A Sociedade complexa e as duas sobrecargas jurídicas

João Maurício Adeodato, | qui, 30/05/2013 - 12:38
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Para começar a temática de hoje, o contexto da sociedade complexa contemporânea precisa ser mencionado. Aí a primeira tese aqui aponta o fenômeno da sobrecarga do direito pela pulverização ética, com a qual o direito estatal não se tem mostrado capaz de lidar. Isso significa que as outras ordens éticas – pois o direito é uma delas – tornam-se mais e mais individualizadas e nessa pulverização só resta ele como “mínimo ético”, pois moral, religião e etiqueta, por exemplo, não mais funcionam como amortecedores para os conflitos sociais, os quais são todos jurisdicizados.

Isso quer dizer que, na sociedade complexa, cada grupo social e mesmo cada indivíduo passa a ter sua própria moral, sua própria religião, e o direito constitui o único ambiente ético comum a todos. Numa sociedade mais primitiva, homogênea, a religião e a moral comuns cuidam de controlar as condutas contrárias e só chegam até o direito os conflitos mais agudos, tais como os referentes ao direito penal. Não é à toa que as pessoas leigas, não versadas em direito, pensam logo no direito criminal quando falam do direito, ao passo que os juristas sabem que o direito penal é uma parte muito pequena dentre os demais ramos do direito. Numa sociedade complexa, por seu turno, qualquer conflito é levado ao ordenamento jurídico, tais como brigas de vizinhos ou desentendimentos de família.

Além dessa sobrecarga do direito dogmaticamente organizado dentro do sistema social, observa-se outra dentro do próprio direito, qual seja, a sobrecarga da decisão concreta, fazendo com que aumentem as tarefas e a importância do Judiciário, em detrimento do Legislativo, pois o direito torna-se mais e mais casuístico e as regras gerais se enfraquecem. Da mesma maneira que o direito dogmático não está preparado para a primeira sobrecarga, o Judiciário tampouco está preparado para essa segunda sobrecarga e crescem os procedimentos alternativos de solução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem.

Então as regras para todos passam a ser unicamente as jurídicas, decididas somente no caso concreto.Ao mesmo tempo em que isso é pouco para constituir os laços éticos dos indivíduos de uma comunidade, é muito para o direito estatal controle todos os conflitos.

A solução oferecida pela modernidade democrática para o dilema da pulverização e divergências éticas na sociedade complexa é que o direito passa a decidi-las, em primeiro lugar, de acordo com as inclinações da maioria, pois justo não é este ou aquele padrão de conduta, como permitir ou proibir o aborto, o comércio de armas ou de sexo, mas sim aquilo que a maioria decide como justo; em segundo lugar, e por isso mesmo, o direito assume um conteúdo ético essencialmente mutável, pois sempre será possível que novas maiorias decidam por opções éticas divergentes em relação às anteriores.

Em relação ao controle das diferenças éticas, há também um problema lingüístico, que a semiótica jurídica estuda e explica: numa sociedade altamente diferenciada, os signos significantes tendem a se distanciar cada vez mais dos signos significados. No direito, isso quer dizer que os textos normativos, como as palavras da lei, são compreendidos diferentemente pelos diversos indivíduos e grupos, pois cada um reage a seu modo diante de expressões como “litigância de má fé”, “interesse público”, “reação moderada” e demais termos abundantes na legislação. Isso torna a lei menos funcional no trato com os conflitos e daí sobrecarrega os envolvidos na decisão do caso, como as partes, os advogados e os magistrados, e ressalta o papel da vontade pessoal e dos interesses concretos, em prejuízo de uma “racionalidade” pretensamente geral e independente. Ao mesmo tempo fica mais difícil prever como será a decisão concreta, tornando mais e mais obsoletas as concepções hermenêuticas exegéticas, literais ou filológicas, tal como mostra a evolução da hermenêutica jurídica.

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