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Em maio de 2020, a morte do americano George Floyd ganhou repercussão mundial. O ex-segurança de 40 anos, negro, foi asfixiado por um policial branco durante uma abordagem e não resistiu, vindo a óbito. As imagens da violência rodaram o planeta e engrossaram um movimento iniciado em 2013: o #BlackLivesMatter, em livre tradução, Vidas Negras importam.

A comoção em torno da morte de Floyd, no entanto, só aumentou ao passo que outros homens, mulheres, crianças e jovens foram violentados ou até mesmo tiveram suas vidas ceifadas, de lá para cá, em todo o mundo. No Brasil, só no ano corrente, poderíamos citar os exemplos do pequeno Miguel Otávio - morto após cair de um prédio de luxo no Recife (PE) enquanto sua mãe trabalhava como doméstica durante o isolamento social -;  do jovem Rogério Ferreira - baleado por policiais militares enquanto andava de moto, pela Zona Sul de São Paulo, no seu aniversário de 19 anos -; e do adolescente João Pedro, assassinado com um tiro nas costas durante operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). 

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Segundo o Atlas da Violência 2020, a taxa de homicídios de negros no Brasil aumentou em 11,5% entre 2008 e 2018. De acordo com a pesquisa, só em 2018 os negros representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios no país. Os números alarmantes - e crescentes - fazem aumentar também manifestações como o Vidas Negras Importam, porém, à parte de toda a violência, a população preta também busca em outras ferramentas  formas de se colocar na sociedade, empoderando-se e tomando posse de sua identidade. Os cabelos têm grande relevância nesse processo. 

A trancista Paula Badu e a filha, Yasmin. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens

Há um bom tempo, é possível ver mais pretos e pretas assumindo seus cabelos naturais e fazendo deles um meio de identificação e posicionamento político-social. Esse movimento vem lá de trás, desde a década de 1960, quando o ativista dos direitos dos afro-americanos, Malcom X, falou em sua autobiografia sobre quando usou produtos químicos para alisar o cabelo: “Foi meu primeiro grande passo para a autodegradação: quando suportei toda essa dor (ao jogar cloro no couro cabeludo), literalmente queimei minha pele para que meu cabelo se parecesse ao de um homem branco”, escreveu.  

No entanto, o apelo dos cabelos lisos e sem volume, tidos como o padrão de beleza da sociedade, é cada vez mais questionado e refutado pela população negra. A trancista Paula Badu é um exemplo disso. Ela conta que, durante a adolescência, sentiu a necessidade de se entender melhor enquanto pessoa e os caminhos dessa jornada vieram, também, através do seu visual: “Eu não me sentia à vontade, eu vinha de uma família cristã e precisava ter aquele padrão de beleza estipulado pela sociedade. Com meus 15 anos eu precisei fazer essa mudança, comecei a frequentar, afoxés, terreiros de candomblé e comecei a ver que a minha beleza estava na minha ancestralidade. Então, eu precisei fazer essas mudanças pra eu poder me aceitar. Eu me achava horrível, quando eu fiz esse resgate eu consegui me encontrar”.

Foi aí que a então menina decidiu parar de alisar os cabelos e colocar as tranças, em uma época que “não tinha transição, não tinha creme, não tinha nada”. A necessidade de cuidar das próprias tranças levou Paula a aprender a fazê-las e a maneira apropriada de cuidar delas. O autocuidado acabou virando profissão e, há cerca de cinco anos, ela comanda um salão, localizado no bairro do Varadouro, em Olinda (PE), onde faz diversos tipos de tranças e outros penteados afro. 

Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens

A trancista conta que, no início de sua carreira, a maior demanda era de pessoas que queriam um visual diferente para ir à festas ou brincar o Carnaval. Porém, com o passar do tempo, a procura começou a ser daqueles que de fato tiveram como opção assumir o cabelo afro para si. “Isso é muito bom, mostra que a trança não é moda, é história. Nossos antepassados viviam de trança. Lembro de conhecer pessoas negras na comunidade que minha avó morava que usavam, mas pra gente aquilo era feio, era sinônimo de pobreza. Agora que a gente conhece a real história das tranças, as pessoas estão caindo nessa real: a trança não é um penteado de Carnaval, é uma forma de existir, é um ato político”. 

O impacto do cabelo natural, ou trançado, na auto estima da mulher e do homem negros é visível aos olhos. Paula conta que vários clientes chegam a chorar ao se verem transformados e a emoção acaba fazendo parte do cotidiano em seu trabalho, que para ela é “uma missão ancestral”. “É a história do patinho feio: ele tá ali e não entende porque ele é feio, mas depois, ele percebe que está no lugar errado. É isso que acontece com a gente, porque a gente nao se identifica com o cabelo liso, falta alguma coisa e é justamente a aceitação do nosso natural. Infelizmente, isso é pregado com uma coisa de desleixo, dizem que nosso natural é feio e nós crescemos acreditando nisso. Então quando a gente se encontra, através de um penteado, de uma roupa, uma maquiagem, você se encontra e diz: ‘eu sou um cisne’”. 

Compromisso

Popularizados pelo cantor de Reggae mais importante do mundo, Bob Marley, os dreadlocks são um penteado afro de grande poder visual e representativo. Registros dão conta de que esses cabelos são usados tanto na África quanto na Índia desde a antiguidade Bíblica e pré-Bíblica. Os dreads também são usados por monges da Igreja Ortodoxa Etíope de Tewahedo; por nazireus do judaísmo; os Sadhu do hinduísmo; e os dervixes do islamismo; além, é claro, dos adeptos ao Rastafarianismo, expressão religiosa nascida na África, na década de 1930.

O simbolismo básico dos dreadlocks é que todo o tempo e energia gastos na aparência física e na vaidade podem ser usados ​​de maneira mais importante na espiritualidade e em outras atividades mais importantes. Para os rastafari, não cortar os dreads é um tributo a Deus, pois o crescimento natural dos cabelos é um preceito bíblico. O dreadmaker André Negron é simpatizante dessa cultura e leva para sua vida diversos dos preceitos do rastafarianismo, cultivar seu cabelo ‘rasta’ é apenas um deles. 

André também aprendeu a fazer dreads para cuidar do próprio cabelo e acabou virando profissional da área, há pouco mais de uma década. Ele garante que sempre se aceitou enquanto homem preto, por “orientação  familiar” e diz que os dreads só agregaram mais valor à sua identidade. “A minha raça é negra, eu sempre cultuei os meus antepassados. O reggae faz parte disso, é uma música negra e eu sempre admirei o reggae e o rastafarianismo. O fato de eu usar o cabelo rastafari, é uma forma de protesto também e de aceitação. Eu uso de uma forma muito empoderada. Até hoje, a gente sofre muito preconceito em relação a isso. Mas hoje, eu tenho como questionar qualquer pessoa que vier falar”.

O dreadmaker, André Negron. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens

Em seu espaço, localizado no bairro do Varadouro, em Olinda (PE), ele constrói e faz a manutenção dos cabelos de homens e mulheres que buscam sua identidade. Para ele, “dread é compromisso” e o seu trabalho vai muito além de cuidar do visual dos clientes. O dreadmaker faz questão de oferecer, além do serviço, uma boa conversa e um lugar confortável e amistoso para que todos possam se sentir bem. “O meu trabalho é multi, Pessoas chegam aqui com o cabelo muito desorganizado e isso é muito raro a pessoa por si própria perceber. Eu gosto de fazer, isso me dá paz. Quando o ‘trampo’ é finalizado... Sem palavras”.

Apropriação cultural

O crescimento e popularização da estética afro não poderia passar ilesa pela indústria da moda. Hoje em dia, é possível ver pessoas de diversas raças e etnias fazendo uso de penteados, roupas e outros elementos característicos da cultura negra. Esse movimento botou em pauta a questão da apropriação cultural, tema que é sempre levantado quando não negros adotam cabelos como os dreadlocks ou acessórios como os turbantes.

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Mas, para os profissionais ouvidos pelos LeiaJá, essa questão não precisa ser um tabu. O dreadmaker André Negron acredita que a popularização do cabelo afro pode colaborar com o fim da discrminação. “Hoje em dia, não é só o negro que usa o cabelo rastafarim então, o fato de pesosas brancas, pardas, de várias cores serem do rastafari, diminuiu o preconceito. Muitas pessoas brancas de fato aderem ao movimento porque acham que é a cara delas. Eu vejo que qualquer um hoje em dia pode tá usando a depender da sua orientação”. 

Paula Badu segue mesma linha de raciocínio e aponta a globalização do mundo como incentivo para que diversas culturas possam coexistir. “Para mim, apropriar-se é você não dar o crédito a alguém pelo trabalho, pela história daquele trabalho.  Não tenho problema que nenhuma pessoa venha fazer as tranças, o que sempre tento fazer é explicar a história delas. Você desmistificar, explicar e fazer com que seu público trabalhe nele isso, quebra pra mim a apropriação. Hoje em dia, nós usamos coisas de outras culturas o tempo todo. Não acredito que você excluir uma pessoa que majoritariamente é de outra cultura do seu trabalho vai fazer com que isso acabe, pelo contrário você acaba distanciando mais e causando mais preconceito”. 

Serviço

Badu Afrohair - Paula Badu

Terça a sábado - 09h às 18h

Rua Palmira Magalhães, 67 - Varadouro - Olinda (PE)

(81) 98624-0410

 

Dread é Compromisso - André Negron

Terça à sexta - a partir das 15h

Sábado - a partir das 10h

Rua Dr. Francisco L. Casseli, 375 - Varadouro - Olinda (PE)

(81) 99509-3354

*Modelos: Yasmin Rodrigues e Arnaldo Deodato

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