A filosofia é, por definição, uma atividade inquietadora da razão; por isso o grande jusfilósofo espanhol Ortega y Gasset, amigo de meu Mestre Viehweg, dizia que ela é pantônoma, isto é, questiona como devem ser todos (panta) os setores da vida humana, e autônoma, ou seja, tem que se resolver, sem apoio em nada além de em si mesma. Os filósofos e jusfilósofos hoje discutem acirradamente o problema do paternalismo na ética, ou seja, o debate sobre se cabe constranger pessoas para seu próprio bem, se a ordem jurídica positiva deve proteger alguém de perigos quando esse alguém, sendo capaz e adulto, rejeita tal proteção. Todos nós, pobres mortais, vamos enfrentar nossa própria morte e, antes disso, a de muitos de nossos entes queridos.
Jovens, acordem para a filosofia! Ela, o mais prático dos estudos humanos, que essa sociedade contemporânea maluca condenou a chamar de “coisa de doido”, é nosso maior apoio.
O paternalismo é, por definição, contrário à autonomia da vontade ou à autodeterminação sem restrições e vários exemplos podem ser apontados: proibição de fumar, obrigatoriedade de usar cintos de segurança, cadeiras para crianças nos automóveis e capacetes para motociclistas, além de alimentação regrada e demais prescrições para o bem da saúde, dentre outras medidas de proteção; o médico que não revela ao paciente os resultados de seus exames, para protegê-lo da tristeza que advirá da informação; regras contra a eutanásia a “boa morte” desejada pelo paciente e/ou por seus parentes, em casos de muito má qualidade de final de vida; normas para inibir o suicídio; regras para obrigar um paciente adulto e psicologicamente saudável a tratamento médico, diante do fato de que se houver recusa haverá a morte, como no caso da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, e outros exemplos, muitos e atuais.
A expressão “paternalismo” tem óbvia origem no poder-dever que têm os pais de proteger seus filhos menores de idade mesmo contra sua vontade, estabelecendo uma relação assimétrica (desigual) de superioridade e inferioridade. No caso do direito, a metáfora do paternalismo é mais séria, pois se refere, sobretudo, a relações coercitivas entre o Estado e o cidadão, indo além do âmbito meramente moral. Quer dizer, pode o Estado nos obrigar a fazer o que considera nosso bem, contra o que nós mesmos, adultos, assim consideramos? Usando a coercitividade do direito?
Possibilitar um máximo de informação sobre a situação, do ponto de vista do conhecimento, e apoiar as consequências por qualquer decisão tomada, do ponto de vista ético, seria um caminho antipaternalista sugerido aqui. No caso médico mencionado acima, em outras palavras, um direito que vise estrategicamente positivar uma ética da tolerância não deve apoiar a falta de informação do médico para o paciente, mas sim criar regras e instituições para apoiar psicologicamente o doente e fazê-lo suportar a informação. Em caso de recusa à transfusão de sangue, por exemplo, o paciente deve ser informado de tratamentos alternativos, mesmo que tudo indique que venha a falecer se persistir na recusa (mas o paciente precisa ser adulto e apto a decidir, repita-se). Para a filosofia da tolerância e da autodeterminação, o aparato coercitivo do Estado precisa garantir seu direito de morrer.
Com relação a outros hábitos, como alimentação pouco saudável e ingestão de outras substâncias, em tese prejudiciais ou mesmo fatais para a saúde física e mental, a estratégia de uma filosofia da tolerância é defender que o direito deve inibir o paternalismo, ainda que o sistema público de saúde precise investir mais recursos para cuidar dessas pessoas. Uma sociedade que alberga quaisquer doentes, ou pessoas desigualmente bem sucedidas, em todas as acepções, tem que zelar por suas incapacidades e impedimentos: mesmo se as escolhas do paciente cooperaram para sua condição, se ele ingeriu drogas maléficas ou comeu gordura saturada (uma droga maléfica), se ele amou as pessoas “erradas” e é infeliz, se ele não se exercitou adequadamente, a sociedade é o meio ambiente responsável. Ele pagou seus impostos, explícitos ou embutidos, como as prejudiciais salsichas que comeu, ele tem seus direitos fundamentais.
Argumento em prol do paternalismo é o prejuízo de caráter público que uma decisão individual pode provocar – ou certamente provocará. Para ficar no campo da saúde, que não é o único, a perspectiva de o sistema previdenciário estatal e mesmo as companhias privadas de saúde se verem prejudicados por fumantes, praticantes de esportes radicais infelizes em uma manobra que os aleija ou apreciadores de guloseimas pouco saudáveis. Mas pense-se também, para exagerar os confrontos éticos, nos consumidores de drogas extremamente nocivas, de um lado, e as pessoas que apenas querem – ou não conseguem deixar de – ser absolutamente sedentárias, de outro. Em ambos os casos, há um risco, que é estatisticamente certeza para um grande número de pessoas, de que essas decisões individuais sobre o próprio bem prejudicarão a coletividade, isto é, os recursos do sistema público de saúde. O direito – escolha imposta coercitivamente e que (justificadamente) proíbe atos mais graves como homicídios e torturas – deve obrigar alguém a fazer “o certo” nesses exemplos? Eis a grande e atual questão do paternalismo, que cabe a cada um de nós responder.