caráter não só artístico e cultural, mas, também, político.  

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A Terça Negra começou a partir das reuniões dos integrantes do Movimento Negro Unificado do Recife, no final dos anos 1990, que costumam estender suas reuniões no Pagode do Didi, também no centro da capital. Demir da Hora, atual coordenador do evento, acompanhou de perto o início da festa, ainda como músico. Na época, ele não podia imaginar a dimensão que a Terça conquistaria: "Eu não imaginava nem chegar aos 20 anos e nem hoje ser o guardião da terça negra, eu hoje estou coordenador, então me sinto como um guardião desse projeto que a gente tem que insistir que viva pra sempre. Porque não é só resgate, é manutenção dessa cultura que a gente vive hoje em dia, que a gente sempre viveu, a cultura negra", diz. 

No início de 2000, a Terça Negra mudou de endereço e se instalou no Pátio de São Pedro. O casamento entre evento e local não poderia ter sido mais feliz e a festa encontrou ali sua casa definitiva. A princípio, o evento acontecia semanalmente, atraindo para o centro uma vida noturna inédita para o início de semana. Além do surgimento de outros eventos, como a Terça do Vinil, a Terça Negra passou a motivar o surgimento de novos grupos e artistas, como o grupo de samba reggae Raízes de Quilombo. "A importância da Terça Negra foi exatamente isso, esse tempo todo a gente estimulou muita gente a fazer arte e a correr atrás, sem citar os artistas que começaram aqui, como Lucas dos Prazeres. A sensação é de missão cumprida", comemora Demir. 

No entanto, a proliferação de arte e artistas a partir do evento é apenas um dos sintomas de sua força e importância para o povo negro. A pesquisadora  Maria Lúcia Gomes dos Prazeres, autora do livro Terça Negra no Recife: Música, Dança, Espiritualidade e Sagrado, aponta aquele espaço como sendo uma ferramenta de descoberta e afirmação: "O que nos atrai é a afirmação da nossa identidade, mas essa afirmação exige que a gente se aprofunde, que a gente conheça mais sobre a nossa história. Esse movimento de estudo fez com que eu escrevesse o livro. Eu quis mostrar como nós estamos construindo a nossa história", conta a estudiosa. 

No livro, 12 personagens que têm a Terça Negra como parte fundamental de suas histórias contam sobre seus processos de identificação e de sua vivência a partir do movimento. Para Lúcia, cada relato é uma manifestação de uma luta maior que ao ser registrado acaba ganhando outra proporção: "A história oral ela é vista, contada, vivida, mas o tempo vai fazendo com que ela tome uma outra dimensão. Então, quando a gente registra, a gente registra as pessoas. Cada uma dessas pessoas tem uma história significante para o fortalecimento da cultura negra no estado de Pernambuco".

20 anos

As comemorações pelos 20 anos da Terça Negra já começaram neste mês de dezembro de 2019. Para 2020, a ideia é continuar celebrando a despeito das dificuldades que se impuseram ao evento nos últimos anos. Desde 2012, a festa deixou de ser semanal e chegou a passar um período sem acontecer. Pela força de vontade de seus produtores, e pela necessidade de se haver um espaço como esse na cidade, a Terça voltou ao calendário oficial do Recife acontecendo em caráter especial com edições a cada 15 dias e, também, durante a semana pré-carnavalesca. 

Para o próximo ano, essa semana que antecede o Carnaval já está garantida, de acordo com o coordenador Demir. Um projeto para a comemoração das duas décadas do evento foi submetido ao Funcultura porém não saiu vitorioso. "Não fomos contemplados, fica aqui o meu protesto. Eles usam pareceristas de fora para analisar os projetos e no fim a gente vê que as mesmas pessoas são contempladas todo ano. Fica só o protesto, sem ‘mimimi’, continuamos na luta não vamos parar jamais", lamenta ele. 

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O sentimento de resistência é maior a cada ano, e o otimismo para que a Terça Negra se mantenha firme, também. "Aqui é o lugar em que a gente se alimenta e onde a gente doa. É o mesmo princípio da casa de religião de matriz africana, o axé é uma coisa que se recebe e que se doa", sintetiza a pesquisadora Lúcia dos Prazeres, que relembra que "desde que o primeiro negro pisou no Brasil", o movimento natural desse povo é resistir. "Já resistimos esses anos todos, não tem como não ser otimista". 

 

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