Daniel Cavalcante Silva

Daniel Cavalcante Silva

O Direito de Discordar

Perfil: Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados, Professor, Membro do Grupo de Pesquisa em Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC), Membro Honorário da Associação Internacional dos Jovens Advogados (AIJA), MBA em Direito e Política Tributária, Mestre em Direito e Políticas Públicas.

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Educação e Compliance: Uma Nova Perspectiva no Setor Educacional

Daniel Cavalcanti Silva, | qui, 10/04/2014 - 09:19
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As bases sociais do estado contemporâneo evidenciam que o estado em que vivemos atualmente se constitui como um estado regulador, sendo esta uma forma de garantir o interesse público e deixando o interesse privado para ser regulado pelos mecanismos de mercado devidamente orientados para a competição. Com o setor educacional não é diferente, pois pode ser considerado como um dos mais regulados da economia nacional, sobretudo em face do grande volume de recursos financeiros em que está envolto.

Diante da perspectiva acima, não restam dúvidas que o fomento da regulação e os novos padrões decisórios no setor educacional implicam na assunção de uma nova postura administrativa por parte das entidades educacionais, com a adoção de boas práticas de gestão e de governança corporativa. Dentre essas boas práticas de governança emerge a chamada função de compliance.

Em apertada síntese, pode-se compreender o compliance (oriundo do inglês to comply, que significa cumprir, concordar, obedecer, estar de acordo, aquiescer, consentir ou sujeitar-se) como o dever de estar em conformidade e fazer cumprir leis, atos normativos e regulamentos internos, visando detectar, minimizar e eliminar qualquer tipo de risco regulatório/legal, risco financeiro, risco empresarial, risco operacional e risco de imagem, entre outros. Trata-se de uma prática de governança oriunda do mercado financeiro e que se desenvolveu em razão de diversos eventos históricos que puseram em risco o setor, passando também a ser utilizado no mercado de capitais.

A função de compliance vai além das barreiras legais e regulamentares, incorporando nas entidades princípios de integridade corporativa e de conduta ética. O compliance, incorporado nas entidades como um setor próprio, é responsável por resguardar a integridade corporativa da instituição por meio de procedimentos proativos e de resiliência, ou seja, é responsável por mapear todos os riscos próprios que envolvem o setor e criar mecanismos para resguardar a entidade.

Embora sendo uma prática adotada há décadas pelo setor bancário e também no mercado de capitais, este em período não tão distante, resta patente que o compliance pode ser igualmente incorporado pelo setor educacional, o qual passou a ser tão regulado quanto os setores acima. Dentro de um mercado regulado, verifica-se que a atividade educacional não é estanque e está inter-relacionada com diversos outras atividades não necessariamente educacionais. Assim, por exemplo, pode-se constatar que a falta de uma certidão de regularidade fiscal, que nada tem a ver com a atividade educacional, tem impacto nos processos administrativos de regulação e de supervisão na educação superior, sendo imprescindível para o credenciamento de instituições e para a adesão (renovação) ao Programa Universidade para Todos (Prouni). Denota-se, com isso, a necessidade de que a entidade educacional possua mecanismos mensuração e tratamento dos referidos riscos.

A análise e a mensuração dos riscos próprios do setor educacional têm impacto nos objetivos estratégicos da instituição, podendo evidenciar o nível de exposição ao risco que cada entidade aceita incorrer, ou seja, até onde a instituição tolera riscos (resiliência). Com base nessa perspectiva, o mantenedor tende a estar envolto por diversos questionamentos sobre seu planejamento estratégico, questionamentos esses que somente podem ser esclarecidos por meio de uma visão sistêmica dos riscos próprios do setor. Assim, por exemplo, pode o mantenedor questionar-se: quais os riscos dos processos de supervisão em minha estratégia de expansão? Quais os riscos envolvidos nas avaliações periódicas do Ministério da Educação? Qual o custo de não conformidade em relação às política públicas (Fies, Prouni, Proies, Pronatec, entre outros) adotadas pelo MEC? Qual o risco de compliance tributário das instituições educacionais? Qual a origem das demandas judiciais e seu risco compliance para as entidades educacionais? Qual a relação entre o risco de compliance trabalhista e a atividade educacional? Quais os riscos de compliance na gestão financeira das instituições educacionais?

Dentro do conceito de risco e com base nos questionamentos acima, pode-se inferir que a função de compliance emerge como determinante para subsidiar gestores educacionais no gerenciamento dos riscos próprios do setor, como o risco de sanções regulatórias (ex.: perda de autonomia), perdas financeiras (ex.: exclusão do Prouni ou Fies), perdas reputacionais decorrentes dos processos de avaliação (ex. divulgação de Índice Geral de Cursos insatisfatório), risco assistencial (ex.: não concessão do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social conferido às entidades filantrópicas), risco judicial (ex.: ajuizamento de ações trabalhistas e consumeristas decorrentes da atividade educacional), risco regulamentar (ex. não observância das regras internas e códigos de conduta), risco societário (ex.: conflito de interesses), etc. Trata-se do chamado risco de compliance, ou seja, o risco de não conformidade com a legislação educacional de regência e com a política institucional adotada.

A análise do risco de compliance no setor educacional serve de instrumento para a tomada de decisão por parte do mantenedor, visando melhorar o desempenho da instituição pela identificação de oportunidades de ganhos e de redução de probabilidade e/ou impacto de perdas, indo muito além do cumprimento de demandas regulatórias ou legais. Essa é uma nova perspectiva do setor educacional diante do incremento regulatório havido nos últimos anos, mas tendente a aumentar em razão da criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (INSAES), cujo Projeto de Lei anda a passos largos no Congresso Nacional.

Critérios para a Autorização de Cursos de Medicina: Uma Nova Posologia para Antigas Endemias

Daniel Cavalcante Silva, | ter, 30/07/2013 - 17:24
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Por Rafaella Marinelli Lopes[1]   e Daniel Cavalcante Silva[2]

 

“Matar um homem para salvar o mundo não é atuar para o bem do mundo. Imolar-se a si mesmo, eis o que é agir bem.”

Confúcio

 

Recentemente o Governo Federal editou a Medida Provisória (MP) n.º 621, de 8 de julho de 2013, que institui o “Programa Mais Médicos” para o Brasil cujo objeto principal é a implementação de política pública voltada ao desenvolvimento da área médica em regiões defasadas dos provimentos mais básicos de saúde. O programa propõe a adoção de novos paradigmas para o avanço da saúde pública nacional, incluindo a criação de novas instituições de medicina e a formação elevada de médicos em áreas consideradas contingentes. Imbuído desse pretexto, a Medida Provisória traçou um novo marco regulatório para a autorização de cursos de medicina, o qual é totalmente diverso de todos os outros cursos no Brasil.

Como é cediço, o Decreto no 5.773, de 9 de maio de 2006, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior, servia de referencial regulatório para os processos de autorização dos cursos de graduação médica no país. A partir de julho de 2013, porém, dadas as alterações propostas pela MP n.º 621/2013, referido curso passou a ser uma excepcionalidade dentre as demais graduações, não sendo mais abalizado pelo decreto acima, conforme será explicado adiante.

Precedentemente, desde que observadas normas gerais da educação nacional e mediante autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, os cursos de medicina dependiam somente da iniciativa privada para que fossem estabelecidos. Ou seja, o Ministério da Educação, por meio sua Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES), distribuía entre esses as funções de regulação do referido curso. O fluxo normal do processo para autorização do curso de medicina perpassava pelo caminho normal disciplinado pelo Decreto n.º 5.773, de 2006[3], rendendo observância à manifestação, teoricamente não vinculativa, do Conselho Federal de Medicina, previamente à autorização pelo Ministério da Educação. Esse era o procedimento até então utilizado.

O processo atual, porém, fora completamente alterado, não bastando a livre iniciativa da faculdade particular para que a graduação médica seja autorizada. Após a Medida Provisória 621/2013, o Poder Público delegou total competência ao Ministro da Educação para dispor de regulamentações abruptas quanto à abertura e autorização do funcionamento dos cursos de medicina no território nacional, até mesmo porque a suma moção do “Programa Mais Médicos” é distribuir os futuros profissionais em territórios carecidos dos provimentos mais essenciais à saúde.

Nas disposições gerais da referida Medida Provisória, dentre as diversas diretrizes propostas, está a de estabelecer mais recursos humanos na área médica, destinados aos seguintes objetivos: atender regiões prioritárias com carência de médicos, fortalecer a prestação de atenção básica de saúde, aprimorar a formação médica, inserir os médicos no SUS contatando-os com as políticas públicas nacionais, promover a troca de conhecimentos entre profissionais de saúde brasileiros e estrangeiros e estimular a área de pesquisa aplicada ao Sistema Único de Saúde. Ou seja, busca-se uma ampliação educacional e prática na formação médica, proporcionando maior adesão dos futuros profissionais à verdadeira realidade da saúde pública disposta pelo país. 

Não se podem perceber planos retroativos ou que ferem a independência do liberalismo profissional médico, como muitos contra-atacam, visto que as vagas de estudos e serviços estarão sendo concorridas por qualquer estudante de medicina com a pretensão de atender profissionalmente regiões precárias. Receberão, para tanto, bolsa-auxílio do governo federal e, acima de tudo, se beneficiarão do aprendizado na área pública de saúde e nas políticas públicas que nela são amplificadas. O que há, indiscutivelmente, é a fidedigna aspiração em pulverizar os futuros médicos em formação pelo país, a fim de acudir áreas completamente defasadas nos quesitos saúde e atendimento público.

Em princípio, a asserção do programa é projetar o estímulo à iniciativa das instituições privadas para a abertura de novos cursos de medicina em áreas ainda em desenvolvimento potencial. A prioridade, portanto, serão regiões com menor relação de médicos por habitante, desde que sejam capazes de ofertar campo de prática suficiente e com os instrumentos necessários aos alunos aprendizes. Este, porém, é um dos pontos conturbados e muito criticados do dispositivo publicado pela Presidência, pois, como é de conhecimento geral, a saúde pública no país é desprovida por completo dos seus recursos mais elementares. 

Contudo, de acordo com o projeto, para o desenvolvimento das ações oferecidas, diversos instrumentos de cooperação entre o poder público e outros organismos privados acondicionados à causa. Ou seja, o organismo público, levando em conta sua própria insuficiência programática e orçamentária, buscou se amparar em outros órgãos internacionais, instituições de ensino superiores nacionais e estrangeiras e outras entidades privadas para a concretização do seu projeto, inclusive no que diz respeito ao repasse de recursos financeiros a essas instituições, que se comprometerão também em fomentar essa política governamental.

Preliminarmente, tais cursos serão autorizados a se estabelecerem somente em regiões de extrema precariedade, não sendo passível a abertura de novas graduações médicas em locais saturados desses profissionais. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, primeiro colocado no equacionamento do número de médicos por habitante - estimado em 2,82 segundo o estudo “Demografia Médica no Brasil 2” e divulgado pelo Conselho Federal de Medicina -, torna-se impraticável a proposta do “Programa Mais Médicos”. Isto porque o Sudeste e o Sul brasileiros trazem grandiosos números de vagas em suas instituições, além de vultosos instrumentos para a formação “ensino-serviço” dos discentes que, mesmo depois de formados, permanecem agregados nessas localidades desenvolvidas por conta das vistosas ofertas de trabalho.

Para que ocorra a pré-seleção dessas extensões ineptas, onde serão instalados os cursos de medicina, o Ministério da Educação editou a Portaria Normativa no 13, a qual institui alguns procedimentos de apuração dos municípios que anseiem aderir ao programa por meio de instituições de educação superior privadas. Tais procedimentos adotados são pré-requisitos excludentes das cidades interessadas e compreendem a relevância e a necessidade sociais do curso ofertado em determinada região, assim como a estrutura dos equipamentos públicos e programas de saúde existentes e disponíveis. A apuração dos municípios aptos ao funcionamento desse tipo de graduação será de competência da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES), assim delegada pelo próprio Ministro da Educação.

Após passar pelos critérios de admissão da SERES, competente pela apuração discorrida acima, o município requisitado deverá celebrar termo de adesão com essa mesma Secretaria com o objetivo de efetivar sua inclusão em edital de chamamento público. Eleitas as melhores propostas educacionais para a abertura dos cursos de medicina, serão publicados os nomes das instituições vencedoras, as quais serão subsidiadas pela estrutura do Serviço Único de Saúde (SUS) de cada regional selecionada. Caso a estrutura municipal convocada não contenha todos os elementos adequados e postos à disposição, a SERES também fica responsável pela verificação da disponibilidade de estruturas em outros municípios integrantes da mesma região.

Ademais, novas portarias serão editadas para direcionar minuciosamente os novos procedimentos de autorização. Por conseguinte, as mesmas portarias estarão aptas a alterar os demais órgãos públicos em suas anteriores competências com relação aos atos autorizativos dos cursos médicos. Entenda-se, porém, que a partir das novas alterações, se promovida à lei a referida medida provisória, o Ministro da Educação terá totais poderes de redirecionar todo o processo de autorização, congênere ao que aduz o artigo 3o da aludida medida.

Vivemos, certamente, uma situação de caos e desespero na saúde pública, tendo em vista que a mesma não tem a instrumentalização devida e é desprovida de recursos mais capitais, motivo pelo qual uma única esperança é latente: a mudança. Se não ocorrerem alterações nos planos de disposição das unidades básicas de saúde por todo o território nacional, a começar pelo atendimento básico, pelos recursos e profissionais capacitados a atenderem a rede pública, permaneceremos com regiões ainda sub-humanizadas e definhando ao descaso.

A perspectiva de autorização dos cursos de medicina com base na sistemática acima já é o começo das novas alterações na saúde pública que estão por vir e que irão surpreender ainda mais. Uma maior e melhor distribuição das faculdades de medicina e, consequentemente dos médicos em extensões precárias, é muito mais que investir basicamente na saúde. É, antes de tudo, iniciar a humanização de regiões brasileiras subdesenvolvidas, desprovidas do direito social mais básico do ser humano.

Por outro lado, a justificativa de apenas autorizar cursos de medicina em locais considerados prioritários pode abrir um perigoso precedente em outros cursos de graduação, que podem adotar o mesmo critério e, com isso, causar uma estagnação no setor. Da mesma forma, a adoção dos critérios acima também pode transformar o discurso da prioridade em um discurso meramente político, tendo em vista que essa posologia foi utilizada em um passado recente e não curou a endemia da falta de médicos em áreas efetivamente necessitadas.



[1]. Graduanda em Direito pela Universidade Paulista (UNIP) de São José do Rio Preto.

[2]. Sócio da Covac Sociedade de Advogados; Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB/DF; MBA em Direito e Política Tributária pela FGV/DF, Membro Honorário da Associação Internacional de Jovens Advogados (AIJA); Membro do Grupo de Pesquisa em Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFFIC); Professor de Direito Tributário; Professor da Escola Superior da Advocacia OAB/DF; Autor de vários artigos nacionais e internacionais; Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado com um dos dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.

[3].  Art. 29.  São fases do processo de autorização:

I - protocolo do pedido junto à Secretaria competente, instruído conforme disposto no art. 30 deste Decreto;

II - análise documental pela Secretaria competente;

III - avaliação in loco pelo INEP; e

IV - decisão da Secretaria competente. 

 

Educação e Compliance: Uma Nova Perspectiva no Setor Educacional

Daniel Cavalcanti Silva, | seg, 03/06/2013 - 10:32
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As bases sociais do estado contemporâneo evidenciam que o estado em que vivemos atualmente se constitui como um estado regulador, sendo esta uma forma de garantir o interesse público e deixando o interesse privado para ser regulado pelos mecanismos de mercado devidamente orientados para a competição. Com o setor educacional não é diferente, pois pode ser considerado como um dos mais regulados da economia nacional, sobretudo em face do grande volume de recursos financeiros em que está envolto.

Diante da perspectiva acima, não restam dúvidas que o fomento da regulação e os novos padrões decisórios no setor educacional implicam na assunção de uma nova postura administrativa por parte das entidades educacionais, com a adoção de boas práticas de gestão e de governança corporativa. Dentre essas boas práticas de governança emerge a chamada função de compliance.

Em apertada síntese, pode-se compreender o compliance (oriundo do inglês to comply, que significa cumprir, concordar, obedecer, estar de acordo, aquiescer, consentir ou sujeitar-se) como o dever de estar em conformidade e fazer cumprir leis, atos normativos e regulamentos internos, visando detectar, minimizar e eliminar qualquer tipo de risco regulatório/legal, risco financeiro, risco empresarial, risco operacional e risco de imagem, entre outros. Trata-se de uma prática de governança oriunda do mercado financeiro e que se desenvolveu em razão de diversos eventos históricos que puseram em risco o setor, passando também a ser utilizado no mercado de capitais.

A função de compliance vai além das barreiras legais e regulamentares, incorporando nas entidades princípios de integridade corporativa e de conduta ética. O compliance, incorporado nas entidades como um setor próprio, é responsável por resguardar a integridade corporativa da instituição por meio de procedimentos proativos e de resiliência, ou seja, é responsável por mapear todos os riscos próprios que envolvem o setor e criar mecanismos para resguardar a entidade.

Embora sendo uma prática adotada há décadas pelo setor bancário e também no mercado de capitais, este em período não tão distante, resta patente que o compliance pode ser igualmente incorporado pelo setor educacional, o qual passou a ser tão regulado quanto os setores acima. Dentro de um mercado regulado, verifica-se que a atividade educacional não é estanque e está inter-relacionada com diversos outras atividades não necessariamente educacionais. Assim, por exemplo, pode-se constatar que a falta de uma certidão de regularidade fiscal, que nada tem a ver com a atividade educacional, tem impacto nos processos administrativos de regulação e de supervisão na educação superior, sendo imprescindível para o credenciamento de instituições e para a adesão (renovação) ao Programa Universidade para Todos (Prouni). Denota-se, com isso, a necessidade de que a entidade educacional possua mecanismos mensuração e tratamento dos referidos riscos.

A análise e a mensuração dos riscos próprios do setor educacional têm impacto nos objetivos estratégicos da instituição, podendo evidenciar o nível de exposição ao risco que cada entidade aceita incorrer, ou seja, até onde a instituição tolera riscos (resiliência). Com base nessa perspectiva, o mantenedor tende a estar envolto por diversos questionamentos sobre seu planejamento estratégico, questionamentos esses que somente podem ser esclarecidos por meio de uma visão sistêmica dos riscos próprios do setor. Assim, por exemplo, pode o mantenedor questionar-se: quais os riscos dos processos de supervisão em minha estratégia de expansão? Quais os riscos envolvidos nas avaliações periódicas do Ministério da Educação? Qual o custo de não conformidade em relação às política públicas (Fies, Prouni, Proies, Pronatec, entre outros) adotadas pelo MEC? Qual o risco de compliance tributário das instituições educacionais? Qual a origem das demandas judiciais e seu risco compliance para as entidades educacionais? Qual a relação entre o risco de compliance trabalhista e a atividade educacional? Quais os riscos de compliance na gestão financeira das instituições educacionais?

Dentro do conceito de risco e com base nos questionamentos acima, pode-se inferir que a função de compliance emerge como determinante para subsidiar gestores educacionais no gerenciamento dos riscos próprios do setor, como o risco de sanções regulatórias (ex.: perda de autonomia), perdas financeiras (ex.: exclusão do Prouni ou Fies), perdas reputacionais decorrentes dos processos de avaliação (ex. divulgação de Índice Geral de Cursos insatisfatório), risco assistencial (ex.: não concessão do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social conferido às entidades filantrópicas), risco judicial (ex.: ajuizamento de ações trabalhistas e consumeristas decorrentes da atividade educacional), risco regulamentar (ex. não observância das regras internas e códigos de conduta), risco societário (ex.: conflito de interesses), etc. Trata-se do chamado risco de compliance, ou seja, o risco de não conformidade com a legislação educacional de regência e com a política institucional adotada.

A análise do risco de compliance no setor educacional serve de instrumento para a tomada de decisão por parte do mantenedor, visando melhorar o desempenho da instituição pela identificação de oportunidades de ganhos e de redução de probabilidade e/ou impacto de perdas, indo muito além do cumprimento de demandas regulatórias ou legais. Essa é uma nova perspectiva do setor educacional diante do incremento regulatório havido nos últimos anos, mas tendente a aumentar em razão da criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (INSAES), cujo Projeto de Lei anda a passos largos no Congresso Nacional.

Uma estatização silenciosa

Daniel Cavalcante, | ter, 05/02/2013 - 12:20
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Desde a segunda metade do século passado, não tão passado assim, o equilíbrio entre o setor público e privado na educação superior, em termos de instituições e matrículas, foi profundamente alterado diante da constatada expansão do ensino superior privado no país. Em 1980, o setor privado já era numericamente predominante, chegando a responder por cerca de 63% das matrículas e 77% dos estabelecimentos de ensino superior . Após um breve período de estagnação, com a Constituição Federal (1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1966), o setor educacional privado voltou a crescer, correspondendo atualmente a 75% do total de matrículas no ensino superior . Esses percentuais demonstram a importância das entidades privadas no desenvolvimento da educação no país.

No entanto, em que pese a evidente importância das entidades privadas para o desenvolvimento do ensino superior nas últimas décadas, pode-se constatar que o poder público vem implementando uma série de medidas que depreciam e minimizam a livre iniciativa no desenvolvimento do ensino superior, chegando-se à constatação última de que o Estado vem estabelecendo uma estatização silenciosa no setor, conforme será explicitado adiante.

Não convém conjeturar as ideologias político-partidárias por trás de tais procedimentos, entretanto, resta evidente que a recente tentativa de expansão do ensino superior por meio das instituições públicas, embora considerável, foi pífio, insuficiente e bastante aquém se comparado com o setor privado nos últimos anos. Para se ter uma ideia, os dados do Censo da Educação Superior, extraídos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), revelam que enquanto as instituições públicas perderam 2% de alunos em 2011, na comparação com 2010, as entidades privadas cresceram 20% . Trata-se de uma comparação que revela uma grande desproporcionalidade na gestão do setor público e privado no ensino superior.

Com base nos dados acima, o Estado passou a adotar outra estratégia para consecuções públicas, adotando uma política de governo se como fora uma política de estado. Sob o manto de um vetusto aforismo  e da busca por uma certa qualidade na educação superior, o Estado passou a criar uma série de regras que não somente impõe controle às entidades privadas, mas também limitam a livre iniciativa. Essa limitação pode ser constatada por meio de um escalonamento de regras, as quais evidenciam o monopólio total do estado sobre o setor, o que se consubstancia em um curioso conceito de estatização do setor educacional privado.

Como é cediço, para que uma Instituição de Ensino Superior (IES) possa funcionar é necessário o ato administrativo de credenciamento e de autorização dos cursos, ambos exarados pelo Ministério da Educação. Ao credenciar uma instituição, no entanto, o MEC autoriza o funcionamento de no máximo cinco cursos . Para pedir novos cursos, a IES deve ter ao menos 50% dos cursos já autorizados devidamente reconhecidos , caso contrário, o pedido de autorização de novos cursos será sumariamente arquivado. Essa é uma regra criada por meio de uma Portaria, a qual simplesmente estabelece critérios limitadores da Lei n.º 9.304, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), do Decreto n.º 5.773, de 9 de maio de 2006  e, principalmente, do art. 209 da Constituição da República, que dispõe que o ensino é livre a iniciativa privada, atendida as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional, autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Nesse sentido, questiona-se: é possível uma portaria normativa estabelecer normas gerais da educação nacional?

A criação de cursos de graduação em direito e em medicina, odontologia e psicologia, inclusive em universidades e centros universitários, ainda deverá ser submetida, respectivamente, à manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ou do Conselho Nacional de Saúde, previamente à autorização pelo Ministério da Educação. A limitação ainda é maior.

Imbuído desse espírito restritivo à livre iniciativa privada, o Ministério da Educação também exarou a Portaria Normativa n.º 1, de 25 de janeiro de 2013, a qual estabelece pequenos prazos para que uma entidade mantedora possa requerer a expedição de atos regulatórios (credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento, etc.) pelo MEC. De acordo com referido ato normativo, uma entidade mantenedora terá apenas dois meses durante o ano para solicitarem que o Ministério da Educação exare algum ato regulatório, a exemplo da autorização de novos cursos. 

Ou seja, se uma instituição desejar solicitar a abertura de novos cursos, terá que fazer o pedido nas janelas que se abrem em apenas dois meses durante todo o ano, de acordo com os prazos fixados nos anexos da referida portaria. Dentre as várias regras vinculadas à Portaria Normativa n.º 1, de 25 de janeiro de 2013, está aquela segundo a qual os prazos acima somente serão exercidos na hipótese de não ocorrência de impugnações ou recursos. Em outras palavras, além das limitações inicialmente impostas às IES na ocasião do seu credenciamento e autorização de novos cursos, o MEC estabelece novas condições que limitam o período para a prática de atos regulatórios e também estabelece, de maneira enviesada, cerceamento ao direito de defesa quando uma entidade ou algum de seus cursos solicitados forem mal avaliados.

As medidas estabelecidas pelo poder público para os atos de credenciamento de novas instituições e abertura de novos cursos se consubstanciam em um evidente limite imposto à iniciativa privada, uma vez que restringem a liberdade da entidade mantenedora provocar ou pedir um ato administrativo ao poder público.

Por outro lado, em outra posologia, para que uma instituição possa ofertar o ensino superior, a LDB estabelece que entidade ainda possua capacidade de autofinanciamento , ou seja, a capacidade de geração de resultados econômicos operacionais que possibilitem financiar inteiramente, ou grande parte, o capital de giro e os investimentos necessários para a manutenção dos cursos superiores com a qualidade almejada pelo MEC. Essa exigência, somada com a livre concorrência, faz com que as instituições venham a aderir as políticas públicas criadas pelo Estado, como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Sem a adesão a tais programas é praticamente inviável que uma IES possua capacidade de autofinanciamento e de mantença de um curso superior com a qualidade exigida pelo MEC. A reste respeito, o Ministério da Educação tem plena consciência disso.

Sendo o Programa Universidade para Todos (Prouni) uma política pública necessária e vital para as entidades privadas de ensino superior, essas têm a obrigação de se submeterem às suas regras, calcada em um sinalagma entre troca de bolsas de estudo e isenção fiscal. A instituição que aderir ao Prouni tem a obrigação, dentre outras, de possuir certidão de regularidade fiscal e não ter cursos com avaliação insatisfatória, nos termos da Lei do SINAES . 

Da mesma forma, sendo o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) igualmente vital para a manutenção das IES, resta patente que as entidades também devem render atendimento às regras da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, que instituiu o Fies, o qual possui natureza contábil e que é destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério da Educação, de acordo com regulamentação própria.

As instituições que aderem ao Fies com o objetivo de manter a sua capacidade de autofinanciamento passam a depender de critérios extremamente subjetivos para que o Governo Federal possa efetuar a recompra dos créditos das bolsas ou da compensação de créditos tributários. Ou seja, a instituição que adere ao Fies fica adstrita ao bom humor do Governo Federal na ocasião do adimplemento de sua parte no programa. Nesse caso, o Fies denota uma total dependência das IES ao Governo Federal, fazendo com que as entidades se submetam a critérios inexistentes na lei, a exemplo do prazo para o pagamento dos créditos do programa (recompra ou compensação tributária).

Sendo o Prouni e o Fies políticas públicas determinantes para subsidiar a capacidade de autofinanciamento das IES, sobretudo porquanto o próprio MEC eleva sobremaneira os custos da entidade em busca de uma “qualidade” equiparável às entidades públicas, quase nunca penalizadas, fica constatado que o MEC se arvora desse dois programas para impor exigências, algumas vezes ilegítimas, a exemplo da exigência de Certidões de Regularidade Fiscal. Ora, se os programas acima visam equacionar problemas decorrentes justamente do equilíbrio econômico-financeiro de uma IES, a exemplo do pagamento de tributos, não se afigura razoável exigir as referidas certidões. Nesse caso, o MEC passa a atuar como agente da Receita Federal, desvirtuando a sua finalidade regulatória e fiscalizatória. Esse desvirtuamento de função já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões em que um determinado órgão público se arvorava na condição de fiscal da Receita Federal.

O que se pode notar é que o MEC passa a fazer exigências ilegítimas com o objetivo de limitar as atividades da iniciativa privada. 

Em outra situação não menos elucidativa, o Governo Federal aprovou o chamado Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), instituído por meio da Lei nº 12.688, de 18 de julho de 2012, cujo escopo visa assegurar condições para a continuidade das atividades de entidades mantenedoras de ensino superior com dificuldades financeiras. O Proies é um programa de recuperação tributária, com evidente inspiração na Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, regulada pela Lei n.° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, prevendo ainda a concessão de moratória e parcelamento de débitos. O programa pode ser atrativo para a entidade que esteja em dificuldades financeiras, mas, ao mesmo tempo, bastante restrito e com sérias implicações para a instituição que aderir ao parcelamento, haja vista que as consequências da sua saída após adesão de forma voluntária e ou involuntária são nefastas.

Os requisitos para manutenção no Proies abrangem praticamente todas as esferas de atuação de uma mantenedora de entidade de ensino superior  e outorga ao Ministério da Educação poderes de fiscalização quase que absolutos. No modelo criado pelo Proies, o MEC passa a funcionar como um interventor de fato e a instituição abre mão de qualquer planejamento ou projetos de expansão em favor do fiel cumprimento do plano de recuperação apresentado.

A instituição que aderiu ao Proies assumiu obrigações que revelam o alto grau de comprometimento da vida financeira da entidade com os programas do Governo, tais como: concessão do Prouni com bolsa integral, adesão ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) com 100% aberto à demanda de bolsas e adesão ao Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC). Esse alto grau de comprometimento pode levar à situação de que uma instituição aderente possa funcionar por meio da concessão de 100% de bolsas do Prouni, do Proies e participantes do FIES, além da limitação de sua autonomia administrativa. Seria uma forma de total estatização de uma entidade privada.

Por fim, não bastassem todas as formas de controle das entidades privadas de ensino superior, o Governo Federal ainda encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) n.° 4.372/2012, que propõe a criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes). O projeto prevê a submissão de praticamente todos os atos de uma entidade privada de ensino superior a esta nova autarquia, a qual assume o status de agência sem o ônus a esta atribuída. O PL n.° 4.372/2012, em seu art. 3º, estabelece de maneira objetiva as competências do Insaes, que seriam as seguintes:

I - formular, desenvolver e executar as ações de supervisão e avaliação de instituições de educação superior e cursos de educação superior no sistema federal de ensino, de acordo com as diretrizes propostas pelo Ministério da Educação, e em consonância com o Plano Nacional de Educação; 

II - expedir instruções e estabelecer procedimentos para a aplicação das normas relativas à sua área de competência, de acordo com as diretrizes do Ministério da Educação;

III - autorizar, reconhecer e renovar o reconhecimento de cursos de graduação e sequenciais;

IV - instruir e exarar parecer nos processos de credenciamento e recredenciamentos de instituições de educação superior;

V - acreditar instituições de educação superior e cursos de graduação; 

VI - realizar avaliações in loco referentes a processos de credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação e sequenciais, e diligências para verificação das condições de funcionamento dessas instituições e cursos; e

VII - supervisionar instituições de educação superior e cursos de graduação e sequenciais, quanto ao cumprimento da legislação educacional e à indução de melhorias dos padrões de qualidade da educação superior, aplicando as penalidades e instrumentos previstos na legislação;

VIII - decretar intervenção em instituições de educação superior, e designar interventor, nos termos de lei específica; 

IX - designar, após indicação do Ministério da Educação, instituição de educação superior pública para a guarda do acervo acadêmico de instituições descredenciadas, conforme regulamento;

X - conceder, renovar concessão e supervisionar a regularidade do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social - CEBAS, quanto às entidades de educação superior e de ensino básico, observados os requisitos e a sistemática da Lei no 12.101, de 27 de novembro de 2009;

XI - constituir e gerir sistema público de informações cadastrais de instituições, cursos, docentes e discentes da educação superior, e disponibilizar informação sobre a regularidade e qualidade das instituições e cursos da educação superior e a condição de validade de seus diplomas;

XII - aprovar previamente aquisições, fusões, cisões, transferências de mantença, unificação de mantidas ou descredenciamento voluntário de Instituições de Educação Superior integrantes do sistema federal de ensino; e

XIII - articular-se, em sua área de atuação, com instituições nacionais, estrangeiras e internacionais, mediante ações de cooperação institucional, técnica e financeira bilateral e multilateral.

É importante esclarecer que as competências e atribuições do Insaes são demasiadamente genéricas, pois serão objeto de regulamentação posterior. Embora seja uma proposta bastante subjetiva, não se pode dizer que o Projeto de Lei n.° 4.372/2012 seja uma proposta principiológica, haja vista que o subjetivismo proposta sugere que toda a regulação deva ser feita por meio de decreto ou outro ato normativo. De acordo com a nova estrutura proposta, o Insaes assumiria toda a competência de avaliação hoje desenvolvida pelo INEP, além das competências de regulação e supervisão. Em outras palavras, o novo instituto teria competência para avaliar, exarar o ato regulatório (credenciamento, autorização de curso, etc.) e supervisionar as instituições, além de intervir em todos os atos privados das entidades, cobrando taxa de legalidade contestável sobre essa atividade fiscalizatória.

Com base nas constatações fático-legais acima, pode-se observar que o Estado adotou uma estratégia restritiva à livre iniciativa no ensino superior, transformando os mecanismos regulatórios em mecanismos restritivos à atividade educacional privada. O Estado regulador que hoje se propõe, segundo as teorias socioeconômicas modernas, não visa restringir direitos à livre iniciativa, mas regular o mercado para a concorrência. A utilização do controle pelo Ministério da Educação, sob o manto da busca de uma pseudo qualidade da educação superior, ultrapassa os limites da mera regulação e incide no conceito de estatização de parte das instituições privadas. 

Ao superdimensionar e concentrar a avaliação, regulamentação e supervisão do ensino superior, sobretudo em face do novo instituto que está em vias de criação (Insaes), o MEC passa a interferir diretamente em todas as esferas de atuação de uma entidade mantenedora de ensino superior, restando muito pouca, ou quase nada, liberdade à livre iniciativa, situação esta que subsume-se em um silencioso quadro estatização no setor.

 

 

 

Advogando para a Advocacia!

Daniel Cavalcante Silva, | qua, 21/11/2012 - 20:26
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Em épocas de eleições para as seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, é possível observar intensas mobilizações dos colegas advogados em prol de alguma justificativa ideológica que lhes credenciem ao prestigioso múnus de assumir a representatividade da OAB em suas respectivas regiões. Com o decorrer dos anos, a disputa eleitoral na OAB ganhou contornos político-institucionais, em alguns casos, muito mais amplos do que algumas eleições municipais, demonstrando a importância deste pleito.

Como advogado sediado em Brasília, embora com escritórios em outras regiões do país, pude constatar, ao longo da minha carreira profissional, que essa disputa é vista sob dois pontos de vista aparentemente antagônicos: com entusiasmo, muitas vezes cego e acrítico, ou por meio de uma atitude de total indiferença. Os entusiastas geralmente estão inseridos na composição de alguma chapa e os indiferentes estão voltados exclusivamente para os seus escritórios. Independentemente da opção, ambos estão ligados pela importância que a OAB representa para a sociedade.

No entanto, quando o advogado se depara com determinados embates eleitorais em algumas seccionais, depara-se também com situações que lhe impõem assumir uma posição de ostracismo, eis que algumas campanhas são guiadas pelo cabedal meramente econômico e pessoal. Nessas campanhas, não se busca uma coesão para a advocacia, tão fustigada no quotidiano forense, mas a coesão para um projeto pessoal ou mesmo político. A OAB, por intermédio de suas seccionais, se transforma em um trampolim profissional para ambições políticas, conforme se pode constatar nas recentes eleições municipais, assim como ocorreu no município de São Paulo.

Na esmagadora maioria das seccionais da ordem, porém, pode-se observar que as disputas são marcadas por um dualismo quase inexistente, ou seja, as propostas e as ideias praticamente não se divergem, pois são alçadas como plataformas comuns: transparência, gestão participativa, atenção aos interesses dos advogados, defesa das prerrogativas, etc. As pequenas diferenças entre os projetos, a exemplo da recorrente proposta de diminuir o custo da contribuição de interesse da categoria (anuidade), se afigura como uma migalha que jamais deveria ser considerada como uma proposta de fato. Parece o leilão de quem dá menos, o que jamais deveria ser objeto de consideração pelo advogado.

Como o dualismo de propostas e ideias é praticamente inexistente, a disputa então sai da esfera institucional e entra na esfera moral. O advogado passa a ser vasculhado em sua vida profissional e pessoal, sendo moralmente interpelado por aquilo que fez ou deixou de fazer no contexto profissional. Até mesmo o critério ético é invocado quando da escolha de um membro da composição de chapa, sob o vetusto argumento calcado no provérbio bíblico: “diz-me com quem tu andas e eu te direi que és.” Nesse caso, o candidato é avalizado até mesmo pelo que não fez.

Concomitantemente, as mídias sociais também passaram a ser utilizadas como instrumentos eleitoreiros no pleito das seccionais da OAB, assim como acontece nas demais campanhas para cargos públicos no país. Ao contrário da liberdade que se supõe a um cidadão em plena campanha para o pleito ao legislativo municipal, por exemplo, com a utilização de alcunhas por vezes jocosas, o advogado deve ter responsabilidade e a consciência sobre a extensão daquilo que divulga nas mídias sociais. No entanto, não é isso que se observa na prática.

O que se pode constatar é que as mídias sociais vêm sendo utilizadas pelos advogados, em suas respectivas campanhas, como uma forma de conspurcar a imagem do opositor imediato, desabonando as boas qualidades do profissional em face do pleito. O candidato utiliza-se do Twitter para desejar bom dia e boa noite aos eleitores, além de escudar-se em vários partidários para propagar qualquer tipo de informação, verídica ou não. O e-mail de todos os advogados do Brasil sofre com a enxurrada de spans dos candidatos, sem ao menos dar a oportunidade para o advogado se manifestar sobre a intenção de recebê-los, o que valeria uma atitude volitiva por parte do Conselho Federal da OAB. O Facebook é utilizado para a pretensa divulgação da plataforma eleitoral, mas muitas vezes perde até o sentido.

Em Brasília, por exemplo, há um grupo de discussão no Facebook intitulado “OAB/DF”, com um moderador e com mais de três mil convidados, cujo objetivo seria discutir propostas entre todos os candidatos que concorrem no pleito local. No entanto, o que se pode extrair do referido grupo de discussão é a existência de achincalhamentos pessoais, inclusive de advogados que nada têm a ver com o pleito, além do marketing pessoal mais rasteiro e de discussões filosóficas sem qualquer sentido. A ideia é extremamente válida, mas alguns advogados distorcem o mecanismo justamente porque têm interesse eleitoreiro no funcionamento enviesado desta mídia social.

O advogado, na qualidade de profissional eminentemente político, haja vista que, no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social , tem o dever de assumir uma posição valorativa dentro do contexto eleitoral nas respectivas seccionais da OAB. A discussão moral em torno de um pleito representativo em alguma seccional da OAB se consubstancia em uma discussão moral sobre a própria atuação do advogado, prodigalizando a imagem do mesmo em face de uma única virtude e salvaguarda, a sua própria honra, prevista no art. 31 da Lei n.° 8.906, de 4 de julho de 1994, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil.

Em outras palavras, a disputa eleitoral para as seccionais da OAB muitas vezes é procedida de forma que desqualifica o advogado como merecedor de respeito e também não contribui para o prestígio da classe e da advocacia, assim como disciplina o dispositivo supracitado. Se o próprio advogado candidato revela temor, insegurança, insatisfação moral e até mesmo desprezo para com o seu oponente imediato, evidentemente que passa a demonstrar certo anseio ou aflição aos princípios que permeiam a atuação do outro profissional e, por via de consequência, da própria profissão. Não imagine que a sociedade esteja alheia a esses fatos.

A predominância da percepção negativa acima corrói e reduz os fundamentos que atribuíram à advocacia um ideal de excelência profissional em prol da sociedade, o que contribui para a desvalorização do advogado e da advocacia. Nesse sentido, no campo das práticas morais e das formulações éticas correspondentes, vive-se o domínio e o incentivo à exclusividade da individualidade. Esta muito tem fascinado as pessoas, conduzindo-as prioritariamente à busca de soluções de seus problemas . Talvez seja justamente esse o grande dilema em torno de algumas disputas eleitorais para as seccionais da OAB.

O mandato para a representação local da OAB, enquanto múnus público, assume o papel norteador de toda forma de conduta do advogado em cada seccional, devendo o advogado compreender que ele representa muito mais do que um mero ente representativo, mas que também que faz parte de um corpo moral e coletivo esperado por toda sociedade, dotado de prerrogativas que visam a defesa do cidadão e do Estado Democrático de Direito. Por essa razão, a disputa eleitoral na OAB deve ser objeto profundas reflexões para que o pleito não venha a macular a imagem do advogado e da advocacia.

A representação da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil se constitui como a expressão do altruísmo que todos os advogados deviriam ter em benefício da própria profissão, assim como na lição de Nietzsche: “a nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos.”  Nesse sentido, advogar em prol do respeito, do bom senso, da acuidade e do zelo no processo eleitoral na OAB é advogar para a própria advocacia, eis que, independentemente do ganhador, a representatividade da ordem será espelho de nós mesmos.

Conhecendo o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies)

Daniel Cavalcante Silva, | qui, 25/10/2012 - 10:48
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Recentemente, o Governo Federal aprovou o chamado Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), instituído por meio da Lei nº 12.688, de 18 de julho de 2012, cujo escopo visa assegurar condições para a continuidade das atividades de entidades mantenedoras de ensino superior com dificuldades financeiras.

O programa, que poderia ser considerado como uma importante política pública estatal, é implementado por meio de institutos de Direito Tributário, tais como a moratória e o parcelamento tributário (modalidades de suspensão da exigibilidade da obrigação tributária), ambos imiscuídos na conceituação do chamado “plano de recuperação tributária”, cujo conteúdo se afigura como vanguarda na legislação tributária.

O Proies se inicia por intermédio da conjugação dos três institutos tributários: aprovação de um plano de recuperação tributária, concessão de moratória de débitos tributários federais e parcelamento de débito em até 180 meses, com a possibilidade de quitação de até 90% destas parcelas por meio da concessão de bolsas de estudo.

Dentro desse contexto, o programa apresenta objetivos claros e perseguidos ao longo de todo texto legal, quais sejam: viabilizar a manutenção dos níveis de matrículas ativas de alunos; exigir das entidades qualidade no ensino de acordo com resultados positivos das avaliações usadas pelo Ministério da Educação (MEC); possibilitar a recuperação dos créditos tributários da União; e, ampliar a oferta de bolsas de estudo integrais para estudantes de cursos graduação.

O Proies é um programa que pode ser atrativo para a entidade que esteja em dificuldades financeiras, mas, ao mesmo tempo, bastante restrito e com sérias implicações para a instituição que aderir ao parcelamento, haja vista que as consequências da sua saída após adesão de forma voluntária e ou involuntária são nefastas.

Em que pesem as peculiaridades do Proies, resta patente que o mesmo se afigura como um ambicioso e sofisticado programa governamental, haja vista que transita por alguns institutos do direito tributário e implementa um projeto de recuperação tributária muito semelhante aos processo de recuperação judicial. Além do mais, o projeto enceta providências que imbricam o direito tributário e o direito educacional relacionado aos atos regulatórios da educação superior, fazendo com que o desiderato de recuperação financeira da instituição coincida com a melhoria dos seus indicadores educacionais, aferidos por meio de periódicas avaliações feitas pelo Ministério da Educação.

A implementação do Proies se inicia por meio do chamado plano de recuperação tributária, o qual é elemento objetivo e essencial para a adesão e manutenção da entidade no programa, nos termos do art. 4° da Lei nº 12.688, de 18 de julho de 2012 [1]. Em que pese a referida legislação ser de natureza predominantemente tributária e com certos aspectos educacional, o legislador utiliza-se a todo momento de conceitos oriundos do direito empresarial.

O Proies, ao propor o plano de recuperação tributária, propõe igualmente um projeto de recuperação extrajudicial fiscalizado diretamente pelo poder público, ou seja, é um plano inovador sob o ponto de vista também do direito empresarial.

Dentro desse cenário, com foco na preocupação do crescente do passivo tributário das Instituições de Ensino Superior (IES), considerando que em face da natureza jurídica de tais instituições (grande parte associação ou fundação) e consciente da extrema regulação que tais entidades sofrem, o Governo Federal teve o mérito de encontrar uma forma de estas entidades terem legalmente uma forma de recuperação administrativa e em combinação com seu órgão regulador, o Ministério da Educação.

Ressalte-se que o plano de recuperação tributária implica necessariamente em uma análise minudente sobre cada curso, vagas a serem oferecidas, análise de custos, cortes e investimentos que serão necessários em função de reconhecimento ou renovação de reconhecimento de curso, ou mesmo de recredenciamento da Instituição em função do que estabelece a Lei do SINAES. Importante ressaltar que este plano terá como base a situação econômico-financeira e regulatória, inclusive considerando que será ou serão objeto(s) objeto de oferta de vagas somente  o( s) curso(s) da instituição com conceito(s) positivo(s).

A proposta de repactuação de débitos tributários, prevista pela Lei nº 12.688, de 2012, envolve a possibilidade de significativos benefícios, como também restrições. Não obstante, tais vantagens só poderão ser gozadas por entidades que cumprirem as rígidas prerrogativas estabelecidas pelo diploma, dentre elas o cumprimento de plano de recuperação tributária.

A Instituição de Educação Superior (IES) que aderir ao Proies terá o direito à concessão de moratória das dívidas tributárias federais vencidas até 31 de Maio de 2012, em observância ao art.155 do Código Tributário Nacional[2]. Como é cediço, o CTN estabelece que a moratória é uma das modalidade de suspensão do crédito tributário[3], sendo compreendida como um benefício dado pelo credor ao devedor consistente na dilação ou prorrogação do prazo de vencimento da obrigação tributária.

Insta enfatizar que a legislação permite a inclusão no Proies de todas as dívidas tributárias federais da mantenedora da IES, na condição de contribuinte ou responsável, no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, vencidas até 31 de maio de 2012. Desta forma, todo tipo de tributo federal, incluindo impostos e contribuições, poderão ser repactuados. Não obstante, tendo em vista o âmbito exclusivo da PGFN, não será possível a inclusão de débitos oriundos do Tribunal de Contas da União (TCU).

O Proies se afigura como um programa inovador sob o ponto de vista legal porque restringe a sua adesão somente às entidades de ensino superior em grave situação econômico-financeira. Sob esse aspecto, dada a amplitude daquilo que poderia ser considerado como “grave situação econômico-financeira”, ao contrário da sistemática adotada pela Lei de Recuperação Judicial, o Proies estabelece um mecanismo inovador para parametrizar aquilo que seria preconizado como “grave situação econômico-financeira”.

A fórmula encontrada pelo legislador para a definição desta gravidade está na divisão do montante integral das dívidas tributárias federais vencidas até 31/05/2012 pelo número de alunos matriculados nas IES vinculadas à mantenedora, de acordo com os dados disponíveis do Censo da Educação Superior em 31/05/2012. Caso esta operação resulte em valor igual ou superior a R$ 1.500,00, a entidade estará em grave situação econômico-financeira e apta a aderir ao Proies[4].

Dentro desse cenário, a legislação prevê que o cálculo deverá levar em consideração o montante de dívidas tributárias vencidas, inscritas ou não em dívida ativa, ajuizadas ou não e com exigibilidade suspensas ou não. O cálculo para verificar aquilo que a lei considera como “grave situação econômico-financeira” é razoavelmente simples de ser efetuado.

No que tange à adesão ao programa, além dos documentos de praxe e do plano de recuperação tributária, devidamente analisado, importante ressaltar que o pedido de adesão ao Proies demandará a apresentação de vasta documentação financeira envolvendo não só a entidade como de seus representantes. Tal exigência denota um potencial interesse em futuros redirecionamentos de cobranças para os gestores da entidade em caso de exclusão do parcelamento.

Não restam dúvidas que, dependendo da gravidade da situação econômico-financeira da Instituição de Ensino Superior, esta pode ser uma excelente oportunidade para repactuação dos débitos tributários federais vencidos até 31/05/2012, já que além da moratória de doze meses, será possível a quitação dos tributos mediante o oferecimento de bolsas de estudo previstas no programa, de forma que apenas 10% das parcelas mensais precisariam ser quitadas em moeda corrente.

Por outro lado, o Proies não deve ser encarado como um novo parcelamento extraordinário, assim como o Refiz ou Paes, já que as condições de adesão e manutenção no programa são extremamente restritas e a exclusão da mantenedora deste parcelamento resultará, virtualmente, na inviabilidade de sua operação na medida em que a penalidade prevista para o descumprimento do programa é o descredenciamento da IES.

Por essa razão, o programa deve ser analisado com extrema cautela antes de sua adesão, pois trata-se de uma opção que pode mudar o destino de uma Instituição de Educação Superior, motivo pelo qual recomenda-se a contratação de profissionais e auditorias capacitadas, já que é fundamental a elaboração de um plano de recuperação tributária fidedigno e apto a ser cumprido.

Para isso, é necessário um estudo profundo das condições financeiras da entidade, certificando o atendimento de todos os pré-requisitos de adesão e da viabilidade de autofinanciamento e manutenção dos índices educacionais ao longo de toda a repactuação. Ademais, é importante que seja analisada a situação regulatória da Instituição e considerar que em caso de não preenchimento de vagas em bolsas Proies, o pagamento do percentual não preenchido deverá ser feito em moeda corrente.

Por fim, insta reconhecer que o programa é deveras inovador, pois congrega importantes institutos de direito tributário em uma só legislação, além de igualmente mesclar regras de dois ramos do direito: tributário e educacional. Com efeito, o Proies propõe a concepção de um novo caminho jurídico que será construído em uma perspectiva interdisciplinar e inovadora, caminho este até então desconhecido na legislação pátria.

 

 



[1]. Art. 4o  O Proies será implementado por meio da aprovação de plano de recuperação tributária e da concessão de moratória de dívidas tributárias federais, nos termos dos arts. 152 a 155-A da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, em benefício das entidades de que trata o art. 3o que estejam em grave situação econômico-financeira.

[2]. Art. 155. A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogado de ofício, sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora:

I - com imposição da penalidade cabível, nos casos de dolo ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em benefício daquele;

II - sem imposição de penalidade, nos demais casos.

Parágrafo único. No caso do inciso I deste artigo, o tempo decorrido entre a concessão da moratória e sua revogação não se computa para efeito da prescrição do direito à cobrança do crédito; no caso do inciso II deste artigo, a revogação só pode ocorrer antes de prescrito o referido direito.

[3]. Art. 151, inciso II, do CTN.

[4]. Lei n.° 12.688, de 18 de julho de 2012.

Art. 4°.

...

Parágrafo único.  Considera-se em estado de grave situação econômico-financeira a mantenedora de IES que, em 31 de maio de 2012, apresentava montante de dívidas tributárias federais vencidas que, dividido pelo número de matrículas total, resulte em valor igual ou superior a R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), observadas as seguintes regras: 

I - o montante de dívidas tributárias federais vencidas engloba as inscritas ou não em Dívida Ativa da União (DAU), as ajuizadas ou não e as com exigibilidade suspensa ou não, em 31 de maio de 2012; e 

II - o número de matrículas total da mantenedora corresponderá ao número de alunos matriculados nas IES vinculadas à mantenedora, de acordo com os dados disponíveis do Censo da Educação Superior, em 31 de maio de 2012. 

Compensação tributária das entidades mantenedoras de Ensino Superior

Entendendo o programa de financiamento estudantil (Fies)

Daniel Cavalcante Silva, | sex, 05/10/2012 - 15:06
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O Código Tributário Nacional estabelece, em seu art. 156, as hipóteses de extinção do crédito tributário, dentre elas a chamada compensação. Entende-se por compensação o encontro de débitos e créditos. Ocorre quando o devedor do crédito tributário em questão seja ao mesmo tempo credor da Fazenda Pública. Ocorre, portanto, a “extinção de obrigações recíprocas entre as mesmas pessoas que se reputam pagas (total ou parcialmente)”.1

Com base nessas perspectivas, o CTN ainda estabelece os requisitos legais para a autorização da compensação tributária, que deve decorrer de expressa autorização normativa, podendo se objeto de compensações com créditos tributários vencidos e vincendos, nos termos do art. 170 do CTN2. É justamente com base nessa disposição legal que o Programa de Financiamento Estudantil (FIES) foi encetado.

Como é cediço, a Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, instituiu o Fundo de Financiamento aos Estudantes do Ensino Superior (FIES), de natureza contábil, que é destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério da Educação, de acordo com regulamentação própria e nos termos do art. 1º da referida lei.

De acordo com a legislação de regência, o financiamento acima poderá ser oferecido a alunos da educação profissional técnica de nível médio, bem como aos estudantes matriculados em programas de mestrado e doutorado com avaliação positiva, desde que haja disponibilidade de recursos, observada a prioridade no atendimento aos alunos dos cursos de graduação.

São passíveis de financiamento pelo Fies até 100% (cem por cento) dos encargos educacionais cobrados dos estudantes por parte das instituições de ensino devidamente cadastradas para esse fim pelo Ministério da Educação, em contraprestação aos cursos em que os alunos cadastrados estejam regularmente matriculados.

De acordo com a Lei n.° 10.260, de 2001, a União Federal autoriza a emissão de títulos de dívida pública em favor do FIES, sendo tais títulos destinados exclusivamente ao pagamento das mantenedoras de instituições de ensino superior em relação aos encargos educacionais relativos às operações de financiamento realizadas com os recursos desses fundos, conforme estabelece os artigos 7º a 9º da Lei n.° 10.260, de 2001.3

A mesma legislação de regência também disciplina que os referidos certificados4, como mecanismo destinado ao pagamento às Instituições de Ensino Superior em face das prestações de serviços educacionais relativos às operações com o FIES, também se constituem como documento hábil para compensar tributos federais administrados pela Receita Federal do Brasil, ou seja, os Certificados em epígrafe são imprescindíveis para que uma Instituição de Ensino Superior possa compensar tributos para cobrir os gastos com os alunos que efetivamente estão estudando na instituição por intermédio do referido programa (FIES).

Dentro desse cenário, o Fundo Nacional de Educação (FNDE), na qualidade de agente operador do FIES e de administrador dos ativos e passivos advindos do programa, criou o Sistema Informatizado do FIES (SisFIES), que é um sistema que interliga a instituição de ensino, o aluno e o agente operador do sistema, servindo também de suporte para a compensação de tributos da Entidades Mantenedoras de Ensino Superior. O sistema é interativo e relativamente ágil na operação de compensação, uma vez que o agente operador do FIES tem acesso a todos os dados de inclusão de discentes nas instituições e, por conseguinte, a quantidade de crédito que pode ser disponibilizado para a compensação.

De acordo com a legislação, é importante observar que a compensação se inicia para pagamento das contribuições sociais previstas nas alíneas a e c do parágrafo único do art. 11 da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 19915, bem como das contribuições previstas no art. 3° da Lei n° 11.457, de 16 de março de 2007. No entanto, se não houver qualquer débito de caráter previdenciário, as Entidades Mantenedoras de Ensino Superior poderão compensar o FIES com o pagamento de quaisquer tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, e respectivos débitos, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizar, exigíveis ou com exigibilidade suspensa, bem como de multas, de juros e de demais encargos legais incidentes, nos termos do art. 10, §3º, da Lei do FIES.

Ainda que a Entidade Mantenedora de Ensino Superior não tenha qualquer débito tributário para compensar, o FIES ainda oferece a possibilidade da chamada recompra dos títulos emitidos pelo programa, com o objetivo de pagar às entidades mantenedoras pelos custos operacionais que as mesmas tiveram com os alunos financiados por meio do referido programa (FIES).

Diante da sistemática explicitada, o FIES passou a se constituir como um importante instrumento de gestão das Entidades Mantenedoras de Ensino Superior, eis que possui o condão de diminuir a inadimplência das entidades educacionais, gerando fluxo de caixa para as instituições, bem como serviu de mecanismo imediato para reduzir a inadimplência tributária.

Em virtude das excelentes perspectivas financeiras do FIES, as Entidades Mantenedoras de Ensino Superior, constituídas por naturezas jurídicas diversas (com ou sem finalidade lucrativa), optaram pela adesão ao programa, uma vez que o Estado e as Instituições passam a ser parceiros no risco financeiro que poderia ser gerado no financiamento do ensino superior.

Referências Bibliográficas

1. MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. 8ª Edição, São Paulo: Dialética, 2008, p. 375.
2. Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.

Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.

3.  Art. 7o Fica a União autorizada a emitir títulos da dívida pública em favor do FIES.
§ 1o Os títulos a que se referem o caput serão representados por certificados de emissão do Tesouro Nacional, com características definidas em ato do Poder Executivo.
§ 2o Os certificados a que se refere o parágrafo anterior serão emitidos sob a forma de colocação direta, ao par, mediante solicitação expressa do FIES à Secretaria do Tesouro Nacional.
§ 3o Os recursos em moeda corrente entregues pelo FIES em contrapartida à colocação direta dos certificados serão utilizados exclusivamente para abatimento da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional.

Art. 8o Em contrapartida à colocação direta dos certificados, fica o FIES autorizado a utilizar em pagamento os créditos securitizados recebidos na forma do art. 14.
Art. 9o Os certificados de que trata o art. 7o serão destinados pelo Fies exclusivamente ao pagamento às mantenedoras de instituições de ensino dos encargos educacionais relativos às operações de financiamento realizadas com recursos desse Fundo. (Redação dada pela Lei nº 12.202, de 2010).

4. Art. 10.  Os certificados de que trata o art. 7o serão utilizados para pagamento das contribuições sociais previstas nas alíneas a e c do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, bem como das contribuições previstas no art. 3o da Lei no 11.457, de 16 de março de 2007.
...
§ 3o  Não havendo débitos de caráter previdenciário, os certificados poderão ser utilizados para o pagamento de quaisquer tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, e respectivos débitos, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizar, exigíveis ou com exigibilidade suspensa, bem como de multas, de juros e de demais encargos legais incidentes. (Redação dada pela Lei nº 12.202, de 2010)

5.  Art. 11.  No âmbito federal, o orçamento da Seguridade Social é composto das seguintes receitas:
...
Parágrafo único. Constituem contribuições sociais:
a) as das empresas, incidentes sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu serviço;
...
c) as dos trabalhadores, incidentes sobre o seu salário-de-contribuição;

Contextualizando Políticas Públicas no Brasil

Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima - devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos. John Rawls. Uma Teoria da Justiça

| qui, 13/09/2012 - 16:21
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As políticas públicas e os problemas inerentes à sua implementação têm se constituído, nos últimos anos, em um tema recorrente no Brasil, porém não têm merecido a necessária atenção de modo a tornar-se um tema da agenda política nacional. O que acontece no Brasil, segundo o Prof. Carlos Aurélio Pimenta Faria1, é que existe uma babel de abordagens, teorizações incipientes e vertentes analíticas, que buscam dar inteligibilidade à diversificação dos processos de formação e gestão das políticas públicas em um mundo cada vez marcado pela interdependência assimétrica. Esse caráter incipiente é comprovado, por exemplo, pelo fato de qualquer exame da produção brasileira recente evidenciar a quase inexistência de análises mais sistemáticas acerca dos processos de implementação de políticas públicas, além da escassez dos estudos de “pós-decisão” da institucionalização destas políticas.

            O histórico das iniciativas de modernização neste campo demonstra um elevado grau de fragmentação e descontinuidade de ações com o consequente desperdício de recursos e resultados insuficientes. As políticas públicas tornaram-se uma categoria de interesse sócio-jurídico há aproximadamente vinte anos, havendo pouco acúmulo teórico a respeito, o que desaconselha a busca de conclusões acabadas, conforme será analisado oportunamente.

            Na verdade, conforme leciona a Professora Maria das Graças Ruas2, em face da variedade de teorias e conceitos sobre Políticas Públicas, enfocando, inicialmente, a diferenciação social das sociedades modernas, no que tange às ideias, valores, interesses e aspirações diferentes, existe a possibilidade de haver conflitos sociais. Desta feita, esse possível conflito, decorrente dessa diferenciação social, deveria ser mantido dentro de limites admissíveis. Para a resolução desses conflitos, por meio da coerção, utiliza-se a política. A política, no entendimento da citada professora3, seria um conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos. Já a política pública compreenderia o conjunto de decisões e ações relativas à alocação imperativa de valores.

            Dentro dessa perspectiva, pode-se inferir que a política pública envolveria mais do que uma decisão e requereria diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar decisões tomadas. Conclui-se, nesse sentido, que as políticas públicas representam os instrumentos de ação dos governos, numa clara substituição dos “governos por leis” (government by law) pelos “governos por políticas” (government by policies). O fundamento mediato e fonte de justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de implemento dos direitos fundamentais positivos, aqueles que exigem uma prestação positiva do Poder Público4.

            Em suma, políticas públicas são as decisões de governo que influenciam a vida de um conjunto de cidadãos. São os atos que o governo faz ou deixa de fazer e os efeitos que tais ações ou inações provocam na sociedade. O processo de políticas públicas numa sociedade democrática é extremamente dinâmico e conta com a participação de diversos atores em vários níveis. O desejável é que todos os afetados e envolvidos em política pública participem o máximo possível de todas as fases desse processo: identificação do problema, formação da agenda, formulação de políticas alternativas, seleção de uma dessas alternativas, legitimação da política escolhida, implementação dessa política e avaliação de seus resultados. Políticas públicas são aqui entendidas como o “Estado em ação”, ou seja, é o Estado implantando um projeto de governo, por intermédio de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade.

            Há uma questão que deve ser analisada previamente à definição de política pública: a política não é uma norma e nem um ato jurídico, no entanto, as normas e atos jurídicos são componentes da mesma, uma vez que esta pode ser entendida como “um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinando”5. As normas, decisões e atos que integram a política pública têm na finalidade da política seus parâmetros de unidade. Isoladamente, as decisões ou normas que a compõem são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico próprio.

            No entendimento de Fábio Konder Comparato, “as políticas públicas são programas de ação governamental”6. O autor segue a posição doutrinária de Ronald Dworkin, para quem a política (policy), contraposta à noção de princípio, designa aquela espécie de padrão de conduta (standard) que assinala uma meta a alcançar, no mais das vezes uma melhoria das condições econômicas, políticas ou sociais da comunidade, ainda que certas metas sejam negativas, por implicarem na proteção de determinada característica da comunidade contra uma mudança hostil. Nas palavras de Dworkin:

Os argumentos de princípio se propõem a estabelecer um direito individual; os argumentos políticos se propõem a estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos.7

 

          Segundo defende Maria Paula Dallari Bucci, há certa proximidade entre as noções de política pública e de plano, embora aquela possa consistir num programa de ação governamental veiculado por instrumento jurídico diverso do plano. Complementa Maria Paula Dallari Bucci:

A política é mais ampla que o plano e define-se como o processo de escolha dos meios para a realização dos objetivos do governo, com a participação dos agentes públicos e privados. […] A política pública transcende os instrumentos normativos do plano ou do programa. Há, no entanto, um paralelo evidente entre o processo de formulação da política e a atividade de planejamento.8

 

          Desta forma, a referida autora define políticas públicas como sendo programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. As políticas públicas podem ser entendidas como o conjunto de planos e programas de ação governamental voltados à intervenção no domínio social, por meio dos quais são traçadas as diretrizes e metas a serem fomentadas pelo Estado, sobretudo na implementação dos objetivos e direitos fundamentais dispostos na Constituição.

          Há que se fazer a distinção entre política pública e política de governo, vez que enquanto esta guarda profunda relação com um mandato eletivo, aquela, no mais das vezes, pode atravessar vários mandatos. Deve-se reconhecer, por outro lado, que o cenário político brasileiro demonstra ser comum a confusão entre estas duas categorias. A cada eleição, principalmente quando ocorre alternância de partidos, grande parte das políticas públicas fomentadas pela gestão que deixa o poder é abandonada pela gestão que o assume.

          Inegável, por certo, que o estudo das políticas públicas no Brasil foi marcado profundamente pela evolução sociológica do Direito como um todo, acompanhando a consolidação do chamado Estado democrático de direito, o Estado constitucional pautado pela defesa dos direitos de liberdade e pela implementação dos direitos sociais. No Estado constitucional, pautado pelas teses do novo constitucionalismo, a função fundamental da Administração Pública é a concretização dos direitos fundamentais positivos, por meio de políticas públicas gestadas no seio do Poder Legislativo ou pela própria Administração9, políticas estas formuladas por intermédio de intelecção sociológico-política.

 

Referências Bibliográficas

 

1. FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. Um Inventário Sucinto das Principais Vertentes Analíticas Recentes. In Revista Brasileira de Ciências Sociais (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), Vol. 18, Número 51, fevereiro de 2003, p. 21-31.

 

2. RUAS, Maria das Graças. Análise de Políticas Públicas: Conceitos Básicos.  In: Maria das Graças Ruas; Maria Izabel Valladão de Carvalho. (Org.). O estudo da política. Brasília: Paralelo 15, 1998, v. , p. 231-260.

 

3. RUAS, Maria das Graças. Op. Cit., p. 231.

 

4. BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 135.

 

5. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista dos Tribunais, ano 86, n. 737, março, São Paulo, 1997, p. 18.

 

6. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista dos Tribunais, ano 86, n. 737, março, São Paulo, 1997, p. 18.

 

7. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 134.

 

8. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 259.

 

9. Segundo constata Maria Paula Dallari Bucci, a exteriorização das políticas públicas se afasta de um padrão uniforme e claramente apreensível pelo ordenamento jurídico. Por vezes, podem ser instituídas por leis, como a Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei n.º 9.433, de 1997; outras vezes, são consubstanciadas em emendas constitucionais, como no caso do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, criado pela Emenda Constitucional n. 14/96; em outros casos, podem ainda decorrer de atos administrativos isolados ou ordenados em programas, como as políticas de transporte municipal. (BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. Cit., 2002, p. 257).

O Sistema Federativo e a Forma Dispendiosa de Governar

Daniel Cavalcante Silva, | qua, 29/08/2012 - 12:07
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A Federação constitui um tipo de Estado composto que é divisível em partes internas e que são unidas entre si por um vinculo de sociedade. Grande quantidade de países admite esta solução, a começar pelos Estados Unidos da América com sua Lei Magna de 1787.

Sob o ponto de vista conceitual, pode-se chegar à seguinte definição do Estado Federal: “o Estado Federal é uma organização, formada sob a base de uma repartição de competências entre o governo federal e os governos estaduais, de sorte que a União tenha a supremacia sobre os Estados-Membros, e estes sejam entidades dotadas de autonomia constitucional.” (FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1995, pág. 262.)

A vocação histórica do Brasil para o federalismo surgiu, principalmente, em virtude das próprias condições geográficas do país, pois a imensidão territorial e as condições naturais obrigaram a descentralização, que é base do regime federativo. A causa social da origem do federalismo é a própria imensidão territorial, obrigando a descentralização de governo, a fim de manter a pluralidade das condições regionais e o regionalismo de cada zona, tudo integrado na unidade nacional do federalismo.

Durante o período histórico da dominação portuguesa, o Federalismo decorreu a partir de uma criação social que correspondia às aspirações descentralizadoras, a exemplo da Guerra dos Farrapos, Revolução Praieira, Confederação do Equador, entre outras. A sufocante asfixia administrativa portuguesa passou a ser um perigo à própria unidade nacional. Em razão disso, o Império deu origem aos Atos Adicionais que outorgavam autonomia a certas coletividades integrantes do governo, como os Conselhos-Gerais, entre outras. Foi com essa estrutura que as províncias viveram durante a longa existência dos dois reinados, até a Revolução de 1889, transformando-as em Estados-Membros.

Desta feita, a Constituição Federal de 1891, em seu art. 63, instituiu que cada Estado-Membro reger-se-ia pela Constituição e pelas leis que adotar, respeitados os princípios constitucionais da União. A Federação, então, pressupunha a existência de várias ordens jurídicas autônomas e harmonicamente independentes, como ocorre hoje em dia.

Amiúde o desenvolvimento histórico do Federalismo no Brasil, a Constituição de 1988 inovou ao estabelecer o pacto federativo, tradicionalmente feito pelos Estados-Membros, criando a União e incluindo os Municípios. Ao incluir os Municípios, foi propiciada a autonomia político-administrativa destes, consagrando-os no elenco de entes federados.

O regime federativo constitui uma forma de Estado de grande importância no mundo moderno, daí resultando sem dúvida a vitalidade do vínculo de atribuições de competências. Verifica-se, por conseqüência, a diversidade da organização que se efetua no regime federativo em vários países, sem desmantelo da sua técnica, antes atendendo às necessidades dominantes em uma determinada época.

Para o cumprimento dos fins do regime federativo, é indispensável que se estabeleça uma divisão ou uma repartição de competências entre a União e os Estados-Membros para que não se processem conflitos desagregadores do regime e a ruína do aparelhamento administrativo. Daí a importância da ordem jurídico-constitucional das competências.

Entenda-se por competência a capacidade jurídica de uma corporação pública ou ente federado para agir. Em que pese a gama de competências atribuídas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, uma das mais importantes competências diz respeito ao poder de tributar. Eis que surge o que convencionamos a chamar de Federalismo Fiscal.

O Federalismo Fiscal pressupõe a atribuição aos entes federados de competência tributária suficiente para propiciar arrecadação tributária adequada para o cumprimento de suas atribuições, obedecendo aos anseios e peculiaridades de cada região.

Pela atribuição de competência divide-se o próprio poder de instituir e cobrar tributos. Entrega-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios parcelas do próprio poder de tributar. A faculdade de instituir tributo passa pelo princípio do Poder-Dever, atribuído pela Constituição, para que determinado ente da Federação possa instituir certo tributo.

A técnica de atribuição de competência é de grande importância porque tem a virtude de descentralizar o poder político, mas tem o inconveniente de não se prestar como instrumento para a minimização das desigualdades econômicas entre os Estados e os Municípios. Além disso, torna dispendiosa a forma de governar o país, conquanto não há um controle da relação entre receita e despesa, o que causa déficit nas contas públicas.

Ressalta-se que a fragmentação partidária em nosso país, provocada não apenas pela heterogeneidade estrutural da sociedade, mas também pela permissiva legislação eleitoral, somando-se com o fato de que Estados e Municípios constituem um poderoso fator potencial de descontrole do déficit público devido ao seu grande peso dentro do setor público, são fatores que agregam à forma dispendiosa de governar o país.

Eis que surge também a “guerra fiscal” entre os Estados, mediante a manipulação do ICMS e a concessão de benefícios disfarçados em forma de empréstimos subsidiados e até participações acionárias. A “guerra” deflagrada, sob os auspícios do federalismo, tem óbvias vantagens, como a localização de mercado e a infra-estrutura social e econômica dos Estados em relação aos menos desenvolvidos, o que torna dispendiosa a administração.

Não se pode olvidar que, ao Estado pobre, em cujo território não é produzida, nem circula, riqueza significativa, de nada valeriam todos os tributos do sistema sem a justa distribuição de riquezas. Por isto é que se fez necessária também a distribuição de receitas tributárias. Pela distribuição de receitas, o que se divide entre a União, Estados e Municípios é o produto da arrecadação do tributo por uma delas instituído e cobrado.

Na verdade, existem duas formas de participação de uma pessoa política no produto da arrecadação de outra: a direta e a indireta. A forma direta impõe uma relação simples. Exemplo: os Municípios fazem jus a 25% do ICMS do Estado arrecadado em seus territórios. A forma indireta impõe uma relação complexa: são formados por fundos aos quais afluem parcelas de receitas de dados impostos. Depois, são rateados entre os partícipes beneficiários segundo critérios legais preestabelecidos.

Por outro lado, tendo à União sido reservada parcela maior da competência tributária, os Estados-Membros e os Municípios, todavia, participam do produto da arrecadação de diversos impostos federais. No entanto, a técnica de distribuição de receitas tem o inconveniente de manter os Estados e os Municípios na dependência do Governo Federal, a quem cabe fazer a partilha das receitas tributárias mais expressivas.

O problema tende a agravar ainda mais se o Governo Federal aprovar a comentada reforma tributária, o que concentrará ainda mais o poder de tributar nas mãos da União, logrando aos Estados e Municípios o ônus de viver em constante “negociação política” com o Governo Federal. 

Na verdade a questão não se subsume ao centralismo fiscal, mesmo porque não haveria como gerir e administrar concentradamente diante das peculiaridades de um país tão heterogêneo e de dimensões físicas e populacionais tão grandes.

O grande desafio para a federação brasileira passa a ser, portanto, como conciliar a descentralização fiscal, maior ou menor, com os objetivos nacionais e racionais da política econômica. Esse é um problema ainda não equacionado. O que tem que acabar urgentemente é a sangria desatada criada historicamente pela União, que age como uma espécie de “emprestadora de última instância de Estados e Municípios em situação de falência”, acabando, por conseguinte, com o comportamento fiscal permissivo.

O diagnóstico parece se traduzir em medidas conciliadoras, no entanto, sem perder o vigor fiscal, aperfeiçoando o sistema federativo fiscal e dando ênfase aos mecanismos de controles fiscais. O exemplo disso está esculpido no art. 160 da Constituição, que veda à União Federal a “negociação política” na entrega das receitas cabentes a Estados e Municípios, sob as penas da lei, providência de resto salutar, pois o Governo Federal sempre usou o processo de entrega dessas parcelas para obter vantagens políticas e, quem sabe, econômicas, favorecendo a corrupção e em benefício de uns poucos.

O federalismo fiscal brasileiro projeta o quadro geral da economia do país, da sociedade e do sistema político. A política do atual Governo Federal em relação à questão federativa tem, de fato, procurado enfrentar os problemas mais candentes, embora dentro de uma estratégia de ação gradual, relativamente prudente e mais custosa do ponto de vista financeiro.

Enfim, a federação brasileira, diferentemente do que acontece com outros países, aparenta ser inconclusa, mas exibe traços de razoável estabilidade. É por esse motivo que o federalismo fiscal é sempre invocado na defesa de interesses localizados e de políticas públicas de impacto regionais.

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O mandato representativo popular e o mandato representativo do advogado: uma curiosa analogia

Daniel Cavalcante Silva, | qua, 22/08/2012 - 09:20
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A evolução política do homem passou por uma série de transformações ao longo da história. Neste ínterim, engendrou-se experiências políticas, como a teoria aplicada no regime feudal, na monarquia, no parlamentarismo, enfim, em todos os regimes representativos. Entretanto, por mais que houvesse diversidade nas condições sociais e históricas de cada país ou Estado, sempre se considerou a premissa da representatividade como a viga fundamental de qualquer regime político.

O regime representativo, independentemente de sua diversidade, é um pressuposto da deliberação popular, que, por ordem natural de unanimidade política, elege ou depõe um presidente ou, até mesmo, um rei. Nesse sentido, o regime representativo possui a sua base propedêutica no “pacto social”, difundido por Jean-Jacques Rousseau, com a seguinte finalidade:

“Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia senão a si mesmo e fique tão livre como antes”. 1

O contrato social induz à suprema direção da vontade geral, fazendo com que esta “associação” produza um corpo moral e coletivo. A pessoa pública formava-se pela união da vontade de todas as outras pessoas e o corpo político, o qual era por seus membros chamado de Estado, representava a soberania do povo.

Com o decorrer da história, como alhures explicitado, vários regimes representativos foram se sobrepondo, mas sempre com a ideia basilar da deliberação pública como forma de manutenção do pacto social. Hodiernamente os pilares políticos são os mesmos, com uma roupagem diferente, mas com a mesma ideologia representativa.

Na acepção política, a expressão “regime representativo” designa o sistema constitucional no qual o povo se governa por intermédio de seus eleitos. Esse regime implica, portanto, em certa participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, participação que se exerce na forma e na medida da unanimidade política. O ponto de vista jurídico possui um paradigma semelhante, como ensina o Prof. Darcy Azambuja, verbis:

“Do ponto de vista rigorosamente jurídico, o regime representativo repousa na presunção legal de que as manifestações da vontade de certos indivíduos ou grupo de indivíduos têm a mesma força e produzem os mesmos efeitos como se emanassem diretamente da nação, em que reside a soberania”. 2

Os substratos gerais da representatividade pública estão na soberania nacional, na vontade geral e no “eu comum”, que seria a unidade da vontade geral, descrita por Rousseau. A nação delega o exercício do poder aos seus representantes, continuando, porém, como a fonte de toda autoridade.

A ideia de eleger representantes incide em um curioso conceito de mandato. Deve-se entender o termo “mandato” em sentido amplo, em que a nação seria o mandante e os indivíduos eleitos seriam os mandatários, englobando, inclusive, os representantes públicos que exercem cargos de confiança, os concursados e os que atuam em nome do “eu comum”.

Parafraseando o Professor Azambuja, passa-se para o Direito Público um instituto de Direito Privado, procurando afeiçoar às suas regras gerais os fenômenos de ordem política que integram a organização e o funcionamento do regime representativo.

Neste caso, o mandato seria o dever dos mandatários em suprir as aspirações dos mandantes, ou seja, um mandato representativo. É dever dos mandatários responder aos mandantes pela maneira como cumpre o mandato e pelo modo como exerce as funções legislativas. Tem-se, em tese, por um mandato representativo as características usuais de um mandato-contrato, o qual tem a mesma ideologia do contrato social.

Entretanto, como toda tese tem sua antítese, nas relações que se estabelecem entre a nação e os eleitos, juridicamente, não há vinculação entre mandante e mandatário, outorgante ou procurador. Primeiro porque o mandato pressupõe uma pessoa que outorga e outra que recebe para executar, assim, um deputado representa toda a nação e não somente aqueles que o elegeu.

Segundo, a revogabilidade pelo mandante, em que um representante (deputado ou senador) não pode ser destituído diretamente pelos seus eleitores, embora os eleitores possam encetar providências políticas para tal intento. E terceiro, no regime representativo o representante eleito não fica adstrito à vontade de seus eleitores, o que enseja, por exemplo, casos de improbidade administrativa sem que haja a devida punição.

Já o mandato advocatício tem uma característica bastante peculiar, pois envolve um tipo de mandato-contrato e de um mandato representativo de múnus público, sendo este uma atribuição peculiar inerente ao advogado. O mandato advocatício perpassa a simples barreira de uma relação contratual, incidindo também na responsabilidade adquirida pelo advogado perante a sociedade em virtude de seu múnus público adquirido. Surge, então, a função social do advogado como se derivasse da vontade da sociedade, formando um corpo moral e ético esperado na atuação advocatícia diante do foro.

Fazendo uma analogia ao mandato representativo popular, segundo a teoria de Montesquieu, logo que fossem escolhidos os representantes do povo para assumirem tão privilegiado múnus público, estariam prontos para governarem com inteira independência, tendo os seus atos e resoluções não dependentes de ratificação popular, pois são tidos como a própria expressão da soberania nacional.   

O mandato advocatício conota uma certa independência do Advogado em seus atos, tal como o mandato representativo popular, sendo os atos e procedimentos do Advogado uma expressão do seu representado perante os tribunais e demais esferas da justiça. A independência do advogado diante do processo transcende o âmbito forense, incidindo também no papel harmonizador das relações sociais. O art. 133 da Constituição Federal é bastante claro quando preconiza a indispensabilidade do Advogado à administração da Justiça, sendo esta um reflexo da função social do Advogado.   

Não há que se negar à procedência dos argumentos de Montesquieu aplicado na sociedade moderna, tendo-se em vista que o regime representativo é a organização da confiança pautada na soberania popular ou individual, sendo que o que reina hoje em dia é o abuso de confiança. Considerando que a atuação do advogado representará a vontade da sociedade na defesa dos mais diversos interesses, incide em abuso de confiança e desrespeito a função social o advogado que faltar com a ética no exercício da advocacia nos diversos âmbitos do judiciário. Portanto, a falta ética passa a ser um desrespeito à função social do advogado e à sociedade.

O que se pode notar é que a vida política e social dos povos, ao longo do tempo, desmentiram as ilusões do regime representativo (mandato) como forma moderna e aperfeiçoada da democracia, mas atualmente esta ganhou um novo ímpeto, com a irresignação popular e individual, incidindo na atuação de órgãos que veem o que os cidadãos leigos não veem, órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, por meio do Conselho de Ética e Disciplina, assumiu o papel norteador de toda forma de conduta do advogado, fazendo-o entender que ele representa muito mais do que um simples ente de uma relação contratual, mas que também faz parte de um corpo moral e coletivo esperado por toda sociedade.

A OAB, de certa maneira, abraça a teoria de Montesquieu quando pune o advogado que não segue o Código de Ética e Disciplina da OAB, sendo esta atribuição punitiva uma forma potencializada e melhorada que representa os anseios da sociedade. A OAB age no sentido de selecionar os mais capacitados e austeros profissionais diante da falta de ética que paira na advocacia. É uma benesse à sociedade perpetrada por uma instituição que representa os seus anseios, conforme pregava Montesquieu.

“O povo que possui o poder soberano deve fazer por si mesmo tudo o que pode realizar corretamente, e aquilo que não pode realizar corretamente cumpre que o faça por intermédio de seus ministros. (...) O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade” (L. II, Cap. II). 3

A consciência roedora dos irresignados está representada atualmente na atuação da Ordem dos Advogados do Brasil como forma de coibir virtuais afrontas aos princípios democráticos. A OAB tem uma atribuição muito maior do que uma entidade representativa de classe ou um órgão estritamente jurídico, mas assume o papel de defensora do múnus público atribuído ao advogado, para que este saiba que a sua função social é essencial para a democracia e para a defesa do contrato social.

O conceito de mandato para o político e para o advogado guarda mais semelhança do que se imagina. Desta feita, a presente analogia busca evidenciar que a promoção do bem comum é objetivo indissociável na outorga de qualquer mandato, seja ele representativo popular ou mesmo um mandado advocatício, representando igual nobreza na busca de uma sociedade livre e justa.

Referência Bibliográfica:

1 - AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Globo, 1996, pág. 266.

2 - MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, págs. 9 e 10.

3 - ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, pág. 31.

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