Daniel Cavalcante Silva

Daniel Cavalcante Silva

O Direito de Discordar

Perfil: Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados, Professor, Membro do Grupo de Pesquisa em Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC), Membro Honorário da Associação Internacional dos Jovens Advogados (AIJA), MBA em Direito e Política Tributária, Mestre em Direito e Políticas Públicas.

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O mandato representativo popular e o mandato representativo do advogado: uma curiosa analogia

Daniel Cavalcante Silva, | qua, 22/08/2012 - 09:20
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A evolução política do homem passou por uma série de transformações ao longo da história. Neste ínterim, engendrou-se experiências políticas, como a teoria aplicada no regime feudal, na monarquia, no parlamentarismo, enfim, em todos os regimes representativos. Entretanto, por mais que houvesse diversidade nas condições sociais e históricas de cada país ou Estado, sempre se considerou a premissa da representatividade como a viga fundamental de qualquer regime político.

O regime representativo, independentemente de sua diversidade, é um pressuposto da deliberação popular, que, por ordem natural de unanimidade política, elege ou depõe um presidente ou, até mesmo, um rei. Nesse sentido, o regime representativo possui a sua base propedêutica no “pacto social”, difundido por Jean-Jacques Rousseau, com a seguinte finalidade:

“Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia senão a si mesmo e fique tão livre como antes”. 1

O contrato social induz à suprema direção da vontade geral, fazendo com que esta “associação” produza um corpo moral e coletivo. A pessoa pública formava-se pela união da vontade de todas as outras pessoas e o corpo político, o qual era por seus membros chamado de Estado, representava a soberania do povo.

Com o decorrer da história, como alhures explicitado, vários regimes representativos foram se sobrepondo, mas sempre com a ideia basilar da deliberação pública como forma de manutenção do pacto social. Hodiernamente os pilares políticos são os mesmos, com uma roupagem diferente, mas com a mesma ideologia representativa.

Na acepção política, a expressão “regime representativo” designa o sistema constitucional no qual o povo se governa por intermédio de seus eleitos. Esse regime implica, portanto, em certa participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, participação que se exerce na forma e na medida da unanimidade política. O ponto de vista jurídico possui um paradigma semelhante, como ensina o Prof. Darcy Azambuja, verbis:

“Do ponto de vista rigorosamente jurídico, o regime representativo repousa na presunção legal de que as manifestações da vontade de certos indivíduos ou grupo de indivíduos têm a mesma força e produzem os mesmos efeitos como se emanassem diretamente da nação, em que reside a soberania”. 2

Os substratos gerais da representatividade pública estão na soberania nacional, na vontade geral e no “eu comum”, que seria a unidade da vontade geral, descrita por Rousseau. A nação delega o exercício do poder aos seus representantes, continuando, porém, como a fonte de toda autoridade.

A ideia de eleger representantes incide em um curioso conceito de mandato. Deve-se entender o termo “mandato” em sentido amplo, em que a nação seria o mandante e os indivíduos eleitos seriam os mandatários, englobando, inclusive, os representantes públicos que exercem cargos de confiança, os concursados e os que atuam em nome do “eu comum”.

Parafraseando o Professor Azambuja, passa-se para o Direito Público um instituto de Direito Privado, procurando afeiçoar às suas regras gerais os fenômenos de ordem política que integram a organização e o funcionamento do regime representativo.

Neste caso, o mandato seria o dever dos mandatários em suprir as aspirações dos mandantes, ou seja, um mandato representativo. É dever dos mandatários responder aos mandantes pela maneira como cumpre o mandato e pelo modo como exerce as funções legislativas. Tem-se, em tese, por um mandato representativo as características usuais de um mandato-contrato, o qual tem a mesma ideologia do contrato social.

Entretanto, como toda tese tem sua antítese, nas relações que se estabelecem entre a nação e os eleitos, juridicamente, não há vinculação entre mandante e mandatário, outorgante ou procurador. Primeiro porque o mandato pressupõe uma pessoa que outorga e outra que recebe para executar, assim, um deputado representa toda a nação e não somente aqueles que o elegeu.

Segundo, a revogabilidade pelo mandante, em que um representante (deputado ou senador) não pode ser destituído diretamente pelos seus eleitores, embora os eleitores possam encetar providências políticas para tal intento. E terceiro, no regime representativo o representante eleito não fica adstrito à vontade de seus eleitores, o que enseja, por exemplo, casos de improbidade administrativa sem que haja a devida punição.

Já o mandato advocatício tem uma característica bastante peculiar, pois envolve um tipo de mandato-contrato e de um mandato representativo de múnus público, sendo este uma atribuição peculiar inerente ao advogado. O mandato advocatício perpassa a simples barreira de uma relação contratual, incidindo também na responsabilidade adquirida pelo advogado perante a sociedade em virtude de seu múnus público adquirido. Surge, então, a função social do advogado como se derivasse da vontade da sociedade, formando um corpo moral e ético esperado na atuação advocatícia diante do foro.

Fazendo uma analogia ao mandato representativo popular, segundo a teoria de Montesquieu, logo que fossem escolhidos os representantes do povo para assumirem tão privilegiado múnus público, estariam prontos para governarem com inteira independência, tendo os seus atos e resoluções não dependentes de ratificação popular, pois são tidos como a própria expressão da soberania nacional.   

O mandato advocatício conota uma certa independência do Advogado em seus atos, tal como o mandato representativo popular, sendo os atos e procedimentos do Advogado uma expressão do seu representado perante os tribunais e demais esferas da justiça. A independência do advogado diante do processo transcende o âmbito forense, incidindo também no papel harmonizador das relações sociais. O art. 133 da Constituição Federal é bastante claro quando preconiza a indispensabilidade do Advogado à administração da Justiça, sendo esta um reflexo da função social do Advogado.   

Não há que se negar à procedência dos argumentos de Montesquieu aplicado na sociedade moderna, tendo-se em vista que o regime representativo é a organização da confiança pautada na soberania popular ou individual, sendo que o que reina hoje em dia é o abuso de confiança. Considerando que a atuação do advogado representará a vontade da sociedade na defesa dos mais diversos interesses, incide em abuso de confiança e desrespeito a função social o advogado que faltar com a ética no exercício da advocacia nos diversos âmbitos do judiciário. Portanto, a falta ética passa a ser um desrespeito à função social do advogado e à sociedade.

O que se pode notar é que a vida política e social dos povos, ao longo do tempo, desmentiram as ilusões do regime representativo (mandato) como forma moderna e aperfeiçoada da democracia, mas atualmente esta ganhou um novo ímpeto, com a irresignação popular e individual, incidindo na atuação de órgãos que veem o que os cidadãos leigos não veem, órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, por meio do Conselho de Ética e Disciplina, assumiu o papel norteador de toda forma de conduta do advogado, fazendo-o entender que ele representa muito mais do que um simples ente de uma relação contratual, mas que também faz parte de um corpo moral e coletivo esperado por toda sociedade.

A OAB, de certa maneira, abraça a teoria de Montesquieu quando pune o advogado que não segue o Código de Ética e Disciplina da OAB, sendo esta atribuição punitiva uma forma potencializada e melhorada que representa os anseios da sociedade. A OAB age no sentido de selecionar os mais capacitados e austeros profissionais diante da falta de ética que paira na advocacia. É uma benesse à sociedade perpetrada por uma instituição que representa os seus anseios, conforme pregava Montesquieu.

“O povo que possui o poder soberano deve fazer por si mesmo tudo o que pode realizar corretamente, e aquilo que não pode realizar corretamente cumpre que o faça por intermédio de seus ministros. (...) O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade” (L. II, Cap. II). 3

A consciência roedora dos irresignados está representada atualmente na atuação da Ordem dos Advogados do Brasil como forma de coibir virtuais afrontas aos princípios democráticos. A OAB tem uma atribuição muito maior do que uma entidade representativa de classe ou um órgão estritamente jurídico, mas assume o papel de defensora do múnus público atribuído ao advogado, para que este saiba que a sua função social é essencial para a democracia e para a defesa do contrato social.

O conceito de mandato para o político e para o advogado guarda mais semelhança do que se imagina. Desta feita, a presente analogia busca evidenciar que a promoção do bem comum é objetivo indissociável na outorga de qualquer mandato, seja ele representativo popular ou mesmo um mandado advocatício, representando igual nobreza na busca de uma sociedade livre e justa.

Referência Bibliográfica:

1 - AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Globo, 1996, pág. 266.

2 - MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, págs. 9 e 10.

3 - ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, pág. 31.

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