A democracia é ruim, disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, célebre por comandar a Inglaterra na guerra contra os nazistas; mas todos os outros sistemas políticos são piores, acrescentava.
Tentando trazer a experiência filosófica para entender a vivência do político inglês, o problema da democracia é que ela é lenta em seu desenvolvimento, demora muito para amadurecer. Até que as instituições se firmem, a corrupção, o desperdício, a impunidade e outros males estão sempre presentes nas jovens democracias, corroendo-as em todos os níveis do poder público e da própria estrutura social. A incompetência e daí a ineficiência estatais também caracterizam esses sistemas prebendários do patronato (leia-se Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro), nos quais o patrimônio público se confunde com o privado, e empresários e poderes públicos estabelecem relações políticas espúrias e financiamentos mútuos imunes a quaisquer controles, numa cumplicidade característica de sociedades periféricas: o enriquecimento do empresariado com o dinheiro público.
Compreender a situação do Brasil não significa advogar nenhum conformismo ou o “tem que ser assim”. Muito pelo contrário, pressões sociais legítimas, como essas recentemente vistas no Brasil, podem e devem apressar o fortalecimento institucional de que o país tanto precisa, colocando a lei e o direito acima de tudo e de todos, extinguindo os privilégios que caracterizam toda estrutura social subdesenvolvida. Mas é preciso entender que o fenômeno brasileiro, apesar de dotado de características próprias, não é inusitado no estudo da evolução dos sistemas democráticos e que a sociedade brasileira nunca teve oportunidade de conviver com uma democracia tempo suficiente para institucionalizá-la e usufruir de seus benefícios. Os golpes se sucedem, de forma às vezes mais, às vezes menos traumática: Independência, República, Estado Novo, Ditadura Militar, Nova República. Todo isso alimentado pela alienação típica de povos sem acesso à educação, do que falarei aqui em outro artigo.
Em outras palavras, não há solução fora da democracia: somente sociedades muito ignorantes podem tolerar “salvadores da pátria” e a certeza das ditaduras é a falta de controle sobre o poder.
Instituições controlam poder e a virtude maior da democracia, lembrada por Churchill sem o romantismo ingênuo de Rousseau, está justamente na criação do espaço público que enseja tal controle. A palavra “poder” é ainda mais ampla do que “direito”. Antropologicamente, o poder constitui a maior das paixões do ser humano, um animal predador gregário e político, condenado dentro da Babel de sua própria linguagem, cuja maior satisfação é o reconhecimento pelos demais seres humanos. Por isso deter poder modifica o comportamento, divide as pessoas entre as que têm e as que não têm poder; mais do que dinheiro, sexo, violência, bajulação ou beleza, que são apenas meios para adquirir e exibir poder.
Tem poder quem está em condições de obter acordo de outra pessoa, mesmo se isso implica impor algo que essa outra pessoa não desejaria ou evitar algo que ela desejaria: condições de torturar, de se fazer amar, de conseguir um prato de comida, de suprir quaisquer necessidades, de satisfazer eventuais desejos. Basta observar as modificações que a circunstância de deter um pouco, muito pouco de poder exerce sobre as pessoas comuns, medianas, seja um juiz, um coordenador de curso universitário, um policial ou um burocrata de agência reguladora.
Penso que, por isso, a filosofia do direito precisa colocar como objetivo para a práxis aquela ideia de enxergar o mundo com os olhos céticos e humanistas da retórica e garantir a mitigação e o rodízio do poder jurídico e político, numa democracia institucionalizada, na qual os indivíduos que exercem poder tenham pouca ou nenhuma importância pessoal. O poder tem que ser reduzido e momentâneo. A realização dessa filosofia implica um sem-número de instituições, tais como mandatos e rodízios em todos os cargos de mando no judiciário, no executivo, no legislativo, no ministério público, até nas empresas privadas que lidem com recursos públicos (praticamente todas no Brasil), assim como a total impossibilidade de recondução em qualquer deles, a partir da extinção da política como profissão.
A utopia da extinção da política como profissão não se confunde com a extinção da política, pois o humano é animal político, já ensinava Aristóteles. A política, que vai decidir os rumos, e a administração, que os executa, precisam ser um fardo exercido com competência e sem interesse pessoal, como hoje os bons síndicos de bons condomínios, que trabalham sem qualquer regalia.
A filosofia do direito é a vanguarda do conhecimento jurídico. Depois dela vem a teoria geral do direito, como hermenêutica da dogmática, e só na retaguarda atua a dogmática, de lege lata. Toda dogmática foi antes filosofia, de lege ferenda. Rudolf von Jhering construiu as bases hermenêuticas da posse antes que a dogmática fixasse esse conceito e Tobias Barreto também fez sugestões normativas, a princípio derrotadas, tais como a defesa do acesso da mulher aos estudos superiores. A filosofia mostra que o que hoje é utopia, amanhã se torna realidade. Torçamos para que as pressões da sociedade tragam mais ética e mais controle sobre todos os que exercem poder.